Machismo tóxico: “A escola é extremamente ignorante sobre isto”
“Às vezes estamos a passar na escola e ouvimos rapazes a dizer ‘grande rabo’, que nos deixam desconfortáveis. Não é uma vez ao dia, são muitas. Se for alguém que sabemos quem é, costumamos ignorar, para não dar importância. E às vezes na entrada da escola há rapazes que se põem ali estrategicamente, onde há menos pessoas, para tocarem nas raparigas quando elas vão a passar. Já vi acontecer com amigas. Se falarmos sobre isso com as funcionárias elas dizem ‘é normal’, ‘ignora isso’, ‘não há nada a fazer’. Acho que é estar a normalizar a situação, deixam passar. Devia haver consciencialização da gravidade disso, de que o que eles fazem não é correto. Por que é que eles o fazem? Não sei, nunca perguntei. Mas acho que se calhar é porque podem.”
O discurso, seguro e bem explicado, é de Clara, 13 anos, aluna de uma escola pública no centro de Lisboa. Como a generalidade -- todas? -- das raparigas da sua idade, uma idade em que a lei a classifica ainda como criança e na qual qualquer abordagem sexualizada por parte de adultos é enquadrável no crime de abuso sexual de criança (artigo 171º do Código Penal, pena até três anos de prisão), Clara habituou-se, conta ao DN, a ser assediada na rua por “pessoas [homens] geralmente mais velhas”. A ponto de ter aprendido a “andar sem olhar para ninguém”. Porque, admite, tem medo. “E sinto que é uma injustiça, que não devia ter de ter medo”.
Um medo do qual não se livra nem quando entra na escola, e que é partilhado por várias outras adolescentes ouvidas pelo DN.
Como Rita, de 18 anos, também ela lisboeta. “Quando era criança, no quarto ano, na escola primária, fui alvo de comentários, da parte dos rapazes, sobre o meu corpo. Foi algo que me magoou bastante. Nunca falei disso com os meus pais porque havia muita vergonha envolvida. E mais tarde ouvia comentários que sexualizavam muito as raparigas, os rapazes usavam sons e códigos da pornografia e deixavam-nos muito desconfortáveis. Quando eles começam a ter acesso a esses conteúdos nota-se uma alteração, começam a usar um tipo de vocabulário muito agressivo para as mulheres. Há uma falta de noção total da parte deles sobre o quanto nos afeta.”
"Houve alturas em que nem queria ir para a escola só de pensar nessas bocas. Discutir não valia de nada, quando discutíamos eles riam. Ganhámos o hábito de ficar à porta da sala de aula nos intervalos, de não circular na escola para evitar passar por isso."
Bárbara, 18 anos, Ponte de Sor
"Uma vez um tentou apalpar-me o rabo, virei-me e apanhei-o. Ele era baixinho, consegui mandá-lo ao chão. Ainda me ocorreu fazer queixa, mas acho que seria encarado como uma coisa normal. Mas não é normal.”
Teresa, 16 anos, Amadora
Bárbara, 18 anos, habitante de Ponte de Sor (Alentejo), passou pelo mesmo: “Havia no 8º ano um grupinho de rapazes que se juntavam e mandavam bocas tipo ‘és toda boa, comia-te toda’. Sobre uma amiga disseram que tinha o maior rabo de Ponte de Sor. Era muito constrangedor e tínhamos medo, porque eles estavam em grupo. Chegava a um momento em que não aguentávamos mais. Houve alturas em que nem queria ir para a escola só de pensar nessas bocas. Discutir não valia de nada, quando discutíamos eles riam. Ganhámos o hábito de ficar à porta da sala de aula nos intervalos, de não circular na escola para evitar passar por isso.”
E Teresa, 16 anos, aluna de uma escola da Amadora: “Há bastante bocas sexualizadas dos rapazes às raparigas -- entre o 5º e o 9º anos era uma coisa constante. Uma vez que foi comigo, eram rapazes da minha turma a falarem das minhas mamas. E também tiravam fotos, por exemplo ao rabo das raparigas. Havia raparigas que se riam, não sei se por constrangimento ou por não saberem lidar com a situação. Eu não costumava calar-me, dava troco. Uma vez um tentou apalpar-me o rabo, virei-me e apanhei-o. Ele era baixinho, consegui mandá-lo ao chão. Ainda me ocorreu fazer queixa, mas acho que seria encarado como uma coisa normal. Mas não é normal.”
