"No ISCTE, estamos a atingir os limites. Pela primeira vez, não aumentámos o número de vagas"

A reitora do ISCTE quer que o novo governo devolva a autonomia das universidades perdida durante a troika e considera que Elvira Fortunato é uma boa escolha para liderar a tutela. Mudança nos critérios de concurso do PRR deixou a instituição com verbas para abrir novos cursos em Sintra, mas a construção do edifício terá de ficar para mais tarde.

Quais devem ser as prioridades do novo Executivo em termos de ensino superior, ciência e inovação?
Gostava que fosse reforçada a autonomia das instituições de ensino superior, que fosse retomada essa autonomia nos termos pré-troika, que fosse respeitada a lei do financiamento, que ela fosse aplicada. O novo ministro vai ter um grande desafio, porque o anterior não resolveu, e o problema mantém-se. Gostava também que se mantivesse esta clareza nas políticas de ciência, de ensino superior, de inovação e de economia, que elas não fossem subsumidas. É necessário também que se aprofunde a articulação entre a política de ensino superior e a política de ciência, porque 50% da investigação que se faz no país faz-se nas universidades. O mesmo em relação às políticas de inovação e de ciência e da economia.

O que acha da manutenção do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior?
É uma solução que permite aprofundar a articulação entre o ensino superior e a ciência. Cerca de 50% da investigação faz-se em centros de investigação, que estão na esfera das universidades e dos politécnicos, é necessário aproveitar a tutela comum para promover políticas de efetiva articulação.

E o que acha da escolha de Elvira Fortunato para a pasta?
É sem dúvida uma investigadora conhecedora do setor, com ideias precisas e divulgadas sobre os obstáculos a remover, designadamente técnico-burocráticos, para melhorar e diversificar o financiamento da investigação. Participou num estudo para a desburocratização do financiamento do sistema científico e em várias das suas tomadas de posição públicas tem feito referências importantes a esse tipo de obstáculos. No que respeita ao ensino superior, certamente que a sua experiência como vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa lhe proporcionou uma oportunidade de contacto com os principais desafios.

O ISCTE celebra este ano 50 anos. Por onde passa o futuro do ISCTE? Quais são os objetivos do seu novo mandato?
O futuro do ISCTE é muito importante que se inscreva naquilo que é a trajetória dos últimos 50 anos, porque foram 50 anos de muita inovação, de afirmação no espaço do ensino superior em Portugal. O programa que defini para os próximos quatro anos tem este sentido e resumi esse programa em cinco grandes objetivos. O primeiro é a consolidação da articulação entre o ensino e a investigação, numa perspetiva muito pluridisciplinar, que, no nosso caso, combina as engenharias com a área das ciências sociais, somos a única escola que tem esta combinação dentro do mesmo campus e que vai culminar na requalificação do edifício do IMT, com uma frente para a Avenida das Forças Armadas. Vamos ter com um novo edifício, que se chamará Conhecimento e Inovação, e que justamente faz esta articulação entre o ensino, a investigação, das tecnologias digitais com as ciências sociais. O segundo objetivo é a modernização tecnológica do campus. A pandemia veio revelar a fragilidade da nossa infraestrutura tecnológica - nós temos vindo a melhorar as condições, sobretudo remuneratórias, o posicionamento nas carreiras, etc. -, agora é continuar a melhorar as condições de trabalho, mas na perspetiva das condições físicas e tecnológicas. Depois, a questão das residências, que é essencial para a internacionalização. A quarta prioridade é a sustentabilidade financeira do ISCTE. O ISCTE cresceu muito nos últimos dez anos e há mais de dez anos que não é aplicada a fórmula de financiamento. E, finalmente, Sintra, que é a expansão do ISCTE cumprindo o serviço público na área metropolitana de Lisboa, sobretudo na coroa norte da área metropolitana.

Pode explicar o projeto das residências para estudantes?
Com a Câmara de Odivelas, que tem aquele espaço onde estava instalado o Colégio de Odivelas, temos um compromisso para aproveitar as antigas camaratas para a residência de estudantes. Há um outro projeto na Estação de Santa Apolónia, num edifício disponibilizado para requalificação pelo Ministério das Infraestruturas, que cedeu a ala norte da Estação de Santa Apolónia e o projeto está arrancar. Depois temos um projeto em Sintra, tendo lá uma escola vai ser necessário ter uma residência. E temos um projeto na Amadora para a construção de um edifício de raiz.

Quantas camas?
Odivelas são cerca de 200 camas, Amadora 250, Sintra 250 e Santa Apolónia é também à volta das 250.

Fale-me de Sintra.
A escola de Sintra é um projeto de mais uma escola do ISCTE, a quinta. É a criação da quinta escola, que será dedicada ao ensino das tecnologias digitais aplicadas a diferentes contextos e setores. Depois de muitas reuniões e de muito trabalho, percebemos que há um espaço para formar em tecnologias, combinando com a compreensão dos setores de aplicação, ou seja, os problemas na área da saúde, os problemas na área da educação, os problemas específicos da indústria, os problemas específicos da arte e da cultura, tudo o que respeita ao património. Temos um portfólio de onze cursos que combinam de forma diferente as tecnologias digitais com estes contextos da sua aplicação. Acreditamos que esta é também uma forma de alargar ou de envolver mais mulheres na formação em tecnologias.

Estamos a falar de que cursos?
Licenciaturas. Também haverá cursos de mestrado, mas a grande novidade é ao nível dos cursos de licenciatura. E o que arranca em setembro são estes cursos de licenciatura. Como a escola não está ainda construída, nem o PRR disponibilizou financiamento para a sua construção, o que estamos a fazer é alugar um espaço no centro da vila, que estamos a qualificar, para que os cursos possam arrancar enquanto a escola se constrói.

Estava a falar de abrir caminhos às mulheres. O ISCTE é um caso ímpar em Portugal, tem uma reitora e três das suas quatro escolas são lideradas por mulheres. É algo que a orgulha ou encara com naturalidade?
Eu encaro com orgulho, mas também com naturalidade, conhecendo o ISCTE, que tem uma larga maioria de docentes e de investigadores que são mulheres. A escola mais masculinizada, digamos assim, é a escola de Engenharia. Anormais foram os 13 anos anteriores à minha chegada, em que, não apenas o reitor era um homem, como toda a reitoria era constituída apenas por homens. Foi uma coisa que eu lhe disse na altura e que continuo a achar, mesmo quando a liderança feita por homens pode haver um esforço de envolvimento de mulheres nas equipas de gestão, que muitas vezes não é feito. O que falta, na minha opinião, é fazer mais, é ter mais mulheres. Eu atingi tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista académico, o exercício todos os cargos sem nenhum problema por ser mulher. Mas também me senti muitas vezes numa minoria pouco justificável. No Conselho de Ministros a existência de apenas duas mulheres numa mesa de vinte homens é um pouco estranho. E, por essa razão, eu sou defensora das quotas, pois permitem abrir o espaço às mulheres que depois se torna mais natural.

Diz que o principal obstáculo para o desenvolvimento sustentável das universidades que têm crescido no número de alunos reside na não aplicação da lei de financiamento do Ensino Superior. O que é preciso para que a lei seja cumprida?
É preciso que o governo cumpra a lei, aplicando-a. O Tribunal de Contas fez uma auditoria em que chamou a atenção do governo para que fosse tomada uma decisão, ou se aplica a lei ou se muda a lei. É uma grande responsabilidade existir uma lei de financiamento, aplicada em dois ou três momentos, e depois suspende-se a sua aplicação. Ela tinha sido aplicada em 2009 e suspensa em 2010 em resultado da crise. Mas a crise financeira de 2010 já lá vai há muito tempo, muitas medidas foram revertidas, e a lei de financiamento continuou a não ser aplicada. O que ouvi muitas vezes o ministro dizer foi que não se podia tirar a uns para dar a outros, mas realmente é o que está a ser feito. Não se aplicando a lei, o que acontece é que nas universidades em que o número de alunos cresceu, como o ISCTE, o financiamento ficou estagnado. Houve outras instituições de ensino superior que perderam alunos e viram o seu financiamento nos mesmos níveis. O que significa que têm hoje um financiamento por aluno e por professor muito superior às outras universidades. Portanto, esta situação tira a uns para dar a outros. A forma correta de colocar o problema é aplicar a lei. Pode-se exigir períodos de transição, pode-se exigir a ponderação de fatores de coesão, pode-se exigir a ponderação de outros fatores, o que não podemos ter é um financiamento das instituições de ensino superior totalmente dissociado do número de alunos, porque, no limite, uma instituição pode perder todos os seus alunos e continuar com o mesmo financiamento. E as instituições que têm os alunos não veem reconhecido seu trabalho, financiado o seu trabalho.

