Nuno Crato: "Desenvolver o sentido crítico no vácuo é uma ideia perigosa. Sem  conhecimento estamos a desenvolver fala-barato" 

Na semana em que arranca o ano letivo, o ex-ministro da Educação atira: "Não percebo qual é a política de educação que está a ser seguida". O antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e agora líder da Iniciativa Educação diz que se está "a exagerar no ensino muito moderno" e que é "quase impossível" que esta seja "matéria de consenso entre partidos".
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Depois de dois anos letivos atípicos, por causa da pandemia, as aulas são retomadas esta semana, com alguma normalidade. Nuno Crato, ex-ministro da Educação e líder da Iniciativa Educação, analisa o estado da nação em matéria de ensino.

A pandemia transformou o paradigma da educação?
Diria que o paradigma anterior da educação se mostrou muito forte. A pandemia revelou, em relação à educação, as grandes vantagens do ensino presencial. Depois destes tempos, em que seguimos um ensino remoto por necessidade - e obviamente agradecemos à tecnologia e professores pela sua dedicação e aos pais -, todos sabemos que agora que regressamos ao ensino presencial estamos com mais esperanças de que as coisas funcionem melhor. Não há nada como ver as pessoas olhos nos olhos, falar, um professor percorrer a aula, os alunos levantarem-se para irem ao quadro, para falarem. O remoto foi um sistema de recurso. Agora, se me perguntar se trouxe vantagens e alguma coisa para o futuro? Acho que sim. Não diria que mudou o paradigma, mas a panóplia de recursos à disposição de todos nós. Ou seja, mesmo que regressemos completamente ao presencial, temos um outro instrumento que agora dominamos muito. Os instrumentos digitais são auxiliares poderosos e vão continuar a ser para os professores tirarem dúvidas aos alunos, para os alunos entre eles se agruparem e fazerem um trabalho, para entre eles estudarem, etc. Portanto, desse ponto de vista, trouxeram uma nova alternativa.

E como lidar com ela? Hoje em dia, por exemplo, um aluno que esteja doente em casa pode continuar a seguir as aulas. Isso é um avanço?
Sim, é um avanço grande. Antigamente era tudo ou nada, agora existe esta possibilidade de o aluno ter uma segunda hipótese e funciona. Mas nunca é tão bom como o presencial.

A sua "desilusão com a falta de computadores" continua, como referiu em março numa entrevista ao DN? E o que é que está a falhar neste salto digital da escola?
O que está a falhar é a chegada dos computadores (risos)!

O investimento não é suficiente? A celeridade não é suficiente?
As coisas não estão a funcionar à velocidade que deviam. Agora é um pouco "chover no molhado", porque estamos no regresso ao presencial e finalmente começam as falhas a desaparecer... ou dizem que começam a desaparecer. Enfim, foi triste que tudo isto se tivesse atrasado. Mas atrasou-se e agora estamos no presencial.

Deve manter-se este modelo presencial igual ao passado ou há uma nova forma de ensino online que deve fazer parte da equação? E faz sentido uma maior flexibilidade de horários? O que é que se pode reequacionar?
Tanta coisa... Julgo que tem razão no que está a dizer, neste momento podemos recorrer a estes recursos como complemento e isso enriquece muito a aula. Suponhamos, por exemplo, que um professor quer convidar um colega brasileiro ou quer convidar uma turma brasileira a relatar aos nossos alunos o que se passa no Brasil neste momento. Pode fazê-lo online, isso é uma coisa fantástica. Os alunos estão numa aula de História, por exemplo, estão a falar do Brasil e, de repente, entra-lhes pela aula dentro aquilo que antigamente era impossível que é uma turma do lado de lá do Atlântico, que explica como é que eles se sentem em relação ao Brasil e à Independência.

Abrir a escola ao mundo?
Abre-se a escola ao mundo, é possível completar a escola de maneira que antes não era possível. Assim como também o recurso a certos vídeos que podem ser projetados na aula. Tudo isso são recursos muito bons. Agora, não tenhamos ilusões, não há nada como a aula presencial, não há nada como a presença do professor, e essa liderança do professor sobre a turma é que permite, conforme o critério do professor e conforme as matérias, ter este ou aquele outro recurso adicional.