Essa normalização, que na atualidade, comenta, adquiriu uma tonalidade propagandística — “Com vídeos absurdos nas redes sociais, influencers a dizer barbaridades como um que disse que uma rapariga pediu para ser violada” —, também parte das vítimas, admite: “As miúdas muitas vezes desculpabilizam. Talvez porque são inseguras, precisam da aprovação do exterior e então permitem coisas que não deviam permitir.”
Ainda assim, crê que a grande mudança não é a da existência de mais violência sobre as raparigas ou de uma maior normalização dessa violência. “O que se passa agora em termos de violência já se passava antes. Acho é que as mulheres têm mais noção, reagem mais. Ainda têm pouca voz mas já têm mais voz.”
“São coisas que vêm do passado, de serem machistas”
A Mary (é este o nome que escolheu para o artigo), de 14 anos, aluna numa escola pública em Braga, não aconteceu, até agora, nada de semelhante aos relatos anteriores. Aliás, conta, “desde pequena ando mais com rapazes, atualmente o meu grupo é mais rapazes, porque gosto muito de jogar Playstation, jogos de luta, e tratam-me com o máximo respeito”.
Tem porém uma experiência dolorosa para partilhar. “Havia um rapaz que gostava de mim e eu dele, e um dia fomos para minha casa. E começámos a beijar-nos, normal, gostávamos um do outro, não é? De repente ele começou a tocar-me de uma forma que eu não queria. Não conseguia dizer-lhe para parar, fiquei bloqueada. Depois lá consegui reagir e dizer que os meus pais estavam a chegar, para ele se ir embora. Só umas semanas depois falei com ele para lhe dizer que não tinha gostado. Pediu desculpa, mas nunca mais tivemos nada. E depois vim a perceber que ele tinha feito aquilo com outras raparigas, que era uma espécie de jogo que tinha com os amigos, Verdade ou Consequência. E a consequência era ele ter de tocar numa determinada miúda.” Faz silêncio. “Os amigos dele já viam pornografia e mandavam-lhe vídeos.”
Felizmente, Mary tem uma relação com os pais que permitiu falar do assunto com eles e encará-lo como aquilo que é, um problema do rapaz e não dela: “Não diria que foi assédio. Assédio é quando um homem toca numa mulher à força. Foi uma falta de respeito. Acho que são coisas que vêm do passado, de serem machistas. Põem-se a ver sites pornográficos e veem as mulheres como objetos, falam das mulheres como objetos. ‘Ah aquela miúda tem o peito grande e vou tê-la.’ Deviam falar com um psicólogo e perceber que isso é errado e mudar de caminho.”
Essa objectificação, porém, parece ter-se tornado banal entre adolescentes: “Uma colega da minha turma mandou uma foto de uma parte íntima dela ao rapaz com quem anda há três semanas. Ele quando chegou à escola foi contar ao melhor amigo e ela ficou feliz por saber”. Mary tem perplexidade na voz: “Ela não estava preocupada, nem triste, estava a rir. Não percebo. Tem 13 anos.”
"Acho que são coisas que vêm do passado, de serem machistas. Põem-se a ver sites pornográficos e veem as mulheres como objetos, falam das mulheres como objetos. ‘Ah aquela miúda tem o peito grande e vou tê-la.’ Deviam falar com um psicólogo e perceber que isso é errado e mudar de caminho.”
Mary, 14 anos, Braga
“A escola é muito permissiva -- mais rapidamente mandam alguém três dias para casa por partir um vidro ao jogar à bola que por ser ofensivo com as miúdas. ”
Alice, educadora social
E na escola, falam dessas coisas? “Acho que esses assuntos vão ser só no terceiro período [Mary anda no 8º ano]. Já tentaram começar o assunto do assédio mas a minha turma começa a rir. Normalmente os rapazes é que se começam a rir.” Como achas que se combate isso? “Não sei. Os rapazes com quem me dou não têm essa mentalidade.”
Também a estudar numa escola pública em Braga, Laura, 16 anos, situa o início dos “comentários de pura objectificação das raparigas” precisamente a partir do 8º ano. “Acontece mais a partir dos 14. Fazem comentários mesmo à frente das raparigas sobre se têm peito ou não, se são gordas ou magras. Apalpões nunca vi, só comentários. Acho que não se faz queixa porque a maioria das miúdas não têm confiança com os pais e fazer queixinhas é a coisa mais malvista -- se alguém fizer leva com um complot da turma. E a escola é extremamente ignorante sobre isto. São coisas vistas como mínimas pela escola. Aliás em muitos casos de bullying falar com a escola é pior.”
