Sociedade
08 outubro 2022 às 08h05

"O meu pai costumava dizer que eu nunca veria o Real Madrid ganhar uma taça dos campeões. Tive de esperar mais de 30 anos"

Enrique Hidalgo, Diretor-Geral do El Corte Inglés em Portugal.​​​​​

Las Nubes, o nome do restaurante do El Corte Inglés de Lisboa, não só reflete as alturas, afinal está no último piso, como deixa no ar uma promessa gastronómica. Frequento mais o balcão do Méson Tapas, sete pisos abaixo, mas já aqui almocei. E admito que se a expectativa era elevada, ainda por cima com o diretor-geral, Enrique Hidalgo, como anfitrião, a paella de marisco esteve à altura. Curiosamente, foi Susana Santos, a diretora de Comunicação e Relações Institucionais do El Corte Inglés em Portugal, que alinhou comigo na escolha. Enrique acabou por pedir um linguado grelhado, não sem comentar que a mãe é de Valência e portanto nada tem contra o famoso prato de arroz. E até conta que se hoje a versão com frutos do mar se popularizou, na origem a paella à valenciana era bem humilde, juntando-se só coelho e caracóis.

De repente, estando nós numa das empresas que exibem a pujança da atual Espanha, falamos um pouco desse passado duro, que marcou o pós-Guerra Civil de 1936-1939, ou seja, boa parte da era franquista. Nascido em Madrid em 1965, o diretor-geral do El Corte Inglés em Portugal era uma criança quando foi anunciada a morte de Franco, mas recorda-se bem desse dia, até porque não houve aulas: "Nem nesse dia, nem nos seguintes. Estive três dias sem aulas. Lembro-me da sensação de me levantar à mesma hora de sempre mas a minha mãe dizer que não havia aulas, embora eu não percebesse porquê. Foi então que anunciaram a morte de Franco e, nesse momento, para um miúdo de 10 anos, sem acesso a conversas de política, a alegria maior foi não ter escola. Foi assim até que tomou posse o rei Juan Carlos, e com ele, mas eu não sabia disso, chegaria a democracia."

Em casa dos Hidalgos - pai já nascido em Madrid mas com origens andaluzas, de Granada, e mãe de Valência - não se falava de política, muito menos de que lado tinha estado cada avô ou cada tio durante a guerra entre o governo republicano e os insurretos nacionalistas. Por vezes, em muitas famílias, mais do que a ideologia, contava a geografia, se se tinha ficado em território controlado pelo governo da República ou pelo "bando sublevado", como chamam os historiadores às tropas de Franco.

É servido um tinto do Dão, M.O.B., que tanto Enrique como Susana elogiam e eu só posso concordar. E depois de um pequeno trago, e fazendo um exercício de memória, Enrique explica, comentando a ausência de conversas políticas em casa: "À medida que a democracia foi avançando em Espanha é que me comecei a dar conta das coisas e lembro-me de termos recebido uma visita de um familiar que tinha vindo do México. O que pensávamos era que esse familiar tinha ido para o México para trabalhar, mas afinal era exilado político, que tinha dito que não voltaria a Espanha até que Franco morresse. A visita desse tio do meu pai foi muito emocionante, mas isso contrastava com a questão de o meu avô, fiquei a saber, ter passado por campos de concentração republicanos durante a Guerra Civil. Mas quando se tem 10 anos pode não se saber muito da história da família, mas então fui descobrindo-a pouco a pouco."

