Defesa. "Desinvestimento grave" e risco de perda de "credibilidade como aliado"

O retrato das Forças Armadas feito por três peritos em Defesa - Almirante Melo Gomes e os professores Bruno Cardoso Reis e Francisco Proença Garcia - recomenda a necessidade do reforço de investimento. No primeiro episódio do novo podcast Soberania, uma parceria do DN com o OSCOT, debateu-se a importância do Conceito Estratégico de Defesa Nacional e os desafios para um país habituado a viver com paz.
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A invasão russa da Ucrânia trouxe a guerra à Europa e um impulso para todos os países no investimento nas suas Forças Armadas. Com uma guerra na Europa há mais de um ano, Portugal está em fase de revisão do seu Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) e ainda longe do compromisso assumido em 2014 com a NATO de subir o orçamento deste setor para 2% (significaria um aumento dos atuais 2,5 mil milhões de euros para cerca de 4,4 mil milhões).

Este foi um dos temas da conversa de estreia do podcast Soberania, uma parceria do Diário de Notícias (DN) com o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), onde se vai debater Segurança, Defesa e Justiça.

Ouça aqui:

Neste primeiro episódio três especialistas em Defesa fizeram um retrato objetivo e fundamentado da situação nacional.

O Almirante Melo Gomes, ex-Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) desconfia de alguns números "martelados" nos valores da despesa na Defesa que o nosso país indica à NATO (1,44% do PIB, estimativa para 2022).

CitaçãocitacaoOs números muito bem espremidos dão sempre razão aos argumentos que queremos ter

Um dos exemplos que dá é o facto de Portugal ser o país com maior fatia de despesas com "pessoal" (63%). "Hoje são menos de 5000 soldados no Exército. Na gíria, isto é martelar números. (...) Os números muito bem espremidos dão sempre razão aos argumentos que queremos ter. O que acontece é que, como somos o último país, ex aequo no investimento em equipamento (apenas com 17,9%) , atrás de nós só está a Eslovénia, a percentagem de pessoal é obviamente muito superior. Isto já não é novo, quando há pouco investimento fica mais em pessoal".

Francisco Proença Garcia, coronel do Exército na reforma e professor de Estratégia do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, assinala que "a recomendação mais importante" da proposta ao Governo do Grupo de Trabalho (GT) para a revisão do CEDN é o aumento do orçamento de Defesa para os 2% do PIB.

Recorde-se que os 21 membros deste GT escolhido pelo Governo, oriundos de vários setores da sociedade, da Economia, à Saúde, Defesa ou Segurança, consideram este recrudescimento "indispensável para a modernização e sustentação das capacidades militares, e a melhoria das condições do serviço militar".

CitaçãocitacaoO desinvestimento é de tal forma grave que depois temos problemas como a inoperacionalidade dos carros de combate ou dos navios patrulha não navegarem horas suficientes.

Proença Garcia, que fez parte do Conselho Estratégico Nacional do PSD, ao tempo de Rui Rio como presidente, frisa que "chegámos a uma altura em que o desinvestimento é de tal forma grave que depois temos problemas como a inoperacionalidade dos carros de combate ou dos navios patrulha não navegarem horas suficientes", salientado que "há graves problemas na operacionalidade dos meios".

O cenário de paz nos últimos anos não é, no seu entender, argumento. "Nós nunca vivemos em paz, nós é que tínhamos essa noção de que vivíamos em paz. Andámos num período de adormecimento geopolítico e agora acordamos para esta realidade na Ucrânia", assevera.

Bruno Cardoso Reis, coordenador do doutoramento em História e Defesa do ISCTE e ex-assessor do ex-ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, fez parte do grupo de revisão do CEDN e não discorda.

"Nenhum país tem meios ilimitados, a menos que pensemos em exceções como o Qatar ou a Arábia Saudita, mas por regra um dos desafios da estratégia é definir prioridades e depois definir o nível de ambição, tendo em conta que os meios nunca são ilimitados. É evidente que isto é um problema que vem muito de trás e corresponde muito a esta ideia do fim da guerra fria, de estarmos todos em paz. Vale o que vale, mas a verdade é que Portugal está basicamente na média da NATO, pelo menos até agora", assevera.