Para estudantes que praticam desporto, de alta competição ou não, o ensino digital poderia estar previsto desde o princípio do ano?
Julgo que sim. Isso as escolas podem fazer, os professores podem fazer. Talvez seja possível alguma norma geral em relação às escolas e essas possibilidades, sem ilusões de que sempre que o aluno sai da sala de aula e está a seguir remotamente as aulas há algo que ele está a perder. Portanto, não deve ser generalizado. É bom ter esse recurso quando é estritamente necessário, mas deve ser restringido, não deve ser incentivado, em meu entender.

Nos últimos dois anos letivos, por causa da pandemia, e com os alunos fechados em casa, muitas vezes os pais, os irmãos mais velhos, os tutores foram também "professores". Isso é bom ou mau?
É bom e mau. Não conheço estudos generalizados sobre este tema. É bom porque aproxima os pais daquilo que se passa na escola e, portanto, a partir deste momento, há um conjunto grande de pais que está a seguir os seus alunos, mesmo no presencial, com mais proximidade do que a que tinha anteriormente; mas claro que, mais uma vez, também foi um recurso. Ser pai ou mãe é muito difícil. Ser encarregado de educação é muito difícil. Todos nós sabemos que há aqui um equilíbrio difícil entre ser-se diretivo, ter-se alguma pressão sobre os jovens e, ao mesmo tempo, darmos-lhes autonomia. Ainda há pouco estava a ler um artigo de um grande psicólogo cognitivo moderno, Daniel T. Willingham, norte-americano, que escreveu para o The New York Times, e dizia exatamente isto, que é muito difícil. E sugeria: o ideal será que haja momentos de estudo em que estejamos em família, mas em que os pais confiam no que os filhos estão a fazer, estão a fazer os seus trabalhos de casa. Estarem juntos numa sala, mas cada um a fazer a sua coisa para não haver uma intrusão demasiada dos pais sobre os filhos. Os filhos precisam de alguma autonomia. Enfim, não é nada fácil, mas é preciso ser feito e os pais também, na sua imensa maioria, durante este período, foram heróis de tudo isto porque ajudaram os filhos e viveram em situações muito difíceis, muitas vezes a trabalharem em casa, famílias com casas pequenas e com poucos computadores, a trabalharem em conjunto. Nós sabemos como isto foi difícil.

E olhando para o ensino em Portugal, considera que continua a ser demasiado escolástico? Ou, usando dois jargões atuais, as competências e a capacitação já fazem realmente parte dos currículos?
Essa pergunta é mesmo difícil, muito complexa. Acho que o ensino em Portugal continua a ser demasiado escolástico, demasiado tradicional, e ao mesmo tempo é demasiado moderno. Ou seja, quer dizer que há muitos sítios em que o ensino continua a ser muito tradicional. O professor explica, o aluno toma notas, tenta memorizar e volta. Há muitos momentos, muitas disciplinas, muitas turmas em que isto acontece muito ainda. Mas as coisas estão, na sua maioria, muito modernizadas, porque os professores já não são aqueles senhores que entravam na aula com ar sério e que após falarem durante 50 minutos seguidos saíam da aula. Já não são assim e existe uma interação com os alunos muito grande. Portanto, se é verdade que existem coisas em que são demasiado tradicionais, o sistema está muito moderno. Agora, está demasiado moderno numa coisa que vou dizer, que é esta pressão para as competências, pressão para as capacitações e pressão para os sócio-emotivos. É uma pressão que não está fundamentada, não estando fundamentada desorganiza o ensino.

Está a exagerar-se nessa componente?
Está a exagerar-se, esquecendo que essas componentes devem estar ao serviço das componentes cognitivas. Ou seja, por exemplo, uma coisa muito falada é que os alunos têm de trabalhar em grupos, têm que ter colaboração, desenvolver as chamadas competências do século XXI - já lá vamos porque esse é um tema muito importante. Fala-se muito das competências do século XXI e esquece-se, muitas vezes, que isso tem de ser feito no estudo das matérias substantivas. Ou seja, é muito importante desenvolver a cooperação entre os alunos, mas com objetivos curriculares claros. É muito importante desenvolver a capacidade crítica, mas ao mesmo tempo que se estudam certas matérias e ao mesmo tempo que se está a progredir curricularmente. Esta ideia da modernidade, não é modernidade nenhuma, isto são teorias que têm mais de 100 anos. Se pegarmos cada uma delas e formos ver uma por uma, vamos verificar que são coisas que vêm de há séculos. Mas estas teorias das competências são teorias que desorganizam a escola, ou que tendem a desorganizar a escola. Felizmente, a maioria dos professores e a maioria das escolas não se deixa desorganizar.