Conheci Enrique num almoço organizado pelo IPDAL, Instituto para a Promoção da América Latina, e por coincidência voltámo-nos a cruzar no dia seguinte, quando eu vinha a sair do Pestana Palace, onde entrevistei o presidente do governo valenciano e o diretor do El Corte Inglés entrava para uma reunião de trabalho com o próprio Ximo Puig. Assim, creio que o meu anfitrião não terá ficado surpreendido pelo meu interesse pela história de Espanha, sobretudo a do século XX, com tantos paralelos com a de Portugal, desde a ditadura até à entrada na União Europeia. E quando comento a inteligência de Juan Carlos (que Franco quis como sucessor em vez do pai, D. Juan, conde de Barcelona) e dos políticos das várias cores a gerir a sensibilidade dos militares, dando o exemplo de se aproveitar o fim de semana de Páscoa de 1977 para legalizar o PCE, Enrique reage, pois se há dia que testemunhou foi esse: "Foi num sábado que se chama em Espanha sábado de glória. Nessa altura teria 11 ou 12 anos e andava com o meu pai pela rua principal do bairro, um bairro operário, e foi quando vimos carros com a bandeira do Partido Comunista. Os carros passavam para cima e para baixo com as bandeiras vermelhas ao vento. Nunca tinha visto uma bandeira comunista e só aí o meu pai me contou que tinham acabado de legalizar o PCE."

Citaçãocitacao"A primeira coisa que me disseram quando entrei no El Corte Inglés foi que, se trabalhasse bem, poderia chegar até onde quisesse. Sempre me disseram que pensasse a longo prazo e almejasse alto. E isto não era apenas algo que se dizia, era algo que se via, porque podia estar a trabalhar e, de repente, um colega vendedor já tinha passado a chefe de departamento. Essa filosofia é algo que faz parte do nosso ADN e é uma das coisas de que nos orgulhamos muito."

Susana Ribeiro, a escanção do Las Nubes, vem cumprimentar-nos e perguntar se o vinho foi boa escolha e os nossos sorrisos de satisfação dizem tudo. Falaremos mais adiante da filosofia empresarial do El Corte Inglés, mas testemunho aqui aquilo que depois me será dito: conhecer o nome daqueles com quem se trabalha é vital para quem lidera. Tal como é o caso de Enrique - e também lá iremos -, são muitos os funcionários que fazem uma carreira toda a vida neste grupo, criado por um emigrante em Cuba que voltou a Espanha.

O objetivo deste almoço não é falar de política, mas é impossível perceber o percurso de Enrique e da empresa em que trabalha sem olhar para o progresso de Espanha no último meio século, que a põe no top 20 das economias mundiais, e, mais revelador ainda, no top 10 dos países com maior esperança média de vida.

Ao contrário de Portugal, em que o 25 de Abril foi uma revolução, em Espanha deu-se uma transição que poderia ter sido revertida pelo golpe de 23 de fevereiro de 1981, quando o coronel Tejero, da Guardia Civil, entrou de metralhadora em punho nas Cortes, sequestrando os deputados e o governo. Tendo ele então uma idade que lhe permitia já ter noção dos acontecimentos políticos, pergunto a Enrique como viveu o 23 de fevereiro. "Sim, nessa altura já era mais velho e estaria a estudar no equivalente ao 11.º ano. Tinham decorrido quase seis anos desde a morte de Franco e já tinha consciência do que era pertencer a uma sociedade democrática, do que era poder participar em eleições, e de repente dou-me conta de que poderíamos voltar atrás. Esse medo do que se poderia passar, toda a incerteza que rodeava o golpe, trazia questões sobre como se sairia o chefe de Estado, o rei. Naquele momento, mesmo os republicanos apoiaram Juan Carlos totalmente, e muitos deles apoiaram Juan Carlos até ao final dos seus dias. Poderia ter tomado o partido dos golpistas, mas o seu apoio à democracia foi tão oportuno e tão importante que o golpe não chegou a ir às últimas consequências", comenta, lembrando que Filipe, hoje rei, foi acordado para ver o pai comunicar através da RTVE aos golpistas, em toda a Espanha, para voltarem aos quartéis. Uma lição de como reinar. "O rei Juan Carlos vestiu a farda de chefe máximo das Forças Armadas e foi obedecido pelos generais", conclui. Elogiamos ambos Anatomia de um Instante, o grande livro que Javier Cercas dedicou ao 23-F.

