O PGR de São Tomé e Príncipe que gosta de ouvir fado de Coimbra
"Quem passa por Coimbra faz uma formação, faz duas até. Faz uma de vida e faz uma académica. A Universidade tem uma tradição de muitos séculos. E esta tradição tão antiga marca-nos. É o toque saudoso do fado, são as praxes académicas, é o espírito de irmandade que se constrói”, conta Kelve Nobre de Carvalho, Procurador-Geral da República de São Tomé e Príncipe, que em casa diz continuar a ouvir fado de Coimbra. “É das músicas que gosto de ouvir em momentos de lazer e de descanso”, sublinha o PGR.
A ligação a Coimbra levou a que aceitasse ser embaixador alumni da mais antiga universidade portuguesa. “Tenho auxiliado o vice-reitor, João Nuno Calvão da Silva, um grande amigo, na exposição do bom nome da Universidade nos países de língua oficial portuguesa”, acrescenta Nobre de Carvalho. Foram os estudos na Escola Portuguesa de São Tomé e Príncipe até ao 12.º ano que o conduziram aos exames nacionais e à Universidade de Coimbra, para estudar Direito. Um tio, que se formou em Medicina, teve uma importância decisiva, pois desde criança o PGR são-tomense ouvia falar com “romantismo” de Coimbra, universidade muito prestigiada na África lusófona.
Depois da licenciatura, Nobre de Carvalho chegou a inscrever-se na Ordem dos Advogados em Portugal, e fez um estágio nas Finanças em Coimbra. O regresso ao país natal surgiu de uma conversa muito especial. “Fui desafiado por um professor, o saudoso João Calvão da Silva, pai do atual vice-reitor, que olhou para mim e disse, ‘olha, tu és mais útil no teu país, em São Tomé, do que estando aqui, e por favor, se queres uma última grande lição de um professor teu amigo, volta imediatamente para São Tomé’. E assim cumpri, como um bom aluno que era”, conta, entre risos. “Um ano depois, ele foi lá visitar-me, já eu era procurador adjunto do Ministério Público”.
A conversa decorre num café perto da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, onde o PGR está de passagem a caminho do seu país, depois de três semanas nos Estados Unidos, num Programa de Intercâmbio (IVLP) centrado na questão da Transparência e da Responsabilidade, uma causa que lhe é muito querida. “Foi uma enriquecedora experiência de aprendizagem, até por ter coincidido com as eleições presidenciais americanas”.
Nascido em 1981, casado e pai de uma filha, Nobre de Carvalho vê com otimismo o futuro de São Tomé e Príncipe, um país de 200 mil habitantes que em 2025 celebrará meio século de independência em relação a Portugal: “A nível da alternância política, a nível do sistema de multipartidarismo, o direito ao voto está muito presente na cabeça dos são tomenses. A representante das Nações Unidas para a África Central chama São Tomé de bom aluno, comparando obviamente com todo o resto à nossa volta. Falta é edificar mais as instituições democráticas e empoderá-las, para que elas possam estar à altura dos seus desafios, a partir da lei que descreve quais são. E esse empoderamento das instituições é sim um desafio constante, mais a autonomia económica e financeira do país”.
O mandato do PGR, iniciado em 2018, foi prolongado até 2025, exatamente por estar a trabalhar num projeto para reformar a Justiça de São Tomé e Príncipe. “Desde 2019, com a coordenadora das Nações Unidas, Zahira Virani, e o então presidente Evaristo Carvalho, numa altura em que era primeiro-ministro Jorge Bom Jesus, decidiu-se escrever uma carta ao secretário-geral António Guterres afirmando haver vontade política e institucional de todos para a transformação e modernização da Justiça de São Tomé. Isso foi levado muito a sério por nós no Ministério Público. E a seguir fizemos um pedido às Nações Unidas para que contratasse alguém que nos orientasse nesse processo. Desse modo, a Doutora Joana Marques Vidal durante um ano trabalhou connosco para a modernização e evolução do Ministério Público. O papel dela foi no âmbito da ONU, mas foi exercitada a cooperação bilateral que existe entre os Ministérios Públicos de Portugal e de São Tomé. Foi um grande contributo que nos deu. Senti muito a perda dela, há poucos meses.”
Houve, entretanto, um caso complicado em São Tomé, uma tentativa de golpe mal explicada a envolver militares e ex-militares, políticos e interesses imobiliários, em que o PGR Nobre de Carvalho pediu ajuda à PJ portuguesa para investigar. “Em 2022, fomos confrontados com um atentado às instituições democráticas que culminou com a morte de quatro pessoas. O Ministério Público iniciou a investigação completa e cabal do sucedido. Mas conscientes da nossa incapacidade ao nível de técnicas e meios de obtenção de prova, lançámos mão aos instrumentos internacionais que existem, a Convenção da CPLP em auxílio em matéria penal, e mais a cooperação bilateral entre as instituições: Polícia Judiciária de São Tomé e Polícia Judiciária de Portugal, Ministério Público de São Tomé e Ministério Público de Portugal. E Portugal deu uma resposta positiva, pois enviou seis agentes da Polícia Judiciária e tivemos também o auxílio de três procuradores do Ministério Público português”, explica. E acrescenta que o apoio da PJ, dirigida por Luís Neves, “fez toda a diferença numa investigação que foi conjunta. E depois, numa questão de transparência total, os relatórios foram disponibilizados ao público, coisa única em São Tomé, inclusive em África, inclusive a própria acusação.”
“O diretor Luís Neves tem apostado seriamente, não só com São Tomé e Príncipe, mas com todos os países delíngua oficial portuguesa, para incrementar a cooperação em matéria penal. O espaço lusófono é um espaço hoje em dia de livre circulação, praticamente, de pessoas com o visto CPLP. E a polícia tem que estar apta para efetivamente não haver zonas cinzentas em que os criminosos possam fugir e estar à vontade. Nessa perspectiva, o diretor Luís Neves, entendendo bem isso, tem feito uma cooperação muito intensa com todos os países de língua oficial portuguesa.”
No próximo ano, quando concluir a missão como PGR em São Tomé e Príncipe, o que é que se imagina a fazer o antigo estudante de Coimbra? “Dentre as muitas perspetivas que podem abrir-se, uma das quais eu gostaria de experimentar são os organismos internacionais”, responde Nobre de Carvalho.