A mulher que gere as bolsas nas universidades americanas e à noite volta para a sua aldeia do Sabugo

Brunch com a diretora da Comissão Fulbright Portugal, Otília Macedo Reis.
Publicado a
Atualizado a

É na sua casa no Sabugo, uma aldeia do concelho de Sintra, que Otilia Macedo Reis participa neste brunch que o confinamento obriga a que seja virtual. Mas a diretora da Comissão Fulbright Portugal alinha na perfeição, tomando "um croissant e um chazinho, chá verde", diz, entre risos.

Do lado de cá, redação do DN nas Torres de Lisboa, a ementa inclui também um croissant, acompanhado de um expresso. Se não fosse a pandemia, a escolha de Otilia para lugar da conversa seria junto à sede da Fulbright, que fica perto da Assembleia da República. "Há ali no Conde Barão um cafezinho, um snack bar, com fabrico próprio, com uns bons croissants e um bom sortido húngaro. É a pastelaria Conde", conta esta licenciada em Relações Internacionais, que estudou no ISCSP (eu entrei para Comunicação Social estava ela a sair) e que desde 2001 trabalha na entidade que mais faz pelo intercâmbio educacional entre Portugal e os Estados Unidos. Conhecemo-nos há uns anos, já a entrevistei por ocasião dos 60 anos da Fulbright em Portugal e ainda em novembro do ano passado o DN publicou um artigo de opinião de Otília, referindo-se a dados pré-covid, com o título "Portugal recebe mais estudantes americanos do que nunca". Tinham sido pela primeira vez mais do que mil num ano.

O tema Fulbright voltará a esta conversa, até porque o Programa, que deve o nome a um senador do Arkansas que acreditava na educação para promover a imagem da América e a paz global, está a celebrar os 75 anos. Nasceu de uma proposta de William Fulbright mal tinha acabado a Segunda Guerra Mundial e pouco a pouco vários países foram sendo incluídos, com Portugal a juntar-se em 1960, o ano em que John Kennedy foi eleito presidente.

Por coincidência, e comento isso com Otília, a publicação deste Brunch com... coincide com os 60 anos exatos da maior manifestação anti-americana em Portugal, apresentada como espontânea mas promovida pelo salazarismo em protesto pelos Estados Unidos não terem sido solidários nas Nações Unidas quando começou a guerra em Angola. Foi fotografia de primeira página no DN da altura.

Citaçãocitacao"Tento encarar a política como uma componente de serviço público. Considero que a participação política em democracia é algo muito nobre e a nível local ainda de maior impacto. Os resultados veem-se ou não, os eleitos estão muito mais expostos às críticas. Sempre separei a atividade política da profissional e estou na política por envolvimento na minha comunidade. Também acho importante a questão das mulheres e dos seus direitos e isso ganha ainda mais relevo quando a pandemia vem colocar de novo a questão da conciliação entre família e trabalho", declara Otília.



Claro que Otília já leu sobre o assunto, basta pensar o que foi a sua licenciatura. E é mesmo sobre o curso que falamos um pouco. "Relações Internacionais apareceu de forma muito singela. Eu era boa aluna, tinha boas notas, e não tinha nenhuma vocação predeterminada. E portanto entrei num curso que na altura devia ter a nota mais alta das ciências sociais porque achei que era um bom curso para ter mais cultura geral". Confessa nunca ter visto antes o ISCSP, que ficava então no Palácio Burnay na rua da Junqueira, até porque só vinha muito de vez em quando a Lisboa e sempre com a mãe ou o pai para ir ao médico. "A primeira vez que fui sozinha a Lisboa foi depois de saber que tinha entrado para a universidade. Apanhei o comboio da linha do Oeste, que tem uma estação no Sabugo, e depois ia no 60 da praça da Figueira até ao ISCSP", conta. Hoje o comboio é muito menos frequente e do Sabugo para Lisboa, 25 quilómetros, usa-se mais o carro, via IC19 ou A16, sublinha a entrevistada.

