Mónica Pires. “Ir ao ginecologista tem de ser como ir ao dentista, uma vez por ano”
O cancro do ovário é dos que tem maior taxa de mortalidade para as mulheres. Porquê? É um tumor silencioso, as mulheres ignoram os sinais , ou os tratamentos não são totalmente eficazes?
É uma questão que tem uma resposta multifatorial e todas as que disse estão envolvidas. Ou seja, por um lado, temos a natureza do tumor e a sua evolução, que não dá sintomas precoces e quando dá são muito inespecíficos - mal-estar abdominal, perda de apetite e de peso, embora a barriga fique maior - e a mulher acaba por não os valorizar, deixando-os arrastar. Por outro lado, é um tumor que nasce num ovário, um órgão intra-abdominal, o único que verdadeiramente está dentro da cavidade peritoneal, portanto, quando aparece rapidamente metastiza e quando é detetado já está num estadio avançado, nível III ou IV. Depois, temos outra situação: a mulher que tem sintomas e que tem dificuldade no acesso aos cuidados médicos, para ser observada e referenciada. E tudo isto atrasa o diagnóstico. Quanto aos tratamentos, têm evoluído. Há novos medicamentos que têm prolongado a vida e a sobrevida das mulheres, assim como têm melhorado a sua qualidade de vida. E isso é muito importante. Mas ainda não chegámos ao ponto que queremos: que isto seja possível na maioria dos casos.
Quando se refere à dificuldade no acesso aos cuidados o que quer dizer, concretamente?
Refiro-me ao acesso ao médico de família, que é o que está na primeira linha para a população. O acesso deveria ser realmente rápido para que uma doente destas pudesse ser observada e referenciada. O que acontece muitas vezes é que estas mulheres, com os sintomas que têm, acabam por ir a um atendimento num Serviço de Urgência em que o tumor pode ou não ser detetado, porque uma Urgência não serve para diagnosticar um cancro, mas sim para resolver um problema urgente. É verdade que para uma mulher, com os sintomas que indiquei, o seu problema é urgente, mas este necessita de um estudo atempado e com a consequente referenciação. Portanto, é preciso, sim, que haja uma facilitação no acesso aos Cuidados de Saúde Primários para um diagnóstico mais precoce do cancro do ovário e, depois, que o seu reencaminhamento seja feito para um centro oncológico com tempos de resposta adequados, porque também não faz sentido haver centros de referenciação com tempos de resposta prolongados.
Hoje, conseguem-se esses tempos de resposta adequados?
Bem, só posso falar pelo que acontece no meu centro, que é o IPO do Porto e na área da Ginecologia, onde temos cumprido os tempos previstos, mas não sei se espelha a realidade nacional. Cumprir estes tempos exige uma grande abertura de lista doentes para se poder realizar a primeira consulta numa semana. Quanto aos tempos cirúrgicos é claro que todos gostaríamos de ter a cirurgia marcada para o dia seguinte, mas não é possível, embora estejamos a cumprir os tempos adequados com algum esforço de todos os profissionais.
Portugal tem um rastreio nacional para três tipos de cancro - mama, colo do útero e cólon. Considera que este também seria necessário para o cancro do ovário, já que é um dos mais letais para a mulher?
O cancro do ovário é o mais letal para a mulher, mas não é tão frequente como o da mama ou do cólon. Depois, para haver um rastreio para o cancro do ovário era preciso que este fosse rastreável. Ou seja, que fosse demonstrado que um rastreio sistemático traria de facto vantagens para a mulher. E, como já disse, o cancro do ovário não é de fácil diagnóstico pelos sintomas que desenvolve e, até à data, ainda não se conseguiu estabelecer métodos auxiliares de diagnóstico, por imagem, colheita de sangue ou por urina, que detetem esta lesão precocemente. Estão a ser feitos vários estudos nesse sentido. Por exemplo, no Reino Unido foi feito há pouco tempo um estudo que pretendia avaliar a população em geral através da conjugação da ecografia e biomarcadores para se perceber o impacto que teria, mas até à data ainda não se descobriu o rastreio ideal para detetar este cancro precocemente.
Também é dos tumores que tem uma taxa de hereditariedade elevada, superior ao da mama...
É verdade. No cancro da mama há cerca de 10% que terão uma origem hereditária, em que um gene defeituoso facilita o aparecimento deste cancro. No ovário esta percentagem é de 20% a 25%. O facto de ter uma tia, uma avó ou uma prima direita que teve este cancro pode significar que aquela mulher pode estar perante uma síndrome familiar. E para este grupo mais restritivo de população, que tem um risco muito superior para o cancro do ovário, poderia fazer sentido um rastreio para referenciar estas mulheres e serem tomadas medidas que evitassem o seu aparecimento.
