"No meu novo livro imagino que D. Miguel ganhou a D. Pedro" 

Brunch com o editor da Saída de Emergência e escritor Luís Corte-Real.

Chego à pastelaria Garrett no Estoril entusiasmado com O Deus das Moscas tem Fome, que acabei entretanto de ler, e que me revelou a faceta de Luís Corte Real como escritor de literatura fantástica, pois o herói que criou, Benjamim Tormenta, que vive na Lisboa de finais do século XIX, é um detetive do oculto, também conhecido como o bruxeiro. Mas o pretexto inicial para esta conversa até tinha mais que ver com a outra faceta do Luís, a mais institucional, que é a de editor; aliás, conheci-o há uns anos porque publicou o meu Encontros e Encontrões de Portugal no Mundo. A sua editora, a Saída de Emergência, está agora a celebrar duas décadas e é um caso de sucesso entre as pequenas editoras, sem ligação a multinacionais. Com a promessa de que já falaremos em pormenor deste Benjamim Tormenta e de outros heróis fantásticos, peço ao Luís que conte como é que se lançou no mundo editorial, estávamos nós em 2003.

"A Saída de Emergência é a editora-mãe com várias chancelas que são a Desassossego para a não-ficção, a Chá das Cinco com uma literatura mais romântica e feminina e depois a própria Saída de Emergência em que temos duas coleções temáticas: a BANG! para tudo o que é literatura fantástica e a Eu Amo Ciência uma coleção para livros científicos", sintetiza, enquanto bebe um galão. E acrescenta: "Trabalhei em publicidade como copywriter, portanto, escrita criativa, anúncios de televisão, spots de rádio e anúncios de imprensa. Foi uma área em que estive durante dez anos, desde que saí da faculdade, e na realidade não me imaginava a fazer isso para sempre. É um trabalho muito desgastante e muito ingrato, não tem nenhum do glamour que o pessoal imagina. Ser um criativo com uma folha em branco, com um deadline apertado e com clientes que querem criatividade, mas depois chegas lá com a campanha criativa e aquilo ia para casa deles, as famílias chumbavam e no dia seguinte já não tinha o tal glamour. Depois de sentir esse cansaço, andei algum tempo sem saber o que fazer, ainda tirei um curso de franchising e pensei que podia sempre comprar um negócio, portanto, equacionei tudo, até uma lavandaria, porque não? Mas acabei mesmo por ir para os livros, completamente ao acaso, e foi quando criei a editora".

A escolha da Garrett para o pequeno-almoço tem que ver os habituais passeios à beira-mar pelo paredão próximo com as filhas e o filho e que em regra incluem depois uma ida à pastelaria. Lisboeta, nascido em 1973, Luís conta que cada vez que mudou de casa ao longo da vida foi-se aproximando de Cascais, onde agora mora. Mas se gosta da proximidade do mar não deixa de sentir fascínio pela capital. Nos livros de Benjamim Tormenta fica bem claro o amor a Lisboa e também, já lá iremos, num outro projeto enquanto escritor. Mas voltemos à aventura da criação da editora, cujo nome é revelador.

"Sou, somos, de uma geração em que não havia consolas, nem streamings, nem redes sociais ou telemóveis - ou se jogava futebol na rua ou então era ficar em casa a ler. Nem televisão quase tínhamos, desenhos animados era só ao domingo de manhã [e depois da missa, do 70 vezes 7 e do TV Rural, acrescento eu, com o riso de Luís a concordar]. O meu hobby número um era ler, o número dois também e o número três idem. Portanto, a certa altura, quando decidi que ia abrir uma empresa, fui pelo caminho da editora, mas não percebia nada de edição. Na realidade, na faculdade estudei jornalismo, mas acabei por enveredar na área de marketing e publicidade - na altura era Ciências da Comunicação que abrangia todas essas áreas. Os anos de publicidade ensinaram-me a escrever. Temos pouco espaço e temos de passar uma mensagem, isso é uma escola brutal para escrever e depois deu-me muito jeito para sinopses. A sinopse é o convite para ler um livro, se estiver mal escrita o livro já não vende, a menos que as pessoas já saibam que querem aquele livro quando chegam à livraria. A certa altura, decidi criar a editora para publicar os géneros de que gostava e que cá pouco se publicavam, como a fantasia, a ficção científica e o horror. O que é mais curioso é que não sabia como funcionava o mercado editorial. Não sabia como é que comprava os direitos, tive de aprender tudo sozinho. Depois lá descobri que há agentes literários que representam os autores, mas havia toda a questão do pagamento, como é que se calculavam os valores? Tinha os agentes a falar-me de royalties, a explicarem-me que eram uma percentagem dos livros vendidos. Só que depois, além dos royalties, também havia a questão do adiantamento sobre os royalties, portanto, devo ter parecido um analfabeto", conta, com total naturalidade, também com a confiança de quem sabe que 20 anos de aprendizagem do ofício fazem toda a diferença. Mas salienta que o mais habitual em quem abre uma editora é já ter trabalhado noutra e saber do ofício.