Mas desorganizam porquê?
Porque, por exemplo, em vez de se dizer é importante perceber o que foi o 25 de Abril, que é uma coisa fundamental, diz-se que é importante ter um sentido crítico sobre o 25 de Abril. E o que é que isto quer dizer? Isto não quer dizer nada se os alunos não sabem o que é o 25 de Abril. É um bom exemplo, porque os nossos alunos nasceram muito depois do 25 de Abril. Não sabem o que é, para eles é algo tipo a 1ª República ou uma coisa pré-histórica, quase. Mas primeiro é preciso conhecer. Para desenvolver o sentido crítico e ter uma abordagem crítica sobre o 25 de Abril, o pré-25 de Abril, toda a nossa história, é preciso conhecer, e esta ênfase no desenvolvimento do sentido crítico, no desenvolvimento da colaboração, se não está baseado em objetivos curriculares claros, ou seja, se não é feito para todos aprenderem ao mesmo tempo e para todos dominarem melhor os conceitos, desorganiza essa própria aprendizagem dos conceitos.

E essa pressão prejudica, em última análise, o aluno?
Acho que prejudica, em última análise, o aluno, porque "competências" e é uma palavra que ninguém sabe o que quer dizer, existem várias teorias sobre as competências, ninguém sabe o que quer dizer. Os ingleses, os anglo-saxónicos, são mais práticos, falam em knowledge skills, ou seja, conhecimentos e capacidades. Depois, a ideia de que as competências se podem desenvolver no vácuo é uma ideia extraordinariamente perigosa. A ideia de que nós podemos desenvolver, por exemplo, o sentido crítico no vácuo, é uma ideia perigosa, porque o sentido crítico não tem qualquer hipótese de ser desenvolvido se não na base de um conhecimento específico sobre matérias específicas, se não estamos a desenvolver "fala-barato", que são pessoas que são críticas sobre tudo. São críticas antes de conhecer o facto. Portanto, o sentido crítico é muito importante, mas o sentido crítico está ligado ao conhecimento dos factos e isso é algo que muitas das teorias modernas sobre a educação esquecem. Modernas não, têm um século. Porque modernamente o que se sabe, e o que a psicologia sabe muito bem, é que estas coisas são ligadas a domínios, ou o chamado domain based, como dizem os psicólogos cognitivos. Para podermos exercer sentido crítico sobre uma coisa temos que conhecer essa coisa. Um médico tem imenso sentido crítico, imensa criatividade, quando fala dos doentes, mas pode não ter criatividade nenhuma quando fala de um processo de engenharia mecânica, e vice-versa, um engenheiro mecânico pode não perceber nada e não ter capacidade nenhuma de raciocinar sobre medicina.

Pegando nesse raciocínio, na palavra que usou, "conhecimento", a escola, como a conhecemos hoje, valoriza mais o conhecimento ou o raciocínio? E toda a capacidade do improviso, do empreendedorismo é valorizada pela escola?
São dois temas diferentes. Começando por falar sobre o conhecimento ou o raciocínio, diria que quando alguns teóricos da pedagogia dizem "é preciso valorizar mais o raciocínio do que o conhecimento" estão a cometer, nesta frase, um erro pedagógico gravíssimo. Ao dizer-se "é preciso valorizar mais o raciocínio do que o conhecimento" está a pôr em oposição as duas coisas. Eu devo desenvolver o raciocínio desenvolvendo o conhecimento, essa é que é a questão essencial.

