"Nas últimas décadas, a nível global, as disparidades entre trabalhadores acentuaram-se consideravelmente"
Está a finalizar o seu segundo mandato à frente da OIT. Teve de lidar com a crise financeira, com a pandemia e com a atual guerra na Ucrânia e os seus efeitos na economia mundial. Em todas elas a situação dos trabalhadores foi prejudicada mais do que a de outros setores?
Tal como salientei durante a Conferência Internacional do Trabalho, que terminou a 11 de junho, a pandemia de covid-19 teve impactos profundos nos trabalhadores e nas empresas - impactos que continuam a repercutir-se hoje em dia. O número de horas trabalhadas globalmente no primeiro trimestre de 2022 permaneceu quase 4% abaixo dos níveis pré-pandémicos. Isto é o equivalente a 112 milhões de postos de trabalho a tempo inteiro perdidos. Além disso, as múltiplas crises resultantes do conflito na Ucrânia contribuem para agravar os desafios enfrentados pelos governos, trabalhadores e empregadores. A frágil e desigual recuperação do mercado de trabalho no ano passado parece ter-se invertido em grande parte do mundo, pondo em risco os nossos esforços para progredirmos e construirmos melhor a partir da pandemia. Temos de encarar os factos de frente. O nosso objetivo coletivo de uma recuperação sustentável e centrada no ser humano, fundada na justiça social, está sob ameaça. Isto é, na realidade, motivo de preocupação se não mesmo de alarme. Porque por detrás destas estatísticas estão pessoas, famílias e as suas comunidades. São os que vivem em economias de rendimento médio e baixo que mais sofrem, aprofundando-se as desigualdades dentro e entre nações. A inflação mais acentuada dos preços dos alimentos e da energia - juntamente com o aumento das taxas de juro - tornam ainda mais complicada a vida quotidiana dos trabalhadores e das empresas. Tudo isto está a exercer uma enorme pressão sobre os mercados de trabalho em todo o mundo. Mesmo antes da pandemia, muitas pessoas já enfrentavam os desafios da desigualdade, desemprego elevado, níveis crónicos de informalidade, aumento do número de trabalhadores pobres e ausência de proteção social, diálogo social e respeito pelos direitos laborais. Entre os mais duramente atingidos encontram-se as mulheres, os jovens e um número crescente de refugiados e pessoas deslocadas. Nada disto é de bom augúrio para a paz e estabilidade. Nas palavras da Constituição da OIT: "A pobreza em qualquer lugar constitui um perigo para a prosperidade em todo o mundo." É por isso que no ano passado a OIT lançou um "Apelo Global à Ação" para uma recuperação centrada no ser humano que dê prioridade à criação de empregos dignos para todos e combata as desigualdades causadas pela crise. Pretende-se que os países se comprometam a assegurar que a recuperação económica e social da crise seja "plenamente inclusiva, sustentável e resiliente". O acordo inclui dois conjuntos de medidas acordadas. O primeiro abrange medidas a serem tomadas pelos governos nacionais e parceiros sociais - organizações de empregadores e de trabalhadores - para alcançar uma recuperação rica em empregos que reforce substancialmente a proteção social e no emprego dos trabalhadores e apoie empresas sustentáveis. Um segundo conjunto de medidas abrange a cooperação internacional e o papel das instituições multilaterais, incluindo a OIT, com o objetivo de aumentar o nível e a coerência do seu apoio a estratégias nacionais de recuperação da pandemia "centradas no ser humano". Apela à OIT - com base no seu mandato de justiça social e trabalho digno - para que desempenhe um papel de liderança e utilize todos os meios de ação para apoiar a conceção e implementação de estratégias de recuperação que não deixem ninguém para trás, inclusive através do reforço da cooperação com outras instituições do sistema multilateral.
As grandes desigualdades no mundo também se sentiram mesmo comparando entre trabalhadores?
Nas últimas décadas, a nível global, as disparidades entre trabalhadores acentuaram-se consideravelmente. Muitas das mudanças transformativas a que assistimos, tais como a aceleração da globalização, inovação tecnológica ou alterações climáticas, provocaram um impacto diversificado nos trabalhadores. Apesar de as liberalizações comerciais terem aumentado a produção e constituírem um fator-chave para apoiar milhões de pessoas a saírem da pobreza, também é verdade que geraram "vencedores e perdedores" e aumentaram as desigualdades de rendimentos dentro dos países, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Similarmente, a inovação e as novas tecnologias são uma das principais fontes de crescimento económico a longo prazo, apenas beneficiando, no entanto, aqueles que possuem as competências e o acesso para as utilizar. As alterações climáticas estão a impactar o mundo de forma muito desigual, em que frequentemente os países em desenvolvimento - que menos contribuem para o aquecimento do planeta e a degradação ambiental - são os que mais sofrem com as secas, inundações ou a subida do nível das águas do mar a que assistimos em todo o mundo. Em muitos países em desenvolvimento estas tendências contribuíram para uma crescente polarização entre uma pequena parcela da economia, produtiva, regulada e formal, onde os trabalhadores auferem salários relativamente elevados, acesso à formação e segurança social, e uma economia informal muito maior, que não só está fora da regulação e apoio do Estado como apresenta consideráveis défices de trabalho digno e salários mais baixos. Mesmo nos países mais desenvolvidos, as desigualdades entre os trabalhadores permanecem muito elevadas. As desigualdades de rendimento estão a aumentar na maioria dos países europeus, e, apesar de nos últimos anos os trabalhadores com baixos salários em alguns países, tais como Portugal, terem visto o seu salário crescer um pouco, a atual crise de covid-19 inverteu em grande medida essas tendências. Embora muitos países, incluindo Portugal, tenham reagido rapidamente com pacotes de estímulo direcionados, que amorteceram o pior do impacto económico, a falta de espaço orçamental em muitos deles e o acesso desigual às vacinas em todo o mundo tornou flagrantemente óbvio que, como um todo, ainda nos falta a capacidade de resistência das nossas economias e das nossas sociedades para reagir adequadamente a tais choques.
Foi sob a sua liderança que a OIT celebrou o centenário. Que balanço faz das mudanças nestes 100 anos?
Novas forças estão a transformar o mundo do trabalho. Existem inúmeras oportunidades para melhorar a qualidade de vida no trabalho, expandir as possibilidades de escolha, colmatar as disparidades de género, inverter os danos provocados pela desigualdade global, e muito mais. No entanto, nada disto acontecerá por si só. Sem uma ação decisiva, estaremos a caminhar para um mundo que alarga as desigualdades e incertezas existentes. Os avanços tecnológicos - inteligência artificial, automação e robótica - gerarão novos empregos, mas aqueles que perderem os seus empregos nesta transição poderão ser os menos capacitados para agarrar as novas oportunidades. As competências de hoje não encontrarão correspondência nos empregos de amanhã e as competências recentemente adquiridas podem rapidamente tornar-se obsoletas. A ecologização das nossas economias gerará milhões de postos de trabalho com a adoção de práticas sustentáveis e tecnologias limpas, no entanto outros postos de trabalho desaparecerão à medida que os países forem reduzindo as suas indústrias intensivas em carbono e recursos. As alterações em matéria de demografia não são menos significativas. A expansão da população jovem nalgumas partes do mundo e o envelhecimento da população noutras podem colocar pressão nos mercados de trabalho e nos sistemas de segurança social, mas nestas mudanças residem novas possibilidades de proporcionar sociedades inclusivas, dinâmicas e capazes de prestar cuidados aos seus membros. As incertezas e inseguranças do nosso tempo sublinham quão fundamental é a realização da justiça social para a estabilidade e para a paz e quão vital é o acesso ao trabalho digno para o progresso do bem-estar humano. A OIT, que tem acompanhado as mudanças do passado, quer desempenhar um papel importante no futuro do trabalho. Deve a sua longevidade, os seus 100 anos de atividade ininterrupta, que é única no sistema internacional, a três fatores. O seu mandato para a justiça social - porque o reflexo humano para a justiça e para o respeito dos direitos é universal e permanente; a sua composição tripartida, porque não é certamente por acaso que quando outras organizações puramente intergovernamentais caíram, só a OIT tripartida sobreviveu, e, finalmente, devemos isso à nossa constante capacidade de adaptação - de nos virarmos para os desafios da mudança em vez de nos afastarmos deles.
Esteve várias vezes em Portugal, uma delas para a Cimeira Social no Porto. Que resultados teve essa iniciativa da presidência portuguesa da UE?
