"Oksana, a tua missão é sobreviver e cuidar dos teus filhos"

Duas mulheres ucranianas partilham o nome Oksana e aprenderam com as avós, da invasão nazi ou do terror soviético na Sibéria, a resistir sem lágrimas. Chegaram esta semana a Cascais entre outros 220 refugiados que continuarão a ser apoiados.
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Ainda há poucas semanas os longos cabelos de Oksana Kobeletska ondulavam cintilantes num vídeo da L'Oréal, publicado na sua conta de Instagram, onde é uma das influencers mais famosas de Odessa, no papel de mãe solteira de seis filhos, cinco deles gémeos. Hoje, 14 dias depois de ter decidido fugir da cidade costeira ucraniana para onde se antecipam duros ataques das tropas russas, acordou num centro temporário de acolhimento de refugiados, em Cascais, Portugal, com os seus seis filhos de cinco e oito anos e a mãe.

Não há brilho. Nem nos cabelos, nem nos olhos turvos de um azul frio. Mas há paz. "Ainda não consigo acreditar no que está a acontecer, sinto-me a viver uma realidade paralela", diz a mulher de 42 anos e 1,80m que prefere acreditar na versão encantada que conta aos filhos quando lhe perguntam o que está a acontecer: "Estamos de férias, queridos, voltaremos quando for seguro". Afinal, a mãe já está mais do que habituada a colorir a dureza da realidade aos filhos, pois quando os cinco gémeos fizeram um ano, o pai deixou-os.

É também aqui, neste novo centro de reabilitação para pessoas com deficiência - ainda por inaugurar - que Oksana Kyrychok, 40 anos, outra mãe ucraniana de duas crianças, veio conhecer refúgio, no âmbito de uma operação de resgate organizada pelo município de Cascais, que fretou um avião para o seu transporte desde Bucareste a Lisboa.

Desenvolta e fluente em inglês, Oksana é gestora de projetos uma organização de solidariedade ucraniana. Por isso sente-se duplamente desconfortável no papel de refugiada. "Não preciso de mais nada, obrigada, sinto-me frustrada porque estou habituada a ser eu a tratar das pessoas com necessidades e agora aqui estou eu, sem poder apoiar ninguém", diz quando lhe perguntamos se há algo em que possamos ajudar.

Para trás ficam 23 dias de fuga desde Kiev até à fronteira romena e, antes disso, cerca de uma semana na região de Ivano-Frankivsk.

"Logo no primeiro dia da guerra, a 24 de fevereiro, tinhámos ouvido tiroteios, mas não reagimos logo, ficámos em casa e eu comecei a fazer um kit de emergência com roupa e comida para três dias".

Foram para a cave do prédio. Mas, depois do segundo dia, "o desespero começou a ser maior quando vimos explosões e começámos a saber de tropas russos que eram soltados de páraquedas para se infiltrar na cidade e percebemos que não tínhamos nenhum local seguro para fugir dentro da Ucrânia, pois a casa da minha mãe mais a norte está muito perto da fronteira russa e era muito arriscado viajar por cidades que estavam a ser bombardeadas".

Neste momento, eles estão sem luz, água e aquecimento e agora também sem comunicações e internet. "Estou há 4 dias sem notícias deles, é muito angustiante", confessa, sem nunca deixar transparecer o medo e desespero que sente. Aqui, diz, "os soldados russos usam a população como escudo, escondem os tanques no solo e fazem fogo a partir das zonas onde as pessoas vivem". E o terreno está minado.

O marido, motorista de profissão, teve de ir para um centro militar, como todos os homens entre os 18 e os 60 anos, fazer-se soldado numa semana. "Ele, coitado, sente-se muito frustrado, não queria matar ninguém e sente-se culpado por estar longe de nós e de não poder ajudar a sua mãe de 75 anos, doente, numa aldeia que já nem acesso a medicamentos tem".

Há uma frase que a septuagenária lhes diz com uma tristeza serena e que nunca lhes sai da cabeça: "Nasci na guerra em 1944 e vou morrer na guerra de 2022".

As memórias da guerra e dos campos de concentração do regime soviético que os mais velhos contaram aos filhos e netos são o aditivo no sangue que corre nas veias da resistência ímpar do povo ucraniano. Estas duas mulheres são bem o exemplo disso. Ambas sempre souberam do que o regime russo era capaz, sempre souberam que são filhas ou netas da guerra, só não esperavam que os seus filhos também o fossem. Ambas têm família na Rússia e, no caso de Oksana Kyrychok, as relações ficaram cortadas desde 2014, aquando da anexação da Crimeia: "Eles não acreditavam no que contávamos".

Já a mulher de Odessa diz ter percebido logo em 2009, quando trabalhou algum tempo em Moscovo, que "a propaganda nos media russos já estava em marcha para justificar as invasões que vinham a seguir". Mas nunca imaginou que quisessem ocupar toda a Ucrânia.

Como estão a lidar com as emoções que esta tragédia provoca e como conseguem transparecer tanta força e auto-controlo, sem chorar? "Numa situação desta dimensão nem consigo chorar, só pensar no que tenho de fazer e resolver para voltar o mais rápido possível, quando a guerra acabar", diz Oksana, a enóloga de profissão, cuja maternidade king size tornou bloguer, ao mesmo tempo que esconde o rosto para limpar uma lágrima indisciplinada e voltar à pose de quem combate o horror com a arma da dignidade. A mesma que os seus avós usaram na Sibéria.

Também a Oksana de Kiev ainda se lembra bem da avó que viveu o acupação alemã da Ucrânia e que lhe traçou o rumo desde pequena: "A tua missão é sobreviver e cuidar dos teus filhos".

Foi na segunda-feira à noite que estas duas mulheres e os seus filhos aterraram no aeroporto militar de Figo Maduro, em Lisboa, num avião fretado pelo município de Cascais. A bordo vinham um total de 229 ucranianos, dos quais mais de 100 crianças, que ficaram maioritariamente instalados num centro de acolhimento temporário de maiores dimensões, em Alcabideche. A operação de resgate, liderada pelo vice-presidente da autarquia, revelou-se ainda mais complexa do que parecia, pois houve inúmeras situações delicadas, como a de "um rapaz de 14 anos que estava registado para embarcar ter sido detido porque trazia uma arma de brincar, mas munições de verdade que roubou ao pai - e acreditava que tinha de lutar. Tivemos de coordenar tudo com o Ministério de Administração Interna romeno, pois a situação não podia ser vista sem contextualização", conta Miguel Pinto Luz.

Foram também muitas as vezes em que o coração teve de falar mais alto do que as regras estipuladas, e apesar de já não haver lugar no avião para literalmente mais ninguém, "depois de dizer a uma mãe com um bebé ao colo que já não havia lugar, voltei mais uma vez atrás a dizer que afinal podia e negociamos uma excecionalidade com a TAP", exemplifica o chefe da equipa de 10 pessoas (seis da autarquia e outros quatro entre médicos, enfermeiros e psicólogos) que estiveram cinco dias na Roménia a trazer deslocados de vários pontos da fronteira rumo a Bucareste.

Miguel Pinto Luz não consegue esconder a emoção e como toda esta situação o marcou. Algo que está patente no compromisso da autarquia, que alocou um milhão de euros para o apoio a estas famílias e também para assegurar o seu repatriamento.

Uma das situações mais chocantes, para Pinto Luz, foi ouvir o testemunho dos refugiados que fugiram da cidade de Mariupol pelos corredores controlados pelas tropas russas e "eram obrigados a entregar os seus telemóveis para apagar todas as fotos com as marcas da destruição da guerra, para não servirem de prova". Só que, ao fazerem isso, tinham também de apagar todas as imagens da sua vida, dos filhos, dos pais, dos maridos, alguns dos quais sem saber se alguma vez os voltarão a ver. "É mesmo muito doloroso para eles, como se até as memórias das suas vidas lhes roubassem", conta, emocionado.

Chocante foi igualmente, para o autarca cascalense, a "falta de sensibilidade com que o Alto Comissariado para as Migrações lidou com a chegada deste grupo de refugiados no aeroporto de Figo Maduro", na noite de segunda-feira, obrigando-os a uma espera adicional de três horas para interrogatórios, só deixando sair 50 pessoas de cada vez do avião, a quem já levava dias e semanas em fuga. "Espero que não se repita noutros voos que cheguem a Portugal", disse.

Até agora, o balanço da operação de resgate está a correr bem. Das cerca de 200 pessoas que foram colocadas no centro de acolhimento temporário de Alcabideche no primeiro dia, já só lá estão 40, significando que as outras foram para casa de familiares, amigos ou famílias de acolhimento na comunidade de Cascais, disse. "Agora, é trabalhar para tratar de alojamento e emprego para estas pessoas".

carlag@globalmediagroup.pt

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