O diploma de Pedro diz "educadora"

No Estado Novo a educação de infância estava proibida aos homens. Depois tiveram de vencer os receios das famílias.

Olhando para o diploma podíamos dizer que estamos perante uma educadora de infância, mas na verdade à nossa frente está Pedro Nunes da Silva um dos primeiros - senão mesmo o primeiro - homens a tirar o curso de educação de infância em Portugal. Estávamos no início dos anos 1980 e nem uma década tinha passado desde que a profissão tinha deixado de ser interdita a homens. "Ainda recebi um diploma em que está escrito educadora de infância. E já tinha uma barba farta", recorda.

O tempo de proibição ainda hoje se nota: no ensino superior havia no ano passado três homens inscritos nos mestrados integrados em pré-escolar e a trabalhar estão apenas 129, menos de 1% do total de educadores.

Pedro Nunes da Silva não teve um percurso linear, começou em Lisboa, ainda antes de fazer o curso e acabou a passar 25 anos no jardim de infância de Santo Amaro, uma pequena aldeia no Alentejo. E se na capital, nos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril não foi estranho um homem assumir o cargo de cuidador de 25 crianças, na então recém-criada APIA (Associação de Proteção à Infância da Ajuda), quando em 1985 - já com o curso tirado - chegou à aldeia de Santo Amaro, Pedro preparou-se para o impacto. "Sabia que um homem a cuidar de crianças ia contra aquilo que as pessoas estavam habituadas naquele meio. Por isso, preparei-me para me integrar e fui logo ao encontro das famílias". Num instante passaram 25 anos e o professor já está reformado.

Pedro será sempre "o professor", tal como Francisco. "Gostava de acabar a carreira com um nome. As minhas colegas são todas tratadas pelo nome e eu não consigo que me chamem apenas Francisco. Já desisti. Acho que tem a ver com o respeito que é incutido pelos avós."

Gostava de acabar a carreira com um nome. As minhas colegas são todas tratadas pelo nome

Francisco Pacheco trabalha no jardim de infância de Assumar, concelho de Monforte. Com 54 anos, voltou há três a trabalhar diretamente com crianças e espera não fazer mais nada até se reformar. Já passou por cargos de direção nos agrupamentos, na formação contínua de educadores e esteve no ensino especial. Agora, o "professor", como lhe chamam os seus meninos está de regresso às salas e nota diferenças: "Hoje é mais natural ver um homem no jardim de infância."

Quando começou há 24 anos, "havia alguma estranheza", até porque trabalhou sempre em meio rural. Até na entrevista do curso lhe perguntaram se tinha a certeza do percurso. "Perguntaram-me se sabia que podia ir parar à creche e ter de mudar fraldas, se estava preparado para isso."

Vocações por acaso

O percurso destes educadores tem sido feito quase sem companhias masculinas. Francisco teve a sorte de tirar o curso com mais três homens, em 1982, em Évora, mas desses, apenas ele e Luís Ribeiro, atual presidente da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI), construíram uma carreira. Fernando Pinto foi o único homem do seu curso, há 30 anos, assim como Rui Horta formado já no final da década de 1990.

Os quatro educadores com quem o DN falou confessam que esta é a sua grande vocação embora a tenham encontrado um pouco por acaso. Rui Horta, o mais novo, foi influenciado pela mãe. No 11.º ano não sabia bem o que queria fazer e a mãe disse-lhe para ir para educador de infância, já que gostava tanto de brincar com as crianças. "Nem sabia sequer que havia um curso", confessa o educador de 39 anos.

Acabou por se inscrever e foi o primeiro homem no curso da Escola Superior de Educação de Santarém. "Foi muito engraçado, os rapazes de outros cursos diziam que eu era maluco porque ia aturar só mulheres. A turma tinha 20 e tal pessoas e eu era o único rapaz. Toda a gente me conhecia, não podia faltar que davam logo conta. E os professores às vezes para mandar calar diziam "oh meninas" e depois emendavam para dizer "e Rui"".

Fernando Pinto também chegou "por acidente" ao mundo do pré-escolar. "Sou caso único entre família, amigos, vizinhos e conhecidos", brinca. A cunhada não tinha a carta e foi fazer os testes de admissão para o 1.º ciclo e educação de infância a várias cidades do norte. Calhou a Fernando dar boleia à cunhada e "por brincadeira" foi fazendo os mesmos testes. "Sem preparação nenhuma passei em todos." A cunhada começou a incentivá-lo e Fernando lá se deixou convencer e entrou na carreira. Embora nos primeiros anos de curso ainda estivesse à espera para ser chamado para os barcos de cruzeiro, uma ideia da qual a mãe o demoveu.