Sublinha que Portugal até aumentou "em 25% o investimento na Defesa, desde 2014", mas que o problema "é que de começou de uma base muito baixa".

Citaçãocitacao"É claramente necessário reforçar esse investimento e ter a noção de que se Portugal não acompanha esta tendência nesta altura, vai ter problemas sérios pelo menos a dois níveis: primeiro, a questão da credibilidade como aliado e do peso da ação externa de Portugal.

"É claramente necessário reforçar esse investimento e ter a noção de que se Portugal não acompanha esta tendência nesta altura, vai ter problemas sérios pelo menos a dois níveis: primeiro, a questão da credibilidade como aliado e do peso da ação externa de Portugal e, em segundo, estarmos a passar por um processo de mudanças tecnológicas tremendas e se não investimos nesta altura, arriscamo-nos a ficar com forças bastante envelhecidas e incapazes de ser interoperáveis com os aliados", afirma.

Numa recente entrevista DN / TSF, questionada quanto a este compromisso dos 2% do PIB, a ministra da Defesa, Helena Carreiras, afirmou: "Não nos comprometemos com 2% do PIB e explico um pouco melhor porque é uma questão que tem sido levantada. Os 2% são uma meta, um referencial fixado em Gales, relativamente ao qual o único objetivo de Portugal foi procurar atingi-lo, mas dizendo que em 2024 nos comprometíamos a chegar a 1,66 do PIB. O ano passado, o senhor primeiro-ministro, em Madrid, antecipou para 2023 esse objetivo que é o que temos agora, tendo reafirmado a ideia de que poderíamos chegar aos 2% no final da década. Estes foram os dois únicos compromissos que de facto o governo português assumiu e é com ele que trabalhamos".

Num debate onde também se falou dos salários dos militares das Forças Armadas, "os mais baixos de todos os servidores do Estado" (Melo Gomes); da importância de olhar "para os compromissos internacionais que temos" e de termos "compromissos ativos" (Proença Garcia); e da necessidade de investir mais em "manutenção e reservas de guerra", sem ser "à custa de investir mais em novas capacidades" (Cardoso Reis); os três especialistas foram unânimes sobre ser dada prioridade à área aeronaval e à ciberdefesa.

Melo Gomes, oficial general da Marinha, reconhece que o GT "teve a visão de que a geografia é de facto imutável e de que o nosso cenário é aeronaval".

Proença Garcia aquiesce: "somos um país essencialmente vocacionado para o mar, temos de ter mais meios aeronavais. Na componente terrestre temos de ter o quanto baste para os compromissos internacionais".

Defende ainda que "há uma área muito importante que temos vindo a adiar consecutivamente que é edificação de uma escola de ciber" e, no seu entender "esse problema tem de ser resolvido", colocando o "foco em tudo o que sejam tecnologias emergentes e espaço aeronaval".

"Está em curso aprovação da extensão da plataforma continental, não nos podemos dar ao luxo de não ter meios aéreos e navais para fiscalizar, patrulhar, garantir a segurança das linhas de comunicação marítima, isso tem de existir e não sei se isso está garantido com os meios que agora existem", conclui.

Bruno Cardoso Reis não podia estar mais de acordo. "A Lei de Programação Militar é fundamental para esse efeito e em termos de áreas prioritárias a dimensão aeronaval é fundamental e temos também de ter em conta a dimensão do espaço", considera.

Acrescentou ainda que "a questão do ciber é crucial", reconhecendo que há "dificuldades" no recrutamento. "Por exemplo, em Israel optaram por fazer uma espécie de reserva permanente que acaba por funcionar também como escola de programação. Ou seja, por um lado, dão formação avançada e sabem que ao fim de cinco anos aqueles cibersoldados vão trabalhar para o privado, mas garantem-nos durante aquele período. Investir na formação e com períodos de retenção acho que é parte da solução e outra coisa pode ser termos pessoas que aceitam estar no setor privado, mas que estão disponíveis para vir colaborar numa situação de emergência", sugeriu, lembrando que está situada em Oeiras "uma academia da NATO nessa área".

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