Por exemplo, na análise literária, como é que desenvolvo a capacidade de ler um texto? É lendo o texto, é conhecendo o texto, é conhecendo aquilo que está por trás do texto. Uma das coisas que se tem revelado muito nas últimas décadas é que a capacidade de compreensão do texto deriva num grau extremo do conhecimento da situação. Se estou a ler um romance do Eça de Queirós, consigo perceber o romance muito melhor se tiver um conhecimento do que é que era a época, o que é que aquela descrição das personagens quer dizer, o que é que era Lisboa na altura, o que é que era a província na altura, o que é que era o São Carlos, o que é que era o Grémio Literário, tudo aquilo. O conhecimento da época é fundamental para ter uma atividade raciocinada sobre aquilo que se está a ler. E quando se coloca as duas coisas em oposição, quando se diz que é preciso desenvolver mais o raciocínio que o conhecimento está-se, em meu entender, a fazer um erro pedagógico muito grande. E não é só no meu entender, é no entender de 99% da psicologia cognitiva moderna.

Quando se diz que esta geração é a mais qualificada de sempre, na sua opinião estamos a falar de rácios puramente matemáticos, de número de licenciados, mestrados e doutorados, ou estamos a falar de uma evolução da qualificação de uma geração que está mais preparada para o desempenho de uma profissão, seja qual for?
É muito difícil saber. Mais uma vez, diria que há um equívoco muitas vezes presente nas discussões pedagógicas que é pôr competências, ou seja, capacidades de aplicação, em oposição a conhecimento. E dizer "o aluno sabe mas não sabe aplicar". Aqui está uma contradição. Sabe, mas não sabe aplicar? Então é porque não sabe! Eu sei somar dois mais dois, mas não sei aplicar? Faz algum sentido esta discussão? O saber é saber tudo, é conhecer e conhecer a aplicação. Vamos à geração. Não lhe sei dizer, porque a avaliação estandardizada, nacional, é uma avaliação que tem desaparecido, e é muito difícil comparar períodos anteriores. O que sei é que entre 2006 e 2015 a nossa geração, medida pelos inquéritos internacionais, melhorou imenso. Medida pelo PISA, que estuda as chamadas competências, chamadas aplicações, e medida pelo TIMSS, que olha para o currículo e que olha para os temas curriculares, entre 2006, aproximadamente, e 2015 o sistema melhorou imenso e as avaliações internacionais melhores de sempre que Portugal teve foram as de 2015. Em 2018 pioraram um pouco, 2019 pioraram bastante, o TIMSS, e a partir daí não se sabe muito bem. Ao mesmo tempo, as avaliações nacionais não têm tido fiabilidade. Se olhar para o que é um 15 num exame de Matemática este ano e olhar para o que é um 15 num exame de Matemática de há 5 anos ou de há 10 anos, não sei comparar. Não sei se é mais, se é menos, porque, infelizmente, o nosso país não conseguiu até hoje desenvolver, e cada vez está mais distante disso, um sistema de avaliação generalizado, estandardizado, que seja fiável, que permita comparar as coisas através do tempo. Por isso, não sei se a nossa geração ainda hoje é a mais qualificada de sempre, ou seja, a geração que agora está a sair. Sei que, de acordo com certas medidas internacionais, isso aconteceu em certa época da nossa história, que não diria que é a época de ouro, mas uma época de prata, que foi essa de entre 2006 e 2015.

O que se afirma é só um jargão político, que é utilizado para arremesso partidário?
Percebo o que está a dizer e se calhar exagerei um bocadinho. Mas é difícil dizer que é a mais qualificada de sempre. É verdade que é a mais escolarizada. Nós hoje temos uma escolaridade no secundário, um abandono escolar muito pequeno, é verdade que a geração é a mais escolarizada, é verdade que é a geração que tem mais gente na universidade. Tudo isso é positivo e, desse ponto de vista, podemos dizer que sim, que a geração atual, ou a geração da última década, é a geração mais qualificada de sempre. Mas pouco mais do que isto podemos dizer porque não existem esses instrumentos de avaliação.