Foi a descoberta de um novo mundo, admite Otília. E confirmo, pois senti o mesmo vindo de Setúbal para Lisboa estudar. Comento alguns professores de peso, como Adriano Moreira ou Óscar Soares Barata. "E o Silva Cunha, que tinha sido ministro do Ultramar", acrescenta. Sim, como antigo Instituto ligado aos Estudos Ultramarinos (ISCSPU) a faculdade, hoje parte da Universidade de Lisboa e integrada no campus da Ajuda, tinha muitos professores que vinham do antigo regime e ligados ao CDS, mas concordamos que isso não influenciava a liberdade de debate nem a qualidade do ensino. E até havia surpresas, como a viagem de finalistas do curso de Otília: "Fomos à União Soviética. Foi em 1989 e ainda era um país comunista. Objetivo era depois um grupo de estudantes deles vir a Portugal mas não aconteceu. Para irmos tivemos de pedir ajuda à Associação de Amizade Portugal-União Soviética. Era a Perestroika, com Gorbachev a tentar modernizar o sistema, mas sentimos tudo muito controlado, até quando tivemos encontros com estudantes. O nosso tradutor estava sempre nervoso", relembra, rindo.

Ser diplomata nunca foi sonho, apesar de ter colegas que concorreram e hoje estão na carreira. "Queria continuar a viver em Portugal. E também queria arranjar um trabalho para não continuar a pesar no orçamento familiar. Tive alguns empregos aqui na zona, mas depois percebi que tinha de ir para Lisboa trabalhar. O primeiro emprego mesmo a sério foi como assessora técnica na Câmara de Comércio e Indústria de Angola", explica.

Além do curso no ISCSP, estudou também Cooperação e Desenvolvimento Internacional no ISEG e, mais recentemente, Políticas Públicas no ISCTE, sendo que nestes últimos 20 anos todos os estudos tiveram de ser conciliados com a Fulbright, para a qual entrou como assistente de comunicação "uma semana antes do 11 de Setembro", sublinha, e depois de tudo já ter passado, e os atentados terroristas não terem afetado os bolseiros portugueses, recorda-se de pensar, naqueles momentos terríveis de pressão, "onde é que me vim meter".

É dessa época que devo conhecer Otília. O seu antecessor à frente da Fulbright Portugal, o Paulo Zagalo-Melo, foi meu colega num mestrado em Estudos Americanos e hoje é professor nos Estados Unidos. Nesse mestrado tive dois professores vindos no âmbito do Programa Fulbright, o antropólogo Tim Sieber e o historiador Tim Walker. Os portugueses do curso, Laura Pires e Mário Avelar, também Fulbrighters e do melhor que há na academia portuguesa, marcaram-me também muito, mas destes dois americanos recordo-me de como promoviam o debate de ideias sobre a sociedade americana. Por exemplo, estudar a Guerra Civil Americana implicava ler diferentes escolas historiográficas a analisar as causas do conflito.

Otília reconhece logo os nomes Sieber e Walker. O Programa Fulbright passa por enviar bolseiros para os Estados Unidos mas também por receber americanos cá. E podem estudar, investigar e ensinar. Ou fazer mais do que uma delas. "O impacto da pandemia acabou por ser maior do que o do 11 de Setembro, até porque afeta os dois países. Os bolseiros portugueses em geral permaneceram lá, mas os americanos voltaram a casa. Agora só está em Portugal uma estudante de mestrado no Porto. Mas contamos com números recorde a partir de setembro. E é curioso que no início os americanos procuravam muito a área das ciências sociais e humanas mas agora cada vez mais vêm para áreas científicas, para investigação laboratorial em Portugal, o que mostra a subida da qualidade do ensino no país ", comenta.


É também o grande prestígio das universidades americanas (oito das dez melhores do mundo, mais de metade das primeiras 50, segundo o Xangai ranking) que atrai os bolseiros portugueses. "E conta muito igualmente a atração pela cultura americana, pela música, pelo cinema, e o programa pretende mesmo que haja imersão cultural, por isso se facilita o visto familiar e há quem leve a mulher, o marido ou os filhos".