Ao fim de 28 anos de carreira, Fernando já não trocava este caminho por nenhum outro. Até teve oportunidade para ir dar Biologia, mas deixou o curso a meio. Quando começou a trabalhar, por medo de não entrar nos quadros foi um ano para os Açores, regressou e desde então tem estado sempre na zona de Braga, de onde é natural.

Verdadeiramente pioneiro, Pedro Nunes da Silva até esteve para ir para Arquitetura em Belas-Artes, mas o 25 de Abril meteu-se no caminho e o movimento associativo levou-o a fundar a APIA, na Ajuda, e aí começa a tomar conta das crianças do bairro. Trabalha com uma turma de 25 crianças até ao início da década de 1980. "A nossa escola era vista como um modelo e até já era convidado para dar formação a educadoras. Até que um dia uma educadora me perguntou onde tinha tirado o curso e percebeu que eu não tinha nenhum. Convenceram-me e lá fui estudar à noite."

Pedro terminou o curso em 1984 e concorreu para a rede pública. Foi colocado na Amareleja, mas logo requisitado pela câmara de Coruche para trabalhar na Casa da Criança. Depois de anos com crianças até os cinco anos, Pedro passou a trabalhar com miúdos até aos 12. "Tínhamos que os cativar porque eles só iam lá se gostassem. Então pus-me a ler Tom Sawyer e Robinson Crusoe. Ia negociar ferro velho para construir carrinhos de rolamentos. Foi um ano onde aprendi muito." No ano seguinte, em 1985, Pedro chegava ao local onde passou o resto da carreira: o jardim de Santo Amaro.

A poucos quilómetros de distância, Francisco Pacheco também marcou a diferença ao chegar a Assumar. Também foi o 25 de Abril que o desviou de engenharia eletrotécnica. Tinha apenas 12 anos na Revolução, mas começou logo "a andar no mundo dos clubes culturais". Acabou o 7.º ano do liceu (antigo 11.º ano) e resolveu fazer um interregno, período durante o qual se dedicou à animação cultural. Estava num festival de cinema para a infância e juventude em Tomar quando ouviu falar João dos Santos: "Foi aí que me fiz educador", garante.

A inspiração foi tal que no ano seguinte (em 1982) anunciou em casa que ia seguir esta carreira. "É o nível de ensino onde a liberdade pedagógica é maior, há mais margem para fazer as coisas e também me identifico mais com estas idades. Embora hoje seja mais natural encontrar um homem no jardim de infância, Francisco ainda lamenta que na convocatória para as reuniões de departamento venha escrito "educadoras". "Estou sempre a dizer às minhas colegas que já basta fora daqui quando tenho de dar a profissão os sistemas informáticos só reconhecerem educadora. Ou quando fazíamos os concursos para as colocações em papel que o nosso era cor-de-rosa."

Desconfiança e fantasma

Rui Horta é já de outra geração de educadores e consegue que as suas crianças o tratem pelo nome. A única discriminação de que foi vítima não chegou da parte dos pais, mas dos possíveis empregadores. "A discriminação mais negativa por que passei foi depois do curso quando comecei a procurar trabalho. Nos anúncios dizia que procurava educadores e quando eu ligava e me perguntavam para quem era e eu disse que era para mim eles diziam logo que já estava ocupada".

Natural de Oeiras, Rui acabou por conseguir um lugar numa creche pública junto de casa, em 2000. No ano seguinte foi procurar trabalho para Santarém - "tinha-me apaixonado pela cidade" - e conseguiu lugar no Centro Infantil da Fundação José Relvas, onde está até hoje. Calhou-lhe ficar na creche e "no início os pais estavam um bocadinho reticentes, se ia ser capaz de mudar as fraldas e tudo isso". Algumas semanas depois, "a insegurança inicial passou e ficou tudo normal."

