Um dia magnífico, diz quem o viveu, o das primeiras eleições livres com sufrágio universal na história do país. A 25 de abril de 1975, o povo saiu à rua, em massa, vestido a preceito, para entregar a 223 homens e a 27 mulheres o mandato de um ano, com um objetivo preciso e precioso: redigir a carta constitucional que revogasse o texto da ditadura, imposto em 1933, permitindo a consagração da democracia, conquistada precisamente um ano antes, a 25 de abril de 1974. Cumpria-se assim, contra o radicalismo dos militares que defendiam o adiamento da votação, o programa do MFA, que previa e prometia eleições no prazo de 12 meses a contar da data da revolução. Poucos mais de um mês após o golpe falhado do 11 de março, gizado por Spínola, a festa foi sobretudo resultado da grande participação eleitoral: votaram 91,66% dos 6.231.372 inscritos, num clima novo, de liberdade, depois de 40 anos de ditadura. Dos dez partidos concorrentes, sete elegeram deputados. A vitória coube aos socialistas de Mário Soares, (37,87%), seguido pelo PPD, liderado por Sá Carneiro (26,39%). Em terceiro ficaria o Partido Comunista Português, com 12,46% dos votos, valores abaixo das expectativas de Álvaro Cunhal. Em quarto, CDS de Freitas do Amaral, com 7, 61%. Elegeriam ainda deputados MDP/CDE, UDP e ADIM- Associação para a Defesa dos Interesses de Macau. Uma Assembleia de luxo, com tribunos que fizeram história e personalidades marcantes, de Marcelo Rebelo de Sousa a Sophia de Mello Breyner, ou uma muito jovem Helena Roseta. Sufrágio universal para homens e, sobretudo, para as mulheres, até então com direito a voto condicionado por habilitações literárias ou lucros financeiros. Em 1968, era aprovada pela primeira vez uma lei que equiparava o sufrágio feminino e masculino, mas ainda com limitações relativamente a eleitoras e a elegidas. Foi a revolução, em 25 de Abril de 1974, que consagrou esse direito em pleno.A campanha eleitoral conheceu grande mobilização. Dos partidos, naturalmente, mas também de outras instituições. A Igreja católica apelou ao voto em partidos que recusassem a ideologia marxista, a extrema-esquerda apelou à abstenção e alguns militares ao voto em branco, num primeiro embate eleitoral entre moderados e radicais. A cobertura na RTP foi a mais longa da sempre da história da televisão: 30 horas de emissão seguidas, coordenadas por Carlos Cruz. Coube a Joaquim Letria moderar o debate sobre os resultados eleitorais. Dia intenso, iniciático e de festa - apesar de já se adivinhar um verão muito quente -, que levou à rua milhares de pessoas. O DN falou com seis delas. Estas são as suas memórias: “Não me enganaram, votei em todos” Maria Olívia Sampaio nasceu em Carrazedo de Montenegro, distrito de Vila real, em 1948. É reformada do ensino básico. “Julgavam que me enganavam? Tomai lá: votei em todos”, exclamou Maria Patega mal enfiou o boletim na urna, uma figura popular na aldeia onde nasceu Maria Olívia Sampaio, professora primária durante quatro décadas. Biba, assim é chamada pelos conterrâneos, muitos dos quais ensinou a ler, solta uma gargalhada ao recordar a tirada de Maria Patega, já desaparecida, conhecida por “esta e muitas outras frases semelhantes”. A transmontana lembra-se bem desse 25 de abril de 1975. Tinha 27 anos e já um filho: “Fui com o meu marido à missa, e depois votar. Estava muita gente, e fui disposta a ficar ali o tempo que fosse preciso”. Os bairros confluíram para a escola primária: três salas para turmas que só a partir de então seriam mistas. Uma aldeia marcada pelo catolicismo. Na missa de domingo, o padre dava recados aos jovens, sobretudo às raparigas, uns mais subentendidos de que outros. Recriminava as saias curtas, os decotes, as calças. “Não me recordo”, conta Olívia, “se nesse dia o padre deu indicação de voto; se o fez foi de forma dissimulada”. Tinha caído em desuso pedir a bênção ao padre, mas continuava a pedir-se a progenitores, ainda tratados por ‘senhor, meu pai’ e “senhora, minha mãe”. Era o tempo em que não poucas crianças, alunos de Olívia, desertavam antes de completar a chamada quarta classe. E em que a larga maioria daí não passava. Ao pequeno-almoço de quase todos, uma sopa, ou