Em Portugal, as universidades e as empresas em geral, deviam estar mais próximas, mais relacionadas? E os estágios não deviam começar logo no secundário?
Julgo que tem razão. A escola está muito diferente, está muito melhor. Há muito maior relação com as empresas, há muito mais abertura ao exterior, há muito mais interesse das empresas em acompanhar as escolas, mas não o suficiente, estou de acordo, é preciso mais contactos. Os jovens que estão no ensino profissional, já têm esse tipo de estágios. Uns melhor, outros pior, uns mais estreitos, outros menos estreitos, e a necessidade de haver essa ligação grande entre as escolas e as empresas é uma coisa muito grande e que tem vindo a ganhar algum peso. Não sei se todos os jovens deveriam ter um estágio numa empresa quando estão no secundário... Mas é uma ideia interessante.

Um estágio pode ser uma passagem por uma semana por ano, no sentido de sair da escola e ter alguma ideia do mundo cá fora que não apenas o do mundo da sala de aula. Isso poderia ser institucionalizado ou repensado?
Institucionalizar é uma palavra muito forte, mas que isso deveria ser generalizado, acho que sim. Estou de acordo consigo, uma semana, uma passagem ou numas férias fazer um estágio numa empresa, aprender o que é que é o trabalho, o que é que é o horário de trabalho, o que é que é a relação entre as pessoas e alguns aspetos mais concretos. Acho que sim, acho que isso é importante. E na universidade também. É muito útil que as universidades tenham estágios, que sejam feitos trabalhos sobre questões empresariais. Acho que sim, com certeza.

Mas o que acontece hoje em muitas universidades, sobretudo no pós-Bolonha, é que não há estágios para quem termina uma licenciatura de três anos. Muitas vezes, são os próprios estudantes que têm que os procurar e encontrar. Isso não retira valor à própria licenciatura, ao próprio grau que é conferido, a desobrigatoriedade de estágios?
É um tema interessante. Não tenho opinião definitiva sobre isto porque repare também: nós estamos a falar do primeiro ciclo de Bolonha, estamos a falar de jovens que têm 20, 21 anos, portanto, estamos a falar de jovens adultos. Vamos supor, um jovem que resolve ir para letras devia ser obrigado a ter um estágio numa empresa? Um jovem que vai estudar francês devia ser obrigado a ter um estágio numa empresa? Era conveniente, sim, não sei se a obrigatoriedade é a palavra certa, mas que exista um grande incentivo a esse contacto com empresas a pequenos estágios, a pequenas atividades, acho que sim, acho que era muito positivo que aconteça, e já acontece muito em Portugal.

Na entrevista ao DN, a 27 de Março, disse que "no regresso à escola deveriam ter sido feitos testes nacionais". Sente que não foi ouvido? O que é que se perdeu por não terem sido feitos esses testes nacionais?
Falamos muitas vezes em educação e em muitos aspetos, todos importantes. Mas há duas coisas fundamentais para a educação, uma é a ambição curricular e a segunda é a avaliação. E é mais ou menos como em tudo, é o que se passa nas empresas. As empresas têm de ter ambição, querem vender uma coisa qualquer, então têm de ter ambição sobre o que vão vender para vender mais, para prestar um melhor serviço aos clientes, o que seja, e depois têm de avaliar o que fazem. Estas duas coisas são essenciais também em educação. Por vezes falamos de muitos aspetos que não têm a importância imensa que estes dois aspetos têm. Se não sabemos para onde queremos ir, de certeza que não vamos chegar tão longe quanto poderíamos. Se não sabemos avaliar o que fazemos, não corrigimos os erros, não verificamos o que sabemos, etc.

O que está a dizer é que hoje não sabemos para onde queremos ir com a política de educação que está a ser seguida?
Não percebo qual é a política de educação que está a ser seguida, mas não queria entrar nesse tema, não queria entrar numa discussão mesmo politizada sobre o tema. O que posso dizer é que a avaliação é fundamental, que conhecer a situação é fundamental, e é isso que os professores agora estão todos a fazer de alguma maneira. Os professores, mesmo quando estão na sala de aula, mesmo quando estão em frente aos alunos, mesmo quando estão semanas e semanas em frente aos alunos, muitas vezes, são surpreendidos quando fazem um teste e o resultado do Joaquim não é tão bom como eles pensavam, e o resultado da Joana é muito melhor do que eles pensavam. Enfim, os próprios professores que estão ali em contacto direto com os alunos são surpreendidos. Portanto, a avaliação revela as dificuldades e isso é fundamental. Julgo que a maioria dos professores está a fazer qualquer coisa parecida e deve fazê-lo.