Pedro Silva chegou há 31 anos a uma aldeia alentejana de 800 habitantes. Antecipando a estranheza que a população podia sentir, o educador decidiu agir. "Procurei informar-me com a educadora anterior a mim, com o presidente da junta e com os pais. Mas em vez de convocar uma reunião com eles na escola, decidi ir à procura deles nas suas casas, um ambiente onde estariam mais à vontade. Alguns falaram comigo da soleira da porta, mas outros convidaram-me logo a entrar e ofereceram-me comida." Conquistar os pais passou também por trabalhar com eles na pintura da escola, organizar visitas de estudo ao fim de semana e manter as portas abertas.

"Os pais devem entrar e saber dos filhos. Estava muito atento às tradições da aldeia, aos seus saberes. Era importante os pais conhecerem o trabalho dos miúdos." Antes de haver desconfianças, Pedro criou laços com a comunidade e depressa as pessoas da aldeia deixaram de ver estranheza no facto de terem um educador.

Os receios de comportamentos menos adequados, nunca passaram pela cabeça de Pedro. "Há casos de abusos ao longo da história, até quando as professoras eram só mulheres, as pessoas é que não estavam atentas a essas coisas, mas nunca tive problemas desse género". Rui que começou a trabalhar pouco antes de rebentar o caso Casa Pia recorda que nunca se sentiu afetado por esses receios. "Que eu tenha sentido não houve nenhum receio."

A única vez que Fernando pensou no assunto foi precisamente quando "um educador foi acusado de pedofilia, nos Açores". "Não que os pais tivessem dito ou feito alguma coisa, porque já me conheciam, mas tive receio porque percebi que era fácil para alguém que me quisesse complicar a vida fazê-lo dessa forma."

De resto, Fernando sentiu "alguma curiosidade" por parte dos pais. "Ficavam a pensar como é que um homem ia cuidar das crianças, mas eu sempre falei muito com os pais e expliquei sempre tudo."

Foi precisamente essa questão que Aires Correia levantou, no ano passado, quando foi deixar a sua filha pela primeira vez à sala de Fernando. "Ao início fiquei um bocado desconfiado, mas depois fiquei contente. Pensei que um homem é sempre mais severo com os miúdos e como tenho uma menina. Mas depois percebi que ele é meiguinho e que sabe o que está a fazer". Maria tem quatro anos e desde que a filha goste do educador, Aires não se importa se é homem ou mulher. "Foi só o primeiro impacto, agora fico sossegadíssimo de a deixar lá. Ficou provado que ele é competente e isso é o mais importante."

Francisco, que trabalhou sempre em meio rural, nunca foi confrontado com nenhuma situação de desagrado por parte dos pais. "As pessoas eram suficientemente delicadas para não dizer nada, mas notava-se alguma estranheza. Mas também trazia a vantagem de puxar os pais homens para a vida da escola", admite. Para Francisco a confiança das famílias vê-se na frequência das crianças, uma vez que o ensino não é obrigatório. "Elas nunca deixaram de vir e nestes meios as famílias são muito zelosas", defende.

As mudanças de papéis

Outra das dificuldades de ser educador homem é "não entrar em papéis de substituição", alerta Francisco Pacheco. Quando começou a trabalhar na década 1980, os homens não tinham um papel muito ativo na educação das crianças, por isso elas não estavam habituadas a que um homem lhes prestasse atenção e brincasse com elas. "Era preciso cuidado para não entrar noutros papéis", reforça.

Hoje, as coisas mudaram. "As mães e pais que tinham menos à vontade para expor questões da vida deles já o fazem agora. Por exemplo, já me perguntam se é normal o filho ou filha ainda dormir no quarto dos pais, como é que podem falar com os miúdos quando eles vão ter um irmão. Coisas assim, as pessoas já se abrem mais facilmente".

Anos antes, já Pedro enfrentava a questão dos homens não serem muito presentes na vida dos filhos. "O pai era a autoridade e uma figura distante. As crianças ficavam 12 horas só com mulheres, sem uma referência masculina". As coisas mudaram, quando terminou a carreira, em 2010, eles já estavam mais presentes.

"Os homens hoje já têm um papel diferente na própria paternidade. As diferenças entre os papéis do homem e da mulher na educação estão a cair", considera Fernando, o que também tem ajudado a normalizar a profissão no masculino.

Embora os educadores reconheçam a importância de as crianças não serem educadas apenas por modelos femininos, a verdade é que estão constantemente a tentar tirá-los da sala de aula. "As minhas colegas estão sempre a dizer para ir coordenar o departamento ou coisas do género", aponta Francisco, que não quer voltar a sair das salas.

Tanto Fernando como Francisco estiveram alguns anos afastados das salas de aula para exercerem cargos em associações ou de gestão nos agrupamentos. Uma questão que está associada à autoridade que os homens conseguem expressar e ainda a algumas ideias que permanecem de que não são tão bons como as mulheres nas funções de cuidar, admite Maria João Cardona, coordenadora do curso de pré-escolar na Escola Superior de Educação de Santarém (ver entrevista).

Mas nas paredes da sala de aula eles garantem que podem ser ligeiramente diferentes. "Para mim é importante não infantilizar as crianças. É preciso tratá-las com respeito. Nunca percebi porque é que é uma qualidade que uma criança comece e acabe de seguida o trabalho. Um grande pintor faz uma obra de empreitada, toda de seguida?", questiona Pedro Nunes da Silva. Aproveitando para recordar a história do quadro que tem pendurado no escritório e que data de 1990. "Tinha uns arames pendurados na sala para expor as obras acabadas dos alunos e tinha dado este quadro por terminado e pendurei-o. Até que o aluno, que tinha 4 para 5 anos, passou por ele pôs-se a olhar e depois disse-me "oh professor preciso de tirar o quadro porque falta lá uma coisa". E isso demonstra a seriedade com que eles encaram o trabalho. É preciso que os professores também deem essa importância".

Na sala de Fernando "não há floreados". "Sou mais escolarizante que as minhas colegas, até a minha forma de fazer a avaliação é diferente." Também Francisco faz questão de seguir um modelo mais escolarizante. Em Assumar, os meninos têm um plano de atividades e são livres de escolher o que querem fazer e a que horas. O espaço está dividido entre a zona de ciência, a loja de conveniência, a oficina, o consultório médico, a zona de leitura e a de construção. Como o grupo é heterogéneo, "os meninos mais velhos puxam pelos mais pequenos e escrevem textos e aprendem a ler". A tarde começa com a Manuela a colocar o estado do tempo no horário do quadro eletrónico. O grupo tem 14 crianças, dos 3 aos 5 anos.

Francisco não se vê a fazer outra coisa, mas os 24 anos de profissão já lhe deixaram marcas: "Fui operado a três hérnias discais. Estar sentado nestas cadeiras não ajuda", diz, referindo-se às pequenas cadeiras das salas infantis. Gostava por isso de se reformar mais cedo, já que acredita que "aos 65 anos já não somos úteis à escola, nem aos meninos".

A auxiliar que não é namorada

Nos longos anos de experiência, Fernando recorda o facto de até 2001 ter andado sempre em terras diferentes. "Como temos sempre uma auxiliar na sala, os meninos não conseguiam perceber que eu não tinha nenhuma relação com a funcionária. Achavam sempre que era o namorado ou o marido dela. Só quando fiquei oito anos no mesmo sítio é que esses meninos começaram a perceber que as nossas vidas eram independentes, que eu era casado com outra pessoa."

Para Rui a única diferença é que sente que mais facilmente consegue "exercer autoridade". Porém, "também somos mais infantis e mais facilmente nos metemos na pele das crianças e brincamos com elas como se fossemos da mesma idade. É um equilíbrio bom."

É em busca desse equilíbrio que o educador de 39 anos mantém rituais masculinos. "Não conheço mais nenhum homem a trabalhar no distrito. Passo o dia rodeado de mulheres e depois tem de haver uma certa compensação. É por isso que quando saio do trabalho estou muito com amigos homens. Tenho um grupo de futebol, ainda faço parte da tuna. Isso ajuda a manter a sanidade mental", brinca.

Passo o dia rodeado de mulheres e depois tem de haver uma certa compensação

Tem uma filha de cinco anos, que não frequenta a mesma instituição onde trabalha. A maior dificuldade para Rui é chegar a casa e ainda conseguir ser pai. "Às vezes sinto que não lhe dou tanta atenção como devia, porque é muito desgastante. Passamos o dia com 24 crianças de três anos e quando chegamos casa estamos cansados. Felizmente a minha mulher compensa-me e é muito disponível", elogia.

Fernando Pinto já tem filhos adultos e recorda que a filha passou um ano letivo com ele. "Foi muito complicado porque temos sempre tendência a ser mais exigentes com os nosso filhos que com as outras crianças".

Agora que está reformado, Pedro aproveita para estar mais tempo com os três netos. Mas vai buscar muito pouco da sua experiência profissional para esse contacto: "É completamente diferente. É uma relação familiar".

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