cevada fervida. Contavam-se pelos dedos as famílias que tinham frigorífico ou televisão. Maria Olívia votou no PPD. Nunca outro partido venceria naquela terra ao longo dos 51 anos de democracia, conta. “Sá Carneiro era, e é, o meu ídolo. Um ídolo para o meu marido, também”. Quando o então presidente do PPD falava, “parávamos”. Não consegue precisar em qual, “mas numa campanha eleitoral não muito distante de 1975”, uma comitiva do Partido Socialista “atreveu-se” a passar pela terra. Mário Soares, fazendo parte da comitiva, “levou que contar”. Biba explica: “Trás-os-Montes recebeu muitos retornados, muita gente que veio das colónias com uma mão à frente e outra atrás, e que nunca perdoou a Mário Soares”. A passagem da caravana foi entendida “como uma provocação”. Naquele domingo de 1975 não houve pesca, hobby da família. “Não descansámos enquanto não soubemos os resultados nacionais. Foram telefonemas e mais telefonemas”. Na escola, os números apurados eram os esperados - vitória esmagadora do PSD, alguns votos no CDS. “Havia muita gente analfabeta, mas todos conheciam o partido das setinhas”, diz Maria Olívia. Que não se surpreende quando lhe é perguntado se não foi feita uma pequena marca à frente do símbolo do PPD, no boletim colocado antecipadamente na porta da escola. “Era bem capaz de ter essa marquinha”, admite. E sorri. "Um dia de sol e eu arrepiada” Gilda Ribeiro dos Santos nasceu no Porto em 1953. Licenciada em Filosofia, é professora reformada do ensino público. Tinha 24 anos, era aluna do quarto ano de Filosofia. Gilda Ribeiro dos Santos foi testemunha da “enchente” que inundou os locais de votação, como observadora de uma mesa de voto da escola primária do Bom-Sucesso, no Porto. As portas abriram às 9:00 da manhã, mas às 8:00 já “as filas eram enormes”, e assim seria “ininterruptamente até às 19:00”. Uma organização competente, “sem margem para fraudes”. Nas mesas, representantes de todos os partidos. Nos corredores, ambiente ordeiro, muito civilizado, sem problemas”. Por vezes, a dúvida de um eleitor sobre a que símbolo correspondia o partido em que queria votar. “Na mesa não podíamos dar indicação, mas na fila, logo alguém explicava”. Como observadora, foi das primeiras a votar. Votou no Partido Socialista. Recorda, com emoção, o momento em que pegou no boletim, escolheu o partido, e, sobretudo, quando colocou o voto na urna: “arrepiei-me”. Uma reação que atribuiu “à importância do gesto”, o primeiro em liberdade. Um dia de sol, no Porto, com a adesão esmagadora, “uma festa”. “Para todos, mas ainda mais para os que tínhamos alguma noção política”. Mesmo nas cidades, compareceram muitos que não sabiam ler nem escrever. “O Porto, nessa altura, tinha as chamadas ilhas, zonas operárias de muita pobreza e exclusão. Gente que foi votar em massa”, muito arranjada, “como se fosse à missa”. Em abril de 1975, Gilda era aluna da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no curso de Filosofia. No seu ano havia apenas 30 alunos- 20 rapazes, 10 raparigas. O ensino universitário fora, durante décadas, para uma elite. “Poucos eram os portugueses que estudavam, e muitos dos que o faziam eram trabalhadores-estudantes”, recorda. Nos meses que antecederam as eleições, a faculdade vivia em permanente ebulição. “Plenários, RGA’s, saneamentos, muitos cartazes neorrealistas, muitos partidos e tendências” caracterizavam um ambiente de “ou vai ou racha”. Nesse mês, Gilda Santos viveu o fervilhar de debates e embates, nos cafés e cooperativas de livros e de filmes. “Todos os dias passava na minha segunda faculdade, o famoso Piolho, poiso icónico dos estudantes, onde já tinha cadeira reservada”. E também nos Orfeu e Orfeuzinho, "dois cafés onde se aprendia muito", frequentados por figuras da cidade - Manuel António Pina, Eugénio de Andrade, Ilse Losa, entre muitos outros. Gilda cresceu numa família conservadora. “Que não questionava o regime”, apesar da grande angústia materna perante a possível ida do filho para a guerra colonial. “Tinha uma vida de silêncios em casa e um ímpeto revolucionário fora dela, nesses meios onde se cheirava a mudança. Geria como podia essa vida dupla, em que nos grupos de oposição era a “menina bem” e nos meios fascistas vivia olhada de esguelha. Naquele dia de sol, “contribuíra diretamente para o futuro do país”. Sabia que “contava”. Uma recontagem dos votos atrasou um pouco a afixação dos resultados, escritos à mão, na porta da escola. “Fomos finalmente jantar fora, todos, estávamos esfaimados”. Gilda fumou um cigarro. Até à revolução, fumava às escondidas. “Fumar era sinónimo de liberdade, logo impróprio para mulheres”. “O senhor chegou a cavalo” Joana Lopes nasceu em 1938, em Maputo (Lourenço Marques). Doutorada em Filosofia, foi professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa entre 1965 e 1971. Em 1970, entrou para a IBM como técnica informática, acabando por tornar-se membro da comissão executiva da multinacional. Do dia 25 de abril de 1975 recorda, sobretudo, a desilusão com os resultados, que deram a vitória ao PS. O PCP ficaria em terceiro lugar, com 12%, depois do PPD. “Sabíamos a importância daquelas eleições. Dali sairia o grupo de deputados que iria redigir a Constituição. A esquerda apostava num bom resultado”. Votou na Reitoria da Universidade de Lisboa. “No MES ou na UDP, não tenho a certeza”. Pouco mais de um mês depois do golpe de 11 de março, Lisboa “fervilhava” de tal maneira que o MFA havia tentado adiar o ato eleitoral. “Até a única força minimamente organizada, o PCP, teve um resultado muito aquém do esperado”. À época, ressalva, “o PS era considerado de direita”, lembrando a manifestação da Fonte Luminosa, convocada, apenas dois meses depois, por Mário Soares”. A partir daí, o líder do PS “tomou conta de tudo”. Técnica informática na IBM, esteve ativissíma na constituição da comissão de trabalhadores da multinacional. E teve, desde a primeira votação democrática, papel destacado nas noites eleitorais. Primeiro na Gulbenkian, centro para onde convergiam resultados, jornalistas, VIPS. Mais tarde, no Ministério da Justiça. “Durante dois anos, praticamente vivi aí, fazendo pela IBM um trabalho homérico”. Depois da contagem dos votos, “os resultados eram introduzidos manualmente duas vezes: primeiro, descentralizadamente (nas capitais de distrito), em aparelhos de telex, que os faziam chegar a Lisboa. Eram depois reintroduzidos numas outras máquinas que os transmitiam para o computador central do Ministério da Justiça. Tudo isto demorava horas, como é óbvio”, descreve Joana Lopes. “Nem sei quantas diretas terei feito nestes três locais, mas era na RTP que se viviam as maiores emoções. Parecerá hoje impossível, mas a emissão da noite eleitoral de 25 de Abril de 1975, coordenada por Carlos Cruz, teve início às 19 horas e terminou às 24h do dia seguinte - durou trinta horas”. Noites históricas de uma democracia a nascer. Algumas divertidas. Como esta, passada nos estúdios do Lumiar: “Joaquim Letria tinha atrás dele, preso a uma cortina, um gráfico de cartão, onde ia deslocando manualmente um ponteiro, à medida que os resultados «iam caindo». Durante toda essa noite, fui obrigada a passar dezenas de vezes por trás da dita cortina, sem tropeçar num colossal emaranhado de cabos espalhados pelo chão, nem tocar na cortina, o que nem sempre era possível”. Quando isso acontecia, o gráfico em direto abanava. A que junta episódios anedóticos memoráveis: “Por ocasião de umas eleições autárquicas, talvez as primeiras, no dia seguinte à tarde ainda faltavam os votos de uma freguesia do Norte. Localmente, ninguém conseguia encontrar o presidente da respetiva mesa”. Acabaria por chegar, em pessoa, ao Ministério da Justiça em Lisboa. Trazia a urna ainda fechada e havia deixado à porta o meio de transporte. “Um cavalo”. A 25 de Abril de 1976, nas primeiras legislativas, estava na maternidade, acabada de ser mãe. Votara, porém, em 1969, então professora universitária de uma geração que viria a marcar a democracia - por exemplo, Jaime Gama, que era um dos seus melhores alunos. Membro da comissão promotora, Joana Lopes recorda algumas das reuniões da oposição, preparatórias da campanha eleitoral, “a última, salvo erro, em casa do (Salgado) Zenha”. E o desencanto com a breve e ilusória “primavera marcelista”. “Nas sessões era proibido comentar a guerra colonial, mas podia