Uma situação curiosa são os casais Fulbright. "Há muitos casos, de todo o género. Portugueses e americanos bolseiros que se conhecem por causa dos estudos e casam entre eles ou portugueses e americanos que por estarem no outro país se apaixonam por alguém mesmo não bolseiro e acabam por criar uma família. Tenho trocado impressões com diretores de outras comissões nacionais Fulbright e confirmam-me que também nos seus países acontece muito", nota Otília, cuja primeira visita aos Estados Unidos aconteceu em 2004, como diretora interina (desde 2007 é diretora efetiva) e que, a rir, comenta "fui primeiro à União Soviética do que à América". Foi uma sorte, em 1991 deixou de haver União Soviética, digo eu, que fui a Moscovo uma vez, mas já no tempo da velha Rússia outra vez.

Há uma regra nas bolsas Fulbright que é não poder um visto de estudante depois transformar-se em visto de trabalho. O bolseiro nos Estados Unidos terá sempre de voltar ao país de origem dois anos antes de pedir um visto de trabalho. Objetivo é evitar que um programa de soft power seja acusado de esconder uma caça aos cérebros. De qualquer forma, além de reforçar as relações bilaterais, o Programa Fulbright "ajuda muito a desfazer estereótipos sobre a sociedade americana", salienta Otília, que ela própria admite conhecer muito melhor os Estados Unidos graças ao trabalho que faz "mas ao mesmo tempo o contacto com os americanos reforça muito a minha identidade como portuguesa".

Sabendo bem separar as águas, a diretora da Fulbright Portugal tem também um envolvimento desde há muito na política autárquica (juntas de freguesia e deputada municipal) e desde o ano passado é Coordenadora da Estrutura Concelhia das Mulheres Socialistas de Sintra. "Sou uma mulher de esquerda, por uma confluência de vários factores. Na família, o meu pai, um tio também que me influenciou muito, sempre foram do PS e eu despertei para a política em 1986 nas presidenciais que Mário Soares ganhou a Freitas do Amaral. Nasci em 1967 e foram as primeiras em que votei. E mais do que votar, participei na campanha. Depois quando Edite Estrela foi candidata a Sintra voltei a sentir o apelo e foi nessa altura que me fiz militante". Passa-me pela cabeça que o nosso ISCSP já deu dois presidentes de câmara a Sintra, Fernando Seara pelo PSD e atualmente Basílio Horta pelo PS.

"Tento encarar a política como uma componente de serviço público. Considero que a participação política em democracia é algo muito nobre e a nível local ainda de maior impacto. Os resultados veem-se ou não, os eleitos estão muito mais expostos às críticas. Sempre separei a atividade política da profissional e estou na política por envolvimento na minha comunidade. Também acho importante a questão das mulheres e dos seus direitos e isso ganha ainda mais relevo quando a pandemia vem colocar de novo a questão da conciliação entre família e trabalho", declara Otília.

Por falar em comunidade, voltemos ao Sabugo. Otilia tem muito orgulho da sua identidade: "sou uma saloia. Para nós que somos saloios não é pejorativo, é até uma questão de identidade. Esta aldeia é muito antiga, tem origens mouras, e desenvolveu-se muito naquilo que é a especialização da zona saloia, fornecer serviços e produtos a Lisboa. Ainda é muito agrícola, mas chegou também a ter uma grande fábrica de eletrodomésticos, a Portugal, e outra da Siemens. A minha avó era lavadeira e as lavadeiras iam a Lisboa recolher a roupa, lavavam e iam entregar novamente às freguesas. Havia também os carroceiros que faziam o transporte até à capital. É a nossa herança apesar de haver cada vez mais gente a viver cá que não tem essa perceção. Mas há muita gente que se lembra. E temos o rancho folclórico das lavadeiras do Sabugo".

Casada com "o vizinho de duas portas à frente" (risos), Otília tem uma filha e um filho já crescidos. Construiu uma casa "com um quintal grande" perto da onde viveu em criança e é no Sabugo que diz se sentir bem, mesmo que a profissão a obrigue a trabalhar em Lisboa e a faça voar muitas vezes até grandes cidades da América.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt