"O que pedimos é que fiquem em casa. Senão, não aguentamos"
Ao fim de dez meses, são quase dez mil os nomes de quem um dia entrará para a história como vítima da covid-19, da pandemia que já vai na terceira vaga e que atinge agora Portugal da pior forma. Ontem, morreram 219 pessoas, no dia anterior 218, ao todo há já 9645 vítimas mortais, e as previsões feitas pelos matemáticos indicam que o pico de mortalidade ainda está para chegar.
A equipa de professores da Faculdade de Ciências referiu ao DN que poderemos chegar ao dia 16 março, um ano após a primeira morte por covid no nosso país, com 20 mil vítimas.
Os últimos dias têm sido duros. Do dia 4 até ontem, o número de mortos passou dos 78 para os 219, mas o que aí vêm também o vão ser, "vai morrer muito mais gente do que até agora", disse o professor Carlos Antunes ao DN na terça-feira. "Irão morrer mais de dez mil pessoas até meados de março." Isto é o que dizem os números, mas a verdade é que a realidade tem-se vindo a antecipar aos números, e com a taxa de letalidade a aumentar desde o dia 4 de janeiro. Segundo nos explicaram, esta passou de 1,6 para 3,4.
O número de mortes é "impressiona e faz-nos refletir", afirma Sandra Brás, médica internista e coordenadora da Unidade de Internamento de Contingência de Infeção Viral Emergente do Centro Hospitalar Lisboa Norte. A trabalhar há 30 horas, como tem acontecido frequentemente nos últimos tempos, faz um apelo: "Já não sei como poderemos passar mais esta mensagem à população. Só pedimos que fiquem em casa, senão não aguentamos."
Nuno Catorze, coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) e de Urgência do Centro Hospitalar do Médio Tejo, relembra que "os profissionais de saúde não gozaram férias, que também adoecem, que também são infetados e que também morrem". Se os comportamentos não mudarem, "vamos continuar a trabalhar, mas com menos qualidade assistencial".
Os relatos destes dois médicos são feitos ao DN no dia em que o país registou 14 647 casos de infeção, mais um número que, obviamente, também os assusta, pois quer dizer que daqui a uns dias uma boa parte destes casos vão chegar às enfermarias e às UCI. Ontem, os internamentos em enfermarias estavam nos 5493, mais 202 do que no dia anterior, e em 681 nos cuidados intensivos, mais 11 do que no dia anterior também. Com o número de infeções entre os 14 mil e os 16 mil, devendo este último ser atingido já nos próximos dias, os internamentos devem chegar aos 6500 nas enfermarias e aos 800 ou 900 em UCI.
Para Sandra Brás, de 46 anos, no combate à pandemia desde o início, "o número de infetados e de mortos é impressionante" e já vem de há umas semanas para cá. Antes, conta, "tinha dias ou semanas em que não reportava um único óbito, agora chego a ter quatro em 24 horas. Para quem está a trabalhar há 30 horas seguidas não é fácil". A maioria das vítimas, e como comprovam os números oficiais da Direção-Geral da Saúde, são idosos como mais de 80 anos - das 9465 mortes registadas até ontem, 6380 eram de pessoas acima dos 80 anos.
Na unidade de Sandra Brás, estavam ontem internados 74 doentes com covid - mas o número total de internados no seu hospital era de 232, destes 48 estavam em cuidados intensivos. Em enfermaria estão os doentes mais idosos, acima dos 70 anos e já com outras "doenças de base, sobretudo doença cardíaca, respiratórias e renal, e alguns com várias destas associadas". Mas nem sempre são estes que morrem. E explica: "Muitos contraíram a infeção do SARS-CoV-2, mas nem a desenvolveram de forma grave, alguns estavam assintomáticos, mas o vírus descompensou a doença de base e não se conseguiu travar este processo".
Uma experiência que é diferente das UCI, já que a média de idades nestas é mais baixa. Na UCI dirigida pelo intensivista Nuno Catorze, a média de idade no internamento era de 48 anos, "temos doentes dos dos 18 aos 76 anos", explica. Ali, as mortes também são menos do que nas enfermarias, porque nem todos os doentes têm critérios para receber cuidados de medicina intensiva - o que prevalece é a capacidade de sobrevivência com qualidade com que o doente fica depois dos tratamentos recebidos.
Mas, nas últimas semanas, as mortes também têm sido mais do que o normal. "Tivemos dois óbitos numa semana, dois homens de 76 e 78 anos com doença covid crítica, mas sem patologias associadas". Na unidade de Abrantes, o perfil das vítimas seja marcado sobretudo por doentes que têm obesidade ligeira ou mórbida, insuficiência cardíaca e diabetes". Mas, reconhece, que "nas enfermarias já é diferente, são doentes mais idosos e já tivemos um dia com dez óbitos".
O perfil das vítimas não tem mudado ao longo da pandemia, e é um perfil quase universal: os mais idosos, e dentro dos mais novos, doentes com patologias associadas. Mas, ontem, na Grande Lisboa, registou-se a morte de um jovem de 27 anos, sem patologias associadas, o oitavo na faixa etária dos 20-29 anos. Sandra Brás e Nuno Catorze receiam o que possa vir aí com mais de 14 mil casos de infeção por dia. "Claro que quando temos 14 mil casos diários é obvio que isto vai ter um reflexo nos próximos dias em número de óbitos", refere a médica do Santa Maria. A média de óbitos na sua unidade, tem sido de dois por dia, nas últimas semanas, mas "já tivemos quatro em dois dias seguidos, doentes com mais de 75 anos e já tive doentes com 90 anos, acamados, dependentes e com doenças cerebrovascular".
Nesta fase da pandemia, a médica internista diz estar sobretudo preocupada com o que tem assistido nos últimos dias, "doentes que têm sintomas e que pensaram ser renite ou sinusite, que queriam passar o Natal e o Ano Novo em casa, e que quando vieram já estavam num estado avançado". Por outro lado, "as imagens divulgadas com ambulâncias à porta dos hospitais estão a gerar medo na população. E isso preocupa-me. Tive telefonemas de doentes a dizerem-me que não vinham ao hospital porque iriam esperar muitas horas. As pessoas têm de saber que, se for caso disso, entramos nas ambulâncias para os observar. Que se for uma situação grave serão observados e tratados. Nenhum doente ficará sem ser observado."
Ao fim de dez meses, Sandra Brás diz sentir-se preocupada como profissional de saúde com a situação que estamos a viver, mas mantém a confiança na sua equipa. "Estamos a trabalhar da mesma forma, estamos a conseguir manter o nosso rigor, método e o foco nos doentes, mas estou preocupada porque estamos todos cansados. Mas quando há algum dia em que estamos menos capazes, ainda conseguimos reconhecer que precisamos de ser substituídos nas nossas tarefas". Como cidadã, a médica diz sentir-se "desiludida e muito revoltada, porque há conceitos básicos de civismo que se cada um respeitasse talvez não tivéssemos a viver esta situação". E reconhece: "Já não sei muito bem o que se pode fazer para passar a mensagem. Os profissionais ainda podem fazer um esforço, mas depois há tudo o resto, as paredes dos hospitais não esticam as camas não se multiplicam e os ventiladores também e nada disto funciona sozinho. São precisos profissionais".
Nuno Catorze, que começou a pandemia com uma capacidade de oito camas para covid na sua UCI, tinha ontem 16 doentes internados - "temos duas vagas que já as libertámos para o sistema e que devem ser rapidamente ocupadas" - acredita que há sempre forma de aumentar a capacidade. "A nível de enfermarias, estávamos a trabalhar com cinco, cada uma com 28 camas, na segunda-feira abrimos a sexta também com 28 camas". Ao todo, são 168 camas para internamento covid, mas "com capacidade para aumentar, mas se me perguntar se vamos ter a mesma qualidade assistencial, direi que não é possível".
Para o intensivista, "Portugal demorou a chegar a uma situação igual à de outros países, mas chegou", e o que vem a seguir "é uma hecatombe", mas ele diz estar hoje "menos preocupado com quem não é meu familiar, porque o que vejo são comportamentos que nos fizeram chegar até aqui".