A que sinais devem as mulheres estar atentas?
Para começar é muito importante que tenham informação sobre a história familiar, porque esta pode ter impacto no seu futuro e nos dos seus descendentes. O que se passa hoje é que ainda temos muita dificuldade em recolher a história clínica de algumas mulheres, porque não sabem com que tipo de cancro morreram a mãe ou a avó, por exemplo, e se soubessem poderia ajudar a definir os riscos que correm. A literacia em saúde também é importante para saberem identificar o que estão a sentir - é importante uma mulher saber que pode ser uma situação séria para a sua saúde ter algum desconforto abdominal ao mesmo tempo que tem volume abdominal, perda de apetite ou que tem um papo no fundo da barriga. Isso pode levá-las a a procurar um médico mais cedo. Costumo dizer que ir ao ginecologista tem de ser como ir ao dentista uma vez por ano, deve fazer parte da rotina da mulher, precisamente para se fazer a despistagem deste cancro e de outros.
Mas há outros fatores de risco em que se pode atuar?
Há. Por exemplo, na educação da população para o tabagismo, já que o cancro do ovário é um dos que está associado ao tabaco, ou para o controlo do peso, porque a obesidade também é um fator de risco. Ou seja, há fatores que são incontroláveis no aparecimento deste cancro, mas há outros que são e que diminuem os riscos.
Qual é o perfil das mulheres mais atingidas?
Não há só um tipo histológico do cancro do ovário, há vários e são muito diferentes entre eles. Há uns muito raros que são da linha germinativa e que aparecem em mulheres mais jovens, onde a suspeita de uma situação hereditária na sua origem é maior também. Mas os mais frequentes são da linha epitelial, que aparecem em mulheres com 60 anos ou mais.
Em termos de incidência, a realidade portuguesa é muito diferente da dos restantes países da UE?
Até à data não foi demonstrado que Portugal tenha uma incidência maior do que outros países similares, mas admitimos que os números possam não espelhar exatamente a realidade, porque como é um tipo de cancro que muitas vezes é detetado em estadio muito avançado, envolvendo outros órgãos do abdómen, este cancro pode ser registado como um tumor, por exemplo, do peritoneu e não como do ovário.
De acordo com a Globocan, Observatório Global do Cancro, entre 2022 e 2045 estima-se que a incidência do cancro do ovário aumente 9,5% e a taxa de mortalidade 19,3%. Não é muito?
É, mas os fatores de risco (tabagismo, obesidade, poluição) também tendem a aumentar. O cancro do ovário é um tumor hormonodependente e se a exposição, para além do normal ou do razoável, a alguns destes fatores aumenta é normal que a taxa de incidência também aumente. Como disse, não é um cancro que habitualmente atinja a mulher jovem, mas sim a que está acima dos 60 anos. Se temos uma população cada vez mais envelhecida é normal que os cancros apareçam e se tornem prevalentes.
É possível inverter este cenário?
É. Se tivermos um diagnóstico precoce e se tivermos a identificação das mulheres com maior risco devido à sua história familiar e medidas profiláticas para prevenir o aparecimento do tumor. Para a população em geral, que tem menor risco, será evitar o tabagismo, a obesidade, a terapia hormonal de substituição não-controlada e sem indicação médica e manter hábitos de vida saudáveis. Por outro lado, pode optar-se por algumas medidas protetoras, como, por exemplo, o uso da pílula contracetiva que sabemos estar associado à diminuição do risco de cancro do ovário, assim como a amamentação e o número de filhos, porque com a pílula, com a amamentação e com as gravidezes não há ovulação e sabemos que estes fatores são protetores do cancro do ovário.
Que mensagem deixaria às mulheres neste dia mundial?
O cancro do ovário tem uma letalidade enorme e é importante que a mulher se preocupe com a sua saúde, que valorize alguns sintomas persistentes durante mais de 15 dias ou um mês e que consulte ou o seu médico de família ou o seu ginecologista.
Números
75% dos casos de cancro do ovário são diagnosticados em estádio muito avançado (III e IV). Por isso, o alerta do dia de hoje vai para a aposta num diagnóstico precoce.
25% é a taxa de hereditariedade do cancro do ovário, é dos tumores das mulheres com a taxa mais elevada nesta área, correspondendo a cerca de 30% das neoplasias malignas ginecológicas.