De uma perspetiva social e de emprego, a Cimeira Social do Porto (7-8 de maio de 2021) pode ser considerada um dos grandes destaques da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (janeiro-junho de 2021). A cimeira tem sido fundamental na definição da agenda social para a Europa para a próxima década, revitalizando e dando impulso político à dimensão social da UE, trabalhando coletivamente para alcançar a Agenda 2030 das Nações Unidas e os ODS, a Declaração do Centenário da OIT e o Apelo Global à Ação para uma recuperação centrada no ser humano da crise de covid-19 que seja inclusiva, sustentável e resiliente. Talvez o resultado mais importante que saiu da cimeira tenha sido a forte reafirmação dos atores tripartidos europeus (os 27 Estados-membros da UE, instituições da UE e parceiros sociais) do seu compromisso em trabalhar para uma "Europa social" que não deixe ninguém para trás e uma Europa construída sobre um modelo económico que seja inclusivo, sustentável, justo e gerador de emprego. Após mais de uma década focada no domínio orçamental e económico, isto só pode ser saudado e está estreitamente alinhado com a agenda do trabalho digno da OIT. A cimeira renovou, ao mais alto nível político, o compromisso de implementar o pilar social da UE, tal como expresso nos 20 princípios do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, adotado na Cimeira Social de Gotemburgo, em 2017. As prioridades enunciadas na Declaração do Centenário da OIT correspondem estreitamente aos objetivos do Pilar Europeu dos Direitos Sociais. A Declaração do Porto sobre questões sociais adotada pelos líderes dos Estados-membros da UE expõe a sua visão para a transição digital, verde e justa da Europa (adotada a 8 de maio). Além disso, expressa a determinação política dos Estados-membros da UE em continuar a aprofundar a implementação do Pilar Europeu, tanto a nível da UE como a nível nacional, através da orientação fornecida pelo Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, incluindo nos domínios do emprego, competências e proteção social.
Quer destacar pontos altos da relação entre a OIT e Portugal?
A OIT e Portugal têm uma relação sólida, longa e rica. Portugal é um dos membros fundadores da OIT. Naturalmente que esta relação de mais de 100 anos tem sido impactada pelos contextos económicos, sociais e políticos nacionais e internacionais, justificando os momentos altos e os momentos mais difíceis dessa relação, estes durante a ditadura, e também explicando como chegámos aqui, a este lugar da nossa história conjunta em que partilhamos os mesmos valores e trabalhamos juntos para alcançar trabalho digno e justiça social para todos. Mas se eu fosse escolher os pontos altos, provavelmente mencionaria três períodos. O primeiro entre a vossa Revolução, em 1974, e 1986, quando aderram à CEE. Foram ratificadas 35 convenções durante esse período e houve uma forte cooperação técnica entre nós que influenciou as reformas sociolaborais, leis, políticas e instituições do país, e penso que é justo dizer que acabou por contribuir para a sua adesão à CEE. Em 1987, Mário Soares, o primeiro Presidente português a dirigir-se à nossa Conferência Internacional do Trabalho, fez uma promessa, que Portugal manteve até hoje, de que o vosso país continuaria a ser um parceiro comprometido com os principais objetivos da OIT. Destacaria ainda o final da década de 90. Em primeiro lugar, porque Portugal apoiou plenamente a Agenda do Trabalho Digno e, em segundo lugar, porque esse compromisso começou, nesse período, a traduzir-se num apoio muito relevante à cooperação técnica da OIT em benefício dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), bem como de Timor-Leste, numa fase posterior. Apoio que se mantém até hoje. Desde a fundação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que Portugal tem promovido uma forte relação entre esta comunidade e a OIT, juntamente com os outros Estados-membros e o seu secretariado executivo, com quem assinámos em 2004 um memorando de entendimento. A OIT reconhece a CPLP como um parceiro importante - uma comunidade de mais de 150 milhões de trabalhadores, representando atualmente nove países e quatro continentes. A CPLP está também presente nas muitas organizações internacionais e regionais com as quais a OIT mantém uma forte colaboração: ASEAN, MERCOSUL, União Africana, União Europeia e bancos regionais para o desenvolvimento... Esta forte relação tem permitido uma maior presença da agenda da OIT nos seus Estados-membros. Finalmente, gostaria de destacar o trabalho que desenvolvemos em conjunto durante o meu mandato. Durante este período, Portugal convidou a OIT, entre outros estudos, a produzir em conjunto uma análise completa e abrangente do mercado de trabalho português e a contribuir para o desenvolvimento de vários projetos nacionais. Creio que este é um ótimo exemplo de uma cooperação mutuamente benéfica, que reforçou ainda mais a relação entre a OIT e Portugal.