Claro que gostaria que houvesse uma preocupação nacional mais clara com a avaliação. Gostaria, não vou esconder, e houve progressivamente uma avaliação maior e mais bem feita e agora, infelizmente, não é isso que se passa. A avaliação tem outro aspeto. É que a avaliação ajuda a estudar, agora estou a falar de outro tipo de avaliação, a avaliação formativa. Na Iniciativa Educação temos agora uma série de vídeos sobre como estudar, sobre como começar bem o ano letivo. São quatro vídeos, muito curtos, com quatro princípios essenciais. Um deles é o princípio da recuperação, ou seja, de testar-se a si próprio. Os jovens muitas vezes lêem um livro e lêem segunda vez e dizem: "já percebi". Ler a segunda vez não serve. O que serve é testar-se a si próprio. Fechar o livro e fazer perguntas a si próprio, aí é que se vê se sim ou se não entendeu. É que isto ajuda a pensar sobre a matéria. Depois, são três recomendações mais. Uma é espaçar o estudo, não condensar tudo; outra é intervalar, ou seja, estudar um pouco de Francês, depois um pouco de Matemática, depois de Física, não estar uma tarde inteira com uma disciplina; e depois a chamada "elaboração", que é relacionar os temas, fazer pequenos resumos, pequenos comentários sobre as diversas coisas de forma a que as coisas se relacionem. Isto são as estratégias de estudo, mas de todas estas estratégias de estudo que são muito destacadas pela psicologia cognitiva moderna, a chamada recuperação, o efeito de teste, de testar-se a si próprio, ou ser testado pelo professor, é um dos efeitos mais poderosos para desenvolver a aprendizagem.

Disse em março, na mesma entrevista ao DN, que os professores sentiam "revolta" por terem voltado não vacinados à escola. Considera que assim continuam ou a vacinação apaziguou-os?
O país todo percebeu que as coisas em relação à vacinação não estavam a andar. Cometeram-se muitos erros, a Europa cometeu muitos erros sobre isso, a Comissão Europeia. As coisas não estavam a andar e o país não estava a andar. E claro que isso criou alguma revolta. A solução para isso é a vacinação, porque nós não podemos passar o resto da vida de máscara e fechados uns dos outros. Mas, enfim, finalmente foi entregue a vacinação a um grupo, não de políticos, mas de pessoas operacionais que fizeram e as coisas agora estão a funcionar bem, felizmente.

A preocupação dos professores será maior para com os miúdos até aos 12 anos , os não vacinados?
Essa é uma delas. Dos miúdos e dos pais e toda a gente. Nós não podemos passar o resto da vida a fechar a turma sempre que há uma suspeita. Não podemos estar o resto da vida nisto. A vacinação tem de avançar ainda mais do que tem avançado para que se regresse à normalidade.

Inclusive para os mais novos?
Acho que sim, isto é muito discutido porque há sempre negacionistas da ciência. O que se passou com as vacinas foi absolutamente extraordinário. Isto é um recorde mundial de sempre, é histórico. Primeiro, uma vacina nova, que é a vacina RNA, e, depois, num tempo recorde, conseguiu-se vacinar e está a conseguir-se vacinar uma percentagem imensa da população no mundo, pelo menos na parte mais avançada do mundo. Isso é um progresso fantástico e é esse progresso que nos vai permitir ultrapassar esta situação difícil.

As escolas estão preparadas para este regresso à pseudo-normalidade? Haverá tensões nas escolas entre pessoal auxiliar, professores, alunos, encarregados de educação ou o facto de estarmos quase a atingir esse limite de 85% de vacinação no país pode acalmar as eventuais tensões neste regresso?
Diria que as tensões existem sempre, mas que existe neste momento uma esperança. É uma esperança geral no país e uma esperança também nas escolas e acho que isso é muito positivo. E ver os alunos, ver voltar a este contacto presencial é sempre muito positivo.

Matemática é a sua área. Porque é que ainda hoje, e quase desde sempre, há uma grande parte de alunos que não gosta da disciplina?
Há alunos que não gostam de Matemática, como há alunos que não gostam de Latim (risos)... Latim neste momento é uma raridade, infelizmente!