colocar-se cartazes na rua. Tentava-se aproveitar a abertura dada por Marcelo. Esperança breve”. “Que pena não ter podido votar” Jorge Bandeira nasceu em Lisboa em 1953. O artista plástico foi um dos homens de Salgueiro Maia a 25 de Abril de 1974. Um ano depois, estava em Moçambique No dia 25 de abril de 1975, Jorge Bandeira estava em Moçambique, numa companhia da Polícia Militar destinada a “manter a ordem e a preparar o regresso das tropas que estavam no mato”, enquanto o país africano se preparava para a independência, assinada a 25 de junho. Na véspera da assinatura, Jorge foi um dos 1200 homens que regressaram a Portugal a bordo do Infante D. Henrique, o paquete que tomou o nome de ‘Barco da Liberdade’. “Tive muita pena de falhar as primeiras eleições, mas estive noutra missão”, o que impediu o segundo-sargento de 22 anos de saber o que se passava em Lisboa, a cidade onde nascera. “Não tínhamos notícias daqui, apenas isto: quando os primeiros-sargentos regressaram de umas férias na metrópole, cada um trazia um partido preferido”. Depois de uma breve estada na Beira, a coluna militar regressou à capital moçambicana “com camas, tachos e panelas, tudo o que era necessário para fazer um quartel”. Conta Jorge: “foi uma companhia feita de tal maneira à pressa que alguns dos condutores tinham tirado a carta há um mês. Anteriores à partida, guarda memórias do 11 de março e “das barricadas” nas estradas. “Lembro-me de ir a Cascais num SNU branco e de ser parado em Oeiras por civis com armas, que me deixaram passar mal mostrei os documentos militares”. Jorge Bandeira é uma daquelas pessoas que sabe exatamente onde estava no dia 25 de abril de 1974. Era um dos 240 homens da Coluna de Santarém, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, que tomou o Terreiro do Paço e cercou o Quartel do Carmo. Que escoltou Marcelo Caetano ao aeroporto e, mais tarde, ficaria como força de apoio ao Conselho da Revolução na sua deslocação à RTP, para a célebre comunicação ao país. E que, depois do jantar, rumou ao quartel da Pontinha, onde passaria a noite em claro, com parte da força de proteção ao Comando do major Otelo e dos restantes capitães. “Do dia 25 abril de 1974, recordo uma das mais reconfortantes refeições da minha vida: almôndegas com batatas fritas às rodelas, o jantar servido nos Pupilos do Exército aos rapazes que, na madrugada do dia 25, deixaram Santarém rumo a Lisboa”. Em abril de 1974, estudava nas Belas Artes de Lisboa. A mãe vendia frutas e hortaliças, o pai tinha carros de praça. Morava no Príncipe Real. Frequentava o liceu Passos Manuel e tocava numa banda hard-rock. Temia a guerra. Em janeiro de 1974, entrou na Escola Prática de Cavalaria de Santarém como recruta. Em boa hora. Jorge, que enquanto aluno do liceu andara a colar cartazes de Humberto Delgado, votaria pela primeira vez apenas em abril de 1976. “Em Mário Soares”.“Tornei-me uma mulher de causas” Helena Rebelo Pinto nasceu em Lisboa em 1937. É das primeiras mulheres portuguesas licenciadas em Psicologia, e professora catedrática da Universidade de Lisboa. Votou em Benfica. Recorda as filas longas e a necessidade de evitar horas de maior movimento. De manhã, a família assistiu à eucaristia. Depois, ‘o dever de votar’ - no CDS, partido recém-formado e liderado por Freitas do Amaral. Com o marido, cresceram em famílias “sem envolvimento político”. Porém, depois do 25 de Abril, o marido foi saneado. O pai, diretor geral de serviço público, “atirado para a reforma”. O sogro, professor no Instituto Superior Técnico, ruma ao Brasil, onde continuaria a lecionar. Helena perdeu o trabalho em part-time: programava campos de férias e dava formação a professores na Mocidade Portuguesa Feminina. “Trabalhava numa instituição considerada fascista”, diz, para concluir: “a minha família foi muito penalizada”. Em casa de Helena, mãe de três adolescentes, não havia quem não fosse do CDS. O marido, Jaime Rebelo Pinto, esteve empenhado na fundação do partido e, Helena assistiria com ele ao congresso do Palácio de Cristal no Porto, sendo uma das sitiadas. “Foi um período muito difícil, basta dizer que até ao 25 de novembro fomos vigiados”, conta, afiançando que