Mudo de assunto, mas nem por isso para um menos quente, pois o futebol em Espanha é de paixões ainda mais fortes do que em Portugal. "Sou madridista e vou estar no próximo clássico, dia 16, com o Barcelona, com os meus filhos. Inclusive mantivemos os assentos no Santiago Bernabéu quando a família se mudou para Lisboa. O Real Madrid é uma paixão desde criança", diz o diretor-geral do El Corte Inglés em Portugal (armazéns em Lisboa e Porto). De repente, faço contas ao nascimento de Enrique e noto que aconteceu depois da série de cinco títulos de campeão europeu de futebol do Real, quando brilhavam Puskas e Di Stéfano, e que tinha só um ano quando a equipa somou a sexta vitória, para depois se seguir um jejum de três décadas. Enrique ri-se. "É verdade. O meu pai costumava dizer que eu nunca veria o Real Madrid ganhar uma Taça dos Campeões. Quando tinha 15 ou 16 anos, o Real Madrid chegou à final contra o Liverpool, mas perdeu. E lá me voltou o meu pai a dizer que nunca mais seríamos campeões da Europa. Só passados mais de 20 anos é que voltámos a ir a uma final, contra a Juventus, em 1998. O jogo foi em Amesterdão, fui sozinho assistir e essa foi a vez em que finalmente ganhámos. Lembro-me dos telefones, absolutamente precários, mas a primeira chamada que consegui fazer quando o Real Madrid se sagrou campeão foi para o meu pai. Nem sequer lhe perguntei se estavam todos bem em casa, nem lhe disse se eu estava bem ou não, a primeira coisa que lhe disse foi que afinal sempre tinha visto o Real Madrid ganhar uma Champions", recorda, feliz por a maldição ter desaparecido, pois o Real Madrid desde então já ganhou mais sete. Os filhos de Enrique, dois rapazes e uma rapariga, não se podem queixar de falta de razões para celebrar.

Um desses títulos foi conquistado em Lisboa, em 2014, e logo numa final 100% madrilena, pois o jogo foi contra o Atlético. "Sofremos muito. Mas ganhámos 4-1", recorda. No prolongamento viu-se um grande Real Madrid, onde jogava Cristiano Ronaldo, marcar três golos sem resposta, mas o empate que o permitiu chegou só nos descontos, pois aos 90 minutos o Atlético estava prestes a fazer a festa no Estádio da Luz. O DN, nesse dia, aproveitando a presença de uns 60 mil adeptos em Lisboa, fez uma edição em espanhol, como Susana bem se lembra, com o apoio do El Corte Inglés Portugal, que é, frisam, uma empresa portuguesa.

Enrique está há mais de 30 anos no grupo, Susana há mais de 20 (23, pois esteve dois anos em Espanha a formar-se para as responsabilidades em Portugal a partir de 2001). Existe esta tradição de carreiras que se confundem com vidas e tudo tem muito a ver com a própria origem da empresa: "El Corte Inglés representa um modelo de negócio que não existia em Espanha, fomos precursores e acompanhámos também a evolução da sociedade à medida que fomos abrindo mais centros comerciais. Chegámos a um ponto em que já recebíamos petições de cidades para terem o seu próprio El Corte Inglés. Numa cidade valia mais um El Corte Inglés que uma catedral numa qualquer praça. Foi César Rodríguez quem esteve na génese do El Corte Inglés, ou seja, ele não estava no negócio mas foi ele que trouxe os sobrinhos de Cuba, onde estavam emigrados. Depois, o sobrinho Ramón Areces comprou a alfaiataria El Corte Inglés e começou a construir o negócio. Passou logo de ser uma alfaiataria para ser um armazém, porque, quando se mudou o local, se compraram vários pisos. Foi algo inovador em Espanha, esta ideia de um armazém com departamentos específicos por produto. Eu comecei no departamento de malhas com 24 anos, no El Corte Inglés da Rua Preciados, em Madrid", conta Enrique, licenciado em Direito e com um mestrado em Gestão de Empresas. Não se considera uma exceção, pois são vários os diretores que progrediram na empresa.