De início, Luís tinha a ideia de só publicar literatura fantástica, a sua grande paixão e daí a revista BANG! que é distribuída gratuita nas lojas FNAC. Mas depois percebeu que para o negócio funcionar tinha de alargar o tipo de livros editados, mesmo livros a que antes, quando ia a uma livraria, nem sequer ligaria. E dá um exemplo: "Pegámos na Nora Roberts, uma autora que em Portugal já tinha um ou dois livros que tinham vendido mil ou dois mil exemplares. Os nossos venderam logo 16 mil. Qual era a diferença? Quando começámos, havia boas editoras e bons editores, mas em termos estéticos o mercado era amador. Qualquer fotografia com baixa resolução servia. Com o know-how todo da publicidade, fizemos capas apelativas para os livros da Nora Roberts. Os livros vendiam-se como pãezinhos quentes e foi o nosso primeiro sucesso".

Quando o fundador da Saída de Emergência fala de sucessos não posso deixar de perguntar pelos livros de George R.R. Martin, que inspiraram a série televisiva Guerra dos Tronos. "Na altura, o autor era desconhecido, mas lembro-me que quando estava em publicidade recebi um prémio, o Eurobest, e tive de ir a Londres. A primeira coisa que faço quando chego é ir a uma livraria e procurar o que cá não havia. Lá tens paredes do chão ao teto com ficção científica, fantasia, horror, mas no meio daquilo tudo só queria trazer um livro ou dois. Andei ali a lamber lombadas e acabei por escolher um livro de George R.R. Martin que ainda tenho lá em casa, uma edição com uma capa horrível. Não o conhecia, aliás, quase ninguém o conhecia porque era o primeiro livro da série As Crónicas de Gelo e de Fogo. Era um autor absolutamente secundário dentro da literatura fantástica, mas escolhi o livro porque qualquer coisa na sinopse me atraiu. E só no avião li metade. Quando cheguei cá encomendei logo mais livros, na altura já existiam três e adorei aquilo. O mais interessante é que quando arranquei com a editora e comecei a conhecer agentes, houve uma espanhola - os agentes americanos são representados por agentes espanhóis para lidar com o mercado português -, que me perguntou se gostava de publicar o George R.R. Martin. Reconheci o nome e disse-lhe logo que gostava muito, que conhecia e lia, mas que eram muitos livros e muito grandes e que em Portugal não se lia assim tanto. Ainda assim, disse-lhe que daí a um ano me dissesse qualquer coisa, um bocado na ótica de a despachar. Mas a verdade é que ela passado um ano voltou à carga. Nessa altura os nossos livros estavam a vender bem, portanto, pensei porque não pegar naqueles? O que pensei foi dividir cada livro em dois porque os originais têm mais de 800 páginas. Tive mesmo de os dividir, sabia que era absolutamente inviável publicar em português um livro de fantasia com 800 páginas, e logo de um autor desconhecido. Atualmente, o George R.R. Martin tem um total de cinco livros dessa saga e nós publicámos dez por estarem divididos. Ainda assim, são enormes, alguns com mais de 600 páginas. Começou devagarinho, mas acabou por ser um sucesso. Primeiro, trouxemos o autor a Portugal e, porque ele era completamente desconhecido, ninguém olhou duas vezes para nós em Lisboa. Fizemos uma apresentação no El Corte Inglés em que apareceram 100 pessoas, o que foi espetacular. Da segunda vez que o trouxemos já havia a série na Netflix, e não se podia ir à rua com ele, nem a lado nenhum, foi uma lotaria. Já tivemos várias lotarias na verdade, acaba por ser um misto de sorte e de olho, mas esta tem um carinho especial por ser um autor de que gostava pessoalmente".

Nisto de lotaria, Luís faz questão também de dar um outro exemplo: "Na Desassossego temos um livro do Mark Manson que é o livro que mais vendeu em Portugal nos últimos cinco anos, que é A Arte Subtil de Saber Dizer Que se F*da. Aquilo apareceu-me lá, achei um piadão ao título, mas não me apeteceu ler o livro. Vi que era de autoajuda e pensei que se calhar vendíamos uns três mil exemplares e comprei aquilo baratíssimo. O livro vendeu 150 mil exemplares em Portugal, esteve mais de três anos nos tops".

Comento com Luís, enquanto bebo um segundo café, que vi terem agora uma nova edição de Os Miseráveis, de Vítor Hugo, e que fiquei surpreendido, mesmo sabendo a vantagem que é editar um livro que já não paga direitos, é de domínio público. "Já há uns anos comprámos o catálogo de uma editora, uma antiga espécie de Círculo de Leitores, que se chamava Amigos do Livro. Comprei o catálogo todo de uma assentada e fiquei com as traduções de centenas e centenas de clássicos. E estes livros embora sejam clássicos vendem sempre qualquer coisa. Se oferecermos uma edição um bocadinho mais competitiva a nível de preço e uma capa apelativa conseguem-se vendas que ombreiam com as novidades", explica.