teve à porta uma carrinha verde-alface, “como se imagina muito discreta”. Temeu pela segurança da família, mas nunca foi de medos. “Pelo contrário. Senti cedo a necessidade de intervir porque isto estava a descambar demasiado para a esquerda”. Intervir “na salvaguarda dos valores que sempre defendi. Eu e outros”. Por isso, se antes do 25 de Abril nunca votou, depois da revolução não falharia um ato eleitoral. A começar por este, de 1975, o primeiro. Porém, sobre o 24 de abril “não quer generalizar”. A professora catedrática da UL explica: “Bem recebidos foram a ideia de liberdade e de democracia, não o que se passou no verão quente nem a narrativa extremista de então”. Helena tinha 37 anos. “A partir daí, não adotamos uma atitude derrotista nem agressiva”. Considera que os reveses profissionais “foram uma alavanca para fazer outras coisas e aproveitar novas oportunidades”. Voltou à universidade, iniciou uma carreira académica, escreveu livros, fez conferências. “Representei Portugal no estrangeiro e até escrevi um livro que, em 2016, fui entregar ao papa - “Família, Essência e Multidisciplinaridade”, a propósito do qual “recebi uma carta de Sua Santidade a felicitar-me”. Hoje, diz que o 25 de abril fez dela “uma mulher de causas” no âmbito da democracia cristã. “Participei na espantosa epopeia do SNS” Jorge Seabra nasceu em 1946, em Aveiro. É médico ortopedista. Vive em Coimbra. O médico ortopedista foi mandatário da lista do PCP concorrente às eleições de 25 de abril de 1975, por Coimbra. Descreve o dia: “Memorável. Um ambiente muito participativo, que nos deixava a sensação de que estávamos de verdade a contribuir para o futuro do país”, recorda Jorge Seabra, empenhado na frente eleitoral e na mobilização no terreno, meticulosamente organizada por um partido que trazia a experiência de anos de clandestinidade. “Para essas eleições, fizeram-se inúmeras sessões de esclarecimento em aldeias muito pequenas dos arredores de Coimbra”. Em todas elas, os militantes do PCP foram muito bem recebidos. “Tantas e tantas vezes com aplausos”, garante o médico, que, impressionado, fez questão de verificar a votação nessas mesas de voto. “Nem um voto. Éramos muito bem recebidos, mas depois não havia votos”, conta com sentido de humor. Nessas eleições, os comunistas tiveram 12%, ficando alguns pontos percentuais abaixo das expectativas. Nascido em Aveiro, Jorge Seabra participou ativamente nos congressos de Oposição ao regime fascista, em 1969 e 1973, próximo da Juventude Democrática de Aveiro. “Votei nas eleições de 1969, a única eleição em ditadura em que a oposição foi às urnas”.A campanha da Oposição em 73 pretendeu sobretudo não legitimar Marcelo Caetano, num ato eleitoral em que foi proibido apelar à abstenção. O dia 25 de abril de 1975 “deixava para trás as sessões intimidantes, com os agentes da Pide à porta”, onde só os candidatos podiam falar. “Nem se podia mencionar a guerra, nem apelar à abstenção. Quem se atrevesse, perderia os direitos políticos por cinco anos”. Ou arriscava prisão: “dois a oito anos de prisão maior e a possibilidade de continuar preso para além da pena”. Jorge Seabra formou-se em 1972. Em 1974 era Interno Geral no velho Hospital da Universidade de Coimbra, “com enfermarias frias e húmidas, onde doentes desnutridos e desdentados se estendiam nas camas entre pratos de lata amolgada e um cheiro a vomitado e a urina”. Só em Lisboa, Porto e Coimbra havia grandes hospitais, onde chegavam conhecimento da medicina moderna trazida do estrangeiro. “Aconteceu-me a feliz coincidência de ter participado desde o início na construção do SNS, onde trabalhei durante quarenta anos, trinta dos quais como responsável ou diretor de um Serviço diferenciado, e mais de vinte em dedicação exclusiva.” Filho e sobrinho de médicos, pertenceu ao primeiro curso que fez o Serviço Médico à Periferia e descreve “uma espantosa epopeia que alcançou, em pouco tempo, objetivos apenas sonhados, antes de a seguir mergulhar na crise”. .“As eleições de 1975 foram realizadas num clima de grande mobilização antiautoritária”.Maria Inácia Rezola: "As eleições de 1975 eram fundamentais para a nova ordem que se queria institucionalizar”