"A primeira coisa que me disseram quando entrei foi que se trabalhasse bem poderia chegar até onde quisesse. Sempre me disseram que pensasse a longo prazo e almejasse alto. E isto não era apenas algo que se dizia, era algo que se via, porque podia estar a trabalhar e, de repente, um colega vendedor já tinha passado a chefe de departamento. Essa filosofia é algo que faz parte do nosso ADN e é uma das coisas de que nos orgulhamos muito. Por isso é muito fácil encontrar pessoas que trabalham aqui no El Corte Inglés há 10 anos ou mais. Aliás, não só é fácil como é algo que premiamos. Por exemplo, quando um colaborador faz 15 anos de casa, recebe uma insígnia de prata. Nessa insígnia vão inscritas duas palavras em latim: fidelitas et constantia, que definem muito bem a forma como nos relacionamos. Aos 25 anos de casa recebem uma insígnia de ouro. É muito comum vermos os colaboradores com as insígnias no uniforme. Ainda só demos duas medalhas de ouro em Portugal e foi há uma semana", acrescenta Enrique, que recebeu a sua ainda em Espanha.

Sobre o sucesso em Portugal, o diretor-geral explica: "Já havia muitos portugueses que conheciam o El Corte Inglés e gostavam muito do modelo de negócio. Portanto, vir para Portugal e introduzir o El Corte Inglés no coração de Lisboa foi algo que pareceu natural. Seria impensável, por exemplo, fazê-lo em França, onde não temos essa naturalidade nem interculturalidade. A verdade é que o El Corte Inglés de Lisboa foi um sucesso desde o primeiro dia e é a loja mais rentável, mais do que qualquer uma em Espanha", sublinha.

Chega a hora dos doces e tanto Enrique como eu imitamos Susana e pedimos só um café. Mas a diretora de Comunicação desafia-me a provar o ananás grelhado, e não resisto, pelo que o diretor-geral também alinha. Deliciosa sobremesa. De ficar nas nuvens, dirão alguns, mais poéticos.

Para terminar, pergunto sobre a adaptação a Portugal, ainda por cima com Enrique a chegar a Lisboa quase ao mesmo tempo que a pandemia. " Já cá tinha estado, em Lisboa e no Porto, mas enquanto turista, e nessa altura nem sonhava que algum dia me mudasse para aqui. Essa é outra das características muito próprias da empresa, por exemplo tenho um grupo de amigos entre os 55 e os 60 anos, e os meus amigos estão a ser chamados pelas suas empresas para se reformarem. Em paralelo, a mim a minha empresa chama-me para mudar de país e isto é incrível. Quando contei aos meus amigos, nem queriam acreditar. Está a ser um desafio fantástico e, claro, com 57 anos não achava que me pudessem colocar um desafio destes. Mas foi fácil adaptar-me em Lisboa, porque os lisboetas o tornaram fácil. Lisboa é uma cidade maravilhosa, com pessoas maravilhosas. A única má sorte foi ter assumido a minha posição a 1 de março de 2020 e no dia seguinte termos fechado o país devido à pandemia. A covid-19 foi devastadora. Foi um ano de sobrevivência, porque estava cá sozinho, a minha família não podia vir e eu também não os podia visitar. Mas depois a situação foi evoluindo, começámos a regressar à normalidade e tornou-se tudo mais fácil. Atualmente, vivo cá com a minha mulher, mas os meus filhos estão todos a estudar em Espanha. Agora até parece uma espécie de renascer do matrimónio, porque estamos sozinhos, temos uma sensação de liberdade por não termos as amarras aos horários dos filhos e às suas atividades", conta.

Despeço-me de Enrique Hidalgo e de Susana Santos e desço de elevador do Las Nubes não sem antes comentar ser cliente sobretudo do supermercado, onde devo ser um dos grandes consumidores de algas coreanas tostadas. Mas não me lembro de dizer que em tempos até DVD de ópera (foi na era pré-streaming) comprava nas lojas do El Corte Inglés, pois tinham gravações da Decca. Quase de certeza vou reencontrar Enrique dia 11, nos Jardins do Palácio de Palhavã, na festa nacional de Espanha, na qual julgo que o presunto que delicia os convidados vem daqui do El Corte Inglés, mesmo ao lado. Assim ainda vou a tempo de lhe desejar boa sorte para "El Clásico".

leonidio.ferreira@dn.pt