"Não basta dizer que idosos vão ser incluídos na vacinação. É preciso um plano novo"
Há dois meses, precisamente a 26 de novembro, era noticiado que a Comissão Técnica para a Vacinação Contra a Covid-19 tinha concluído os critérios que iam constar do Plano Nacional de Vacinação e que deste estavam excluídos da primeira fase os idosos com mais de 75 e 80 anos.
O plano apostava como prioridade nos profissionais de saúde e em outros considerados essenciais, em residentes e trabalhadores em lares e instituições semelhantes, e nos maiores de 50 com patologias crónicas. Quando se soube, o primeiro-ministro e o Presidente da República reagiram, dizendo, António Costa, que "a decisão seria política" e, Marcelo Rebelo de Sousa, que era uma "decisão tonta".
O certo é que o plano foi apresentado logo a 2 de dezembro, o prazo só terminava a 17, e mantinha os mesmos critérios. Durante dois meses, especialistas na área da saúde, médicos, Ordem dos Médicos e outros têm vindo a contestar a decisão, fundamentando que não poderia ser assim, que estava provado que esta pandemia atacava sobretudo os mais idosos, que eram estes que estavam a morrer e que o inverno, o frio, ainda os iria fragilizar mais.
Ao DN vários especialistas chegaram a dizer que Portugal iria pagar um preço muito alto, e que este era um agravamento da mortalidade acima dos 80 anos. O resultado está à vista: até ontem o país já perdeu 10 721 pessoas, mais de 70% acima dos 80 anos. E vai perder muito mais, se algo não se fizer de diferente.
Mas agora, e como defenderam ontem ao DN o professor catedrático jubilado e especialista em Saúde Pública, Constantino Sakellarides, e o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, "não basta dizer que vão ser incluídos é preciso ficar escrito, é preciso dizer como o vão fazer e com que vacinas". Sakellarides sublinhou mesmo que, perante o erro cometido na definição dos critérios e a intransigência que marcou a atitude da task force para operacionalizar o Plano de Vacinação contra a covid-19, liderada pelo ex-secretário de Estado da Saúde Francisco Ramos, para abordar esta questão que, neste momento, "é preciso um plano novo, é preciso saber como se vai fazer essa vacinação".
Mais. O especialista criticou o papel da task force referindo que "foi preciso o poder político intervir para se mudar um erro detetado há dois meses", criticando a ação da task force. "Primeiro erram nos critérios, em segundo observam o que os outros países estão a fazer e não corrigem, em terceiro, e depois dos contínuos pedidos de peritos para reconsiderarem e discutirem a questão mostram-se absolutamente intransigentes, e só ontem vêm dizer que vão alterar, devido à pressão social e política. A questão que se coloca aqui não é o que foi dito, mas a forma como uma questão fundamental no combate à pandemia tem vindo a ser abordada. Não sei como é que uma Task Force se pode conservar depois de tanto erro."
Para o professor de Saúde Pública, "a 8 de dezembro, quando o Reino Unido começou a vacinar a população, tornou-se imediatamente evidente a discrepância que existia entre o plano inglês e o português" - o Reino Unido tinha como prioridade para a primeira fase os mais idosos nos lares (e os seus cuidadores), os maiores de 80 anos, em conjunto com os profissionais de primeira linha da saúde e ação social, os maiores de 75 e de 70 anos, em conjunto com os doentes clinicamente mais graves.
Uma prioridade que não foi só assumida pelo RU, mas também por outros países europeus. Como se não fosse evidente, a Comissão Europeia veio alertar na semana passada os Estados-membros para o facto de terem de ter, até ao final de março, vacinados 80% dos profissionais de saúde e dos idosos com mais de 80 anos.
Uma orientação que "veio mostrar que Portugal estava a fazer errado e que as prioridades estabelecidas para a vacinação no nosso plano não eram de todo aceitáveis e que tinham de ser modificadas, o mais rapidamente possível", reafirmou o professor ao DN, argumentando não ser verdade que, e tal como têm vindo a defender a task force e Comissão Técnica, que a opção atual considerava o fator idade como elemento fundamental na definição das prioridades (independentemente de se viver num lar ou ter uma doença grave).
"Durante estes quase dois meses que há um conjunto de pessoas das mais diversas proveniências, desde professores de Direito, peritos em Saúde, profissionais de saúde, Ordem dos Médicos, que vêm a dizer que a vacinação não poderia ser assim, porque nos outros países europeus se estava a verificar que a idade era um fator fundamental no combate ao impacto da mortalidade nesta pandemia", sublinha Constantino Sakellarides, desabafando: "Foi preciso haver intervenção do poder político para se dizer a uma task force técnica que a vacinação tem de ser feita de outra forma." Por isso, defende, que nesta altura "não basta dizer que se vai vacinar é preciso definirem como é que isto vai ser feito".