Quanto a clássicos portugueses, Luís diz ler muitos, mas que não publica. "Nunca publiquei Eça, por exemplo, a não ser uma biografia romanceada sobre ele escrita pela Sónia Louro. Não publico, mas leio muito e tenho a obra toda em casa. O Eça é o maior escritor português de sempre, na minha opinião. Continua a ser tão atual, apesar dos livros terem 150 anos", diz, e é a hora de voltarmos ao Benjamim Tormenta, que deve o primeiro nome ao filho de sete anos do Luís e tem um apelido inventado mas que o autor descobriu entretanto existir mesmo.

"O Deus das Moscas tem Fome é uma história de horror e de literatura fantástica. É uma espécie de X Files na Lisboa queirosiana. Apesar de ter toques de romance histórico, não se pode incluir nessa categoria, tem de estar no género do fantástico. Mas a componente de romance histórico é importante porque tentei mesmo recriar a Lisboa queirosiana. Acho que os nomes dos heróis têm de ser marcas, como James Bond ou Indiana Jones e achei que Benjamin Tormenta era um nome forte, até porque o apelido pensei que o tinha inventado, mas afinal existe. É um apelido que tem tudo a ver com a personagem, que é atormentada e negra. Este é o primeiro detetive do oculto da literatura nacional, embora tenha ali umas inspirações de Sherlock Holmes, fui buscar um bocado do ambiente da Londres vitoriana. As ruas, o nevoeiro, o facto de Sherlock Holmes ter como braço direito o Dr. Watson e, neste caso, o Benjamin Tormenta tem um parceiro que é um indiano misterioso. Conan Doyle foi sem dúvida uma grande influência. Mas a grande influência é Eça de Queiroz e toda aquela descrição de Lisboa, a descrição do Teatro Dom Carlos e do Chiado, é tudo muito inspirado no Eça. Entro em modo Eça para escrever o Tormenta, sei que não escrevo como o Eça, mas tento entrar nesse modo. Depois, há também a questão do espírito que acompanha o Tormenta e que fui buscar à antiguidade, é um demónio sumério. Esse demónio está vivo há seis mil anos e o Tormenta tem-no preso dentro de si através das tatuagens que lhe cobrem o corpo. Há ali uma relação de interdependência porque sem o demónio ele não consegue resolver os casos e o demónio sem o corpo dele não consegue estar vivo".

Já saiu um segundo volume das aventuras de Benjamim Tormenta, que tem um conto passado no Porto, mas também um outro passado no Egito e que se baseia na viagem de Eça em 1869 à inauguração do Canal do Suez, sobre a qual publicou quatro reportagens no DN, jornal que também aparece várias vezes no primeiro volume. Também há um conto em que entra o próprio Eça. "Para retratar o melhor possível o Eça fui comprar todas as biografias dele e ler as descrições feitas pelos seus amigos, há para aí umas três boas ainda. Usei tudo isso para descrever o personagem", acrescenta, e é o momento em que vem à conversa a recente morte de Alfredo Campos Matos, o homem que sabia tudo sobre Eça.

Antes de pedir a Luís que me dê umas luzes sobre o seu novo projeto como escritor, pergunto se acha que se fosse um desconhecido teria convencido um editor a publicar os livros do Benjamim Tormenta e diz que talvez sim, "um ou dois, mesmo sabendo ser um subgénero da literatura fantástica e que não seria algo que fosse vender muito" [na altura da conversa não sabia, mas a Joana Petiz, também do DN, leu os dois Benjamim Tormenta e diz que se divertiu muito].

E então o que vem aí da parte do editor que é escritor? "Agora tenho um novo projeto. O livro está quase escrito, mas não está publicado. É uma homenagem à pulp fiction dos anos 30, ao Cinema Noir dos anos 40, e à banda desenhada dos anos 60. Pega em toda essa cultura popular e mais uma vez é uma carta de amor a Lisboa. Isto é, pega na cidade de Lisboa e encaixa todos esses géneros, até há uma jornalista do Diário de Notícias, inspirada na Lois Lane, a namorada do Superman. É uma história alternativa, porque no meu novo livro Portugal é um grande império graças a um evento fantástico que aconteceu nos Açores. Imagina-se que D. Miguel ganhou a guerra civil, que D. Pedro morreu e que o que temos é um Portugal na mão dos miguelistas. A história passa-se em 1928, cerca de 100 anos depois da guerra civil entre os dois irmãos. Portanto, o D. Miguel em cena já é o terceiro no trono, Portugal é totalmente diferente, houve uma união ibérica e outras coisas que aconteceram, é uma história alternativa que é um subgénero da ficção científica. Ainda assim, tento que seja historicamente rigoroso, mas tem de ir para a prateleira do fantástico. Lisboa é a personagem principal, imagina a cidade com arranha-céus, com dirigíveis a cruzar os céus, com estátuas de todos os Miguéis, o Brasil foi recuperado e o império colonial português está no auge. Depois, há várias personagens que vão prestar homenagem a uma série de coisas de que gosto. Temos um detetive que podia ser o Marlowe, temos a jornalista do Diário de Notícias, temos um super-herói que podia ser o Batman, mas que aqui é o Sem Pavor, não de Gotham, mas de Lisboa..." E mais não deixo o Luís contar. Este livro é para ser comprado e lido quando chegar um dia às livrarias.

leonidio.ferreira@dn.pt

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