E, já agora, quais considera ser os grandes sucessos dos seus dois mandatos?
É muito difícil avaliar os nossos próprios sucessos - e fracassos. Isso é realmente para outros fazerem. No entanto, penso que é importante referir que a relevância da OIT em algumas das principais instâncias políticas internacionais foi reforçada. A Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável 2030 tem um enfoque muito forte no mandato da OIT e no trabalho digno. Temos também sido capazes de abordar com bastante eficácia as questões emergentes do mundo do trabalho. Esta foi toda a lógica da Iniciativa do Centenário da OIT sobre o Futuro do Trabalho, que, penso, deu à OIT um roteiro sólido para os próximos anos. Se se decompuser isto em questões específicas, destacaria a forma como a OIT assumiu o desafio de uma transição justa para um mundo do trabalho neutro em termos de carbono. Teremos de reforçar ainda mais as nossas capacidades de apoio aos nossos Estados-membros nessa transição. Mas já estabelecemos o consenso tripartido sobre o que precisa de ser feito e libertámo-nos da falsa escolha entre empregos e o ambiente. Avançámos também na proteção social e, em setembro passado, juntámo-nos ao secretário-geral da ONU, António Guterres, para lançar o Acelerador Global para o Emprego e a Proteção Social. Ao nível dos países, a OIT tem a responsabilidade fundamental de proteger e assistir aqueles dos nossos membros que se encontram sob pressão de governos - muitas vezes em circunstâncias dramáticas que põem em risco vidas e liberdade. Infelizmente, a nossa última reunião do conselho de administração, na semana passada, teve de analisar tais situações em Myanmar, na Bielorrússia e na Venezuela. Nesta sessão do conselho de administração foi ainda analisada a situação na Ucrânia. Senti que precisava de estar particularmente empenhado em questões como estas - por vezes através de intervenções publicamente visíveis e outras vezes de forma mais discreta. Também estou satisfeito por termos adotado em 2019 uma convenção que compromete os países a erradicar a violência e o assédio no trabalho - uma imensa e escondida área de abusos que temos de eliminar. E talvez seja igualmente importante que a OIT tenha conseguido navegar com sucesso pelas tempestades dos últimos 10 anos. É o lugar onde o multilateralismo se cruza com o tripartismo e ambos enfrentaram alguma turbulência considerável durante esse tempo. Graças também à dedicação de todos os meus colegas, a OIT conseguiu atravessar muito bem o período da covid - continuámos a funcionar, mantivemos um contacto constante com os nossos constituintes e desempenhámos, penso eu, um papel meritório na resposta à pandemia.
Vai reformar-se ou pretende levar a sua experiência na OIT para a política do seu país, o Reino Unido?
Não vou certamente entrar na vida política no Reino Unido - algo que observo à distância, com considerável preocupação e por vezes perplexidade. Mas também não me irei apenas reformar. Convidaram-me para ser presidente do Centro Internacional para o Desporto e os Direitos Humanos, com sede aqui em Genebra, e estou ansioso por me envolver nisso. E, embora não tenha grandes planos, estarei sempre pronto a dar uma ajuda se e quando puder ser útil - mas sem me intrometer no caminho daqueles que têm as verdadeiras responsabilidades para o futuro.
O que sentiu que deixou de fazer?
A principal coisa que não consegui fazer foi resolver a grande controvérsia que rebentou na OIT pouco depois da minha eleição (e antes mesmo de tomar posse) em relação ao sistema de supervisão das normas da organização. É crucial que a OIT possa responsabilizar os governos pelo respeito pelas convenções que decidam ratificar. Temos um sistema bem desenvolvido para o fazer, com um comité de peritos no seu centro. No entanto, os representantes dos empregadores na OIT questionaram a sua autoridade e consideraram que se enganaram ao sustentar que existe um direito à greve contido na Convenção fundamental da OIT n.º 87, sobre a liberdade de associação. Há toda uma série de questões jurídicas e técnicas envolvidas, mas a minha preocupação é que as discordâncias não resolvidas possam prejudicar gravemente uma função crítica da OIT. Infelizmente, não tem sido possível acordar uma forma de avançar e eu lamento profundamente que assim seja. Trata-se de um problema que terei de passar ao meu sucessor.