Mas há uma grande maioria que não gosta de Matemática, ou que tem dificuldades, certo?
Ora aí está! Aí é que acho que está o ponto. É que, muitas vezes, caímos também numa ilusão, que é uma ilusão de um erro, mais uma vez, pedagógico muito grande que é primeiro gosta-se e depois aprende-se. Não. As duas coisas vão em paralelo e o movimento principal até é o contrário, primeiro aprende-se e depois gosta-se. Ou seja, a desilusão dos alunos com a Matemática é a dificuldade em entender, a dificuldade em ter sucesso, que é uma dificuldade que todos nós temos com as coisas na vida. Se eu não consigo guiar um carro, deixo de gostar de guiar. Se não consigo saltar um obstáculo, deixo de gostar do obstáculo. Portanto, o que acontece mesmo é que os jovens precisam de ser ensinados para a Matemática e é o ensino, o domínio das coisas de uma forma sistemática e progressiva que permite aos jovens progressivamente dominarem aqueles conceitos básicos e começarem a gostar. Diria que não quero, ou não queremos, que toda a gente adore Matemática, ou que toda a gente adore Física, ou Francês, mas que exista o mínimo de gosto pelo disciplina. A Matemática é uma disciplina, sob certo aspeto, mais difícil que a maioria das outras porque é mais estruturada, é mais dependente umas das outras. É saber polinómios, é difícil entrar no estudo de funções sem saber somar polinómios, é difícil multiplicar, etc. A Matemática é uma coisa muito progressiva, e como é muito progressiva e muito cumulativa e se falha um ponto o que acontece é que na parte seguinte tem-se mais dificuldade em entender. Por isso, o meu conselho, se é que posso dar algum, é não deixar as coisas para trás, não pensar "isto não sei, mas mais tarde hei-de aprender". Não, é mais: "isto não sabes, tens de saber". Não saltes, não tentes saltar obstáculos, porque não é como nas outras matérias em que uma pessoa passa ao lado e depois consegue progredir. Não. Portanto, ver tudo, passo por passo, um ensino muito estruturado. Se posso dar alguma opinião, algum conselho, acho que o ensino da Matemática, mais que muito outro tipo de matérias, precisa de ser estruturado e não deve ser um conjunto de atividades dispersas, que é outra teoria pedagógica completamente falsa. Fazemos umas atividades dispersas, os alunos entusiasmam-se e aprendem os conceitos de uma forma crítica através do ensino pela descoberta. Não! Não aprendem nada! Pelo contrário, ficam mais desmoralizados. Claro que é preciso pôr os alunos a pensar, claro que é preciso que os alunos descubram certas coisas por si próprios, claro que é importante envolvê-los, claro que é importante fazer atividades, mas tudo isto não é assim muito estruturado, muito progressivo, muito organizado.

O sistema de ensino precisa de reformas ou precisa de continuidade? Em que momento é que estamos?
Estamos num momento de grande indecisão, porque não se percebe bem para onde é que se vai, e eu volto ao mesmo, o sistema de ensino, e os sistemas de ensino em geral, precisa destas duas coisas: ambição curricular, ou seja, saber-se o que se quer, e avaliação. Claro que depois precisa de muitas outras, precisamos de boas salas de aula, precisa de computadores no momento presente, precisa de bons professores. Mas sem estas duas coisas, ambição curricular e avaliação, não se percebe para onde se está a ir.

E nessa indecisão, estará este Governo do Partido Socialista desapaixonado pela educação?
Acho que isto não é uma história de amor, de paixões e não paixões! Acho que isto é uma questão de políticas corretas. É preciso que haja políticas corretas, é preciso que haja um currículo claro, é preciso que os alunos sejam incentivados a seguir esse currículo, é preciso que haja avaliação...

E isso deveria ser uma matéria de consenso entre os diferentes partidos?
Acho que é quase impossível haver uma matéria de consenso entre partidos. Devia pelo menos ser um assunto despartidarizado. Devia ser um assunto em que se percebe que estes temas são fundamentais em educação e que a luta política tivesse outros pontos de fricção.

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