Como é que se reflete no ISCTE?
Os professores do ISCTE trabalham muito mais horas do que os professores das outras instituições, têm muito mais alunos, e os nossos alunos não beneficiam da Ação Social como podiam beneficiar em resultado dessa situação. Os docentes do ISCTE, carregados de aulas e de alunos, não conseguem ter tempo para a investigação como lhes é exigido pelo estatuto, não há milagres. E isso compromete o desenvolvimento da instituição. No ISCTE, estamos a atingir os limites. O ano passado, pela primeira vez, não aumentámos o número de vagas. Não é possível aumentar vagas com o mesmo número de docentes. Aqui, os professores de carreira têm, em média, 34 alunos. A universidade que mais se aproximava do ISCTE era a Nova e cada professor tinha 22 alunos. Em todas outras, a média, era de 20 alunos, que é o que é razoável.

Na sua tomada de posse referiu que os apoios dados às universidades no âmbito do PRR correm o risco de ser uma oportunidade perdida, uma vez que não premeiam os projetos de maior qualidade.
Sim, podem ser uma oportunidade perdida... Houve um concurso e uma avaliação da qualidade dos projetos, foram avaliados por um painel de alto nível, em função das diferentes características. Só houve cinco nos 35, 38 projetos, que obtiveram classificação máxima - ISCTE, Universidade de Lisboa, Universidade Nova, Universidade de Aveiro e Universidade do Minho. E estas cinco instituições, que tinham projetos da mesma ordem de grandeza, tiveram financiamentos tão diferenciados como uma delas receber cerca de metade do que recebeu a outra. Há uma destas cinco que recebe cerca de 20 milhões de euros e a outra que recebe onze. E foi desigual porquê? Porque o critério que mais pesou foi o da dimensão da instituição. A universidade que tinha um bom projeto e era muito grande levou mais dinheiro que a universidade que tinha um ótimo projeto também - no nosso caso, era a escola de Sintra e recebemos metade do financiamento. Isto é a perversão da avaliação da qualidade, da capacidade de inovação, das instituições, é a perversão completa. No caso de Sintra, comprometeu o projeto, recebemos apenas o financiamento para arrancar com os cursos, mas não para fazer a escola.

Diz que o futuro é exigente e que novos desafios requerem novas políticas de ciência, inovação e ensino superior articuladas e que assegurem a autonomia e a capacidade de inovação das universidades. Os executivos de António Costa têm falhado nesta gestão?
Uma parte do que aí digo é que nós precisamos destas políticas, todas, de inovação, de ensino superior, de ciência, de economia, e elas não se podem subsumir.

Mas, ao mesmo tempo, garantindo a autonomia e a capacidade de inovação das universidades? A tutela tem feito uma boa gestão?
Há muitos bloqueios técnico-burocráticos à inovação no ensino e isso não foi resolvido nos últimos anos. Há um despacho famoso, que sai todos os anos, chamado despacho de vagas, que diz em cada universidade e em cada curso quantos alunos podem entrar de novo. No despacho há um artigo que diz que para abrir um novo curso as instituições de ensino superior têm que fechar outro. Vivo mal quando há um despacho ministerial que me diz que para abrir um curso novo que eu, no quadro da minha autonomia e do conhecimento que tenho do que são as necessidades do mercado, considero que é urgente abrir, que foi o caso da Ciência de Dados - como se provou, está cheia de alunos - e dizem que as universidades não têm essa capacidade. E eu olho para os meus 16 cursos e pergunto "qual é que eu vou fechar? São todos necessários, estão todos cheios de alunos". É apenas um exemplo de como as universidades têm autonomia, têm capacidade de inovação e há mecanismos burocráticos que as constrangem. Com a troika, as universidades perderam muita autonomia, sobretudo ao nível da gestão financeira. Mas a troika já se foi embora há muito tempo, muitas coisas foram revertidas.

ana.meireles@dn.pt

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