O anúncio de que o plano estava a ser trabalhado para incluir os idosos como mais de 75/80 anos foi feito ontem pela ministra da Saúde, Marta Temido, depois de uma reunião com a Task Force. Em declaração aos jornalistas, a ministra fez o balanço da vacinação, mais de 255 mil pessoas até ontem, entre profissionais de saúde residentes e trabalhadores em lares, e disse que os idosos iriam fazer parte do plano, não adiantando mais pormenores. Mas justificou que desta forma estariam a cumprir o que foi solicitado pela Comissão Europeia. E é neste sentido que o "Ministério da Saúde e as suas estruturas estão a trabalhar na atualização do plano de vacinação, prevendo-se que no decurso desta semana esta atualização seja efetuada, de forma a termos este novo grupo [pessoas com mais de 80 anos] que acresce aos que já estavam definidos", afirmou Marta Temido.
Uma declaração que Constantino Sakellarides classifica como confusa, porque "diz que mantém o plano, a seguir vão ser vacinadas as pessoas com mais de 50 anos com patologias e os titulares de órgãos políticos, mas que quem tem mais de 80 também vai ser e todos até ao final de março. Como é que vão fazer isso? É indispensável que tal fique escrito e um novo plano, que considere a idade como fator predominante como acontece em todos os outros países europeus, não basta simplesmente acrescentar que agora vão cumprir o que diz a Comissão Europeia, que não é outra coisa senão o que já está a ser feito pelos restantes Estados-membros. Um plano novo que esteja fundamentado cientificamente, já que o anterior não tinha qualquer fundamentação científica".
Miguel Guimarães, bastonário dos médicos, manifestou-se satisfeito com a decisão, dizendo que, finalmente, ouviram a Ordem e outros profissionais que, desde o início, vinham a contestar a decisão, relembrando que o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos defendeu a idade como um critério fundamental porque este já tinha sido comprovado pela ciência como tal. Aliás, a Ordem dos Médicos anunciou mesmo estar na disposição de pedir um parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, casos os critérios não viessem a ser alterados.
"A Ordem usou como fator prioritário a idade, acima dos 75 ou dos 80 anos e as pessoas com doenças crónicas, mas porque havia evidência científica que eram estes os mais desprotegidos em relação à doença", reforçando que "os nossos critérios são os científicos, aqueles que os políticos teimam em deixar para trás e que se estão dar mal com isso".
Para o bastonário, a decisão anunciada pela ministra "é uma boa decisão", mas defende também que tem de "haver um documento escrito, que vacinas vão ser disponibilizadas e como vão fazer"., especificando: "Os maiores de 80 anos são prioritários. São eles que estão a morrer. De acordo com os números divulgados, só 30% das mortes nos idosos dizem respeito a residentes em lares, as outras mortes ocorreram fora deste meio. Portanto, há que proteger esta população".
Miguel Guimarães insiste ainda que a task force ou a Comissão do Plano de Vacinação deveriam dar indicação do que está a ser feito, até porque, "está a dizer-se que os profissionais de saúde do SNS estão vacinados, quando só uma parte é que está, está a dizer-se que os residentes em lares estão vacinados e só está uma parte é que está. Isto não pode ser".
De acordo com o que Marta Temido, esta semana são esperadas mais 100 mil doses da vacina. O plano prevê a vacinação de 950 mil pessoas até ao final de março, mas o bastonário diz que esta semana já enviou à ministra da Saúde "uma lista com os nomes de mais de 6500 médicos, uns que trabalham nos hospitais do Estado, mas que não têm vínculo com o SNS, outros que trabalham no setor privado, e que destes nem meia centena foi vacinada, e os outros não sabem sequer quando o vão ser".
Para Miguel Guimarães, a vacinação nos profissionais de saúde está a tornar-se uma questão fraturante, porque se estão a vacinar os profissionais que trabalham com doentes covid e os outros? Os que tratam os doentes não covid? Um médico é vacinado não para não infetar um doente mas para não adoecer porque o nosso principal problema é a falta de recursos humanos, é preciso acabar com o estigma dos profissionais que são do setor público dos que são privados e dos que trabalham para os hospitais do estado, mas em situação precária. A situação é preocupante."