Como achas que se resolve? Laura, que fala do assédio “de rua” como, malgrado a criminalização em vigor desde 2015, algo por que todas as raparigas continuam a passar -- “Não vem de rapazes da nossa idade, mas de pessoas muito mais velhas, há muito assédio na rua, todas as minhas amigas já foram assediadas, e até eu, que me apresento de forma mais masculina, também já fui, começa a suceder a partir dos 11, 12 anos” -- , acha que no lugar onde tudo começa, a escola, o assédio “não se resolve”: “Depois de acontecer, as raparigas não podem fazer muito a não ser engolir. Tem de se agir antes, tem de se dar educação aos rapazes desde o início, para não acontecer”.
“Ninguém nas escolas tem formação para as questões da violência”
Certo é que nenhuma das entrevistadas pelo DN referiu ter tido algum tipo de conversa propiciada pela escola sobre violência sexual. “Não me lembro de alguma vez nas aulas sobre educação sexual se abordar isso”, diz Teresa. Quanto a conversas entre pares sobre o assunto, só as teve com raparigas. “Com os rapazes nunca.”
Uma mulher que trabalha junto das escolas “na perspetiva dos direitos humanos” e se define como “educadora social”, falando com o DN na condição de não ser identificada, confirma a impressão de Teresa: “As escolas têm de estar alertadas e sensibilizadas sobre o que é violência, todas as pessoas que trabalham com crianças e jovens têm de ter formação nesta área. E tem haver um mecanismo de reporte quer para os profissionais quer para as crianças e jovens. É muito importante que os alunos possam denunciar e até manter o anonimato na denúncia."
Mas, lamenta, "isso não existe. E ninguém nas escolas tem formação para isso.”
A necessidade de mecanismos de reporte eficazes é relevada na Recomendação (UE) 2024/1238 da Comissão Europeia, de 23 de abril de 2024, “sobre o desenvolvimento e o reforço de sistemas integrados de proteção das crianças no interesse superior da criança”, e que enumera, entre as formas de violência em relação às quais deve ser promovida “uma cultura de tolerância zero”, a violência baseada no género: “Os Estados-Membros devem criar mecanismos de apresentação de queixas e de denúncia seguros, confidenciais, adaptados às crianças e bem divulgados, que respeitem os direitos das crianças, nomeadamente o direito à privacidade, incluindo através de linhas de apoio, números de emergência e serviços em linha disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Esses mecanismos devem ser acessíveis, e utilizar uma linguagem adequada à idade”.
A mesma recomendação frisa que “a promoção da igualdade e da inclusão nas nossas sociedades é um instrumento importante para a prevenção da violência. As crianças com características relacionadas com causas de discriminação são mais suscetíveis de serem vítimas de intimidação. (…) A comunicação conjunta ‘Não ao ódio’ visa intensificar os esforços da UE para combater o ódio sob todas as suas formas.”
Aspetos não abordados na Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens 2025-2035, aprovada pelo Governo Montenegro a 28 de fevereiro, a qual refere a citada recomendação europeia, mas que no que respeita à “cultura de não violência” fala apenas genericamente de “prevenir a delinquência” e “promover a formação sobre violência para agentes educativos”, sem qualquer referência a promoção da igualdade, a ódio e fatores de discriminação, ou a mecanismos de reporte/denúncia específicos para crianças e jovens.
“Há uma naturalização: ‘aquilo não significa nada, são coisas de rapazes’”
Não admira pois que as violências sexuais que a educadora social Alice (chamemos-lhe assim) constata existirem nas escolas portuguesas passem por baixo do radar, como se não tivessem importância, como se não fossem violência. Como se fossem “normais”: “A escola é muito permissiva -- mais rapidamente mandam alguém três dias para casa por partir um vidro ao jogar à bola que por ser ofensivo com as miúdas. Há uma naturalização: ‘não ligues que ele é parvo' ‘aquilo não significa nada, é coisas de rapazes’”.".
Essas "coisas de rapazes", prossegue, "começam muito cedo, quando eles têm nove, 10, 11, 12 anos. Rodeiam-nas em grupo, empurram-nas, empurram os outros para cima delas para as tocarem. Há rapazes que as tocam no rabo, na vulva, na mama. Há miúdas que já nem vão para a escola de saia ou vestido por causa disso. Outra coisa que sucede é entrarem todos para dentro da sala e começarem a dar pontuação às miúdas à medida que elas entram -- é muito humilhante para elas.”
Existe também, informa, uma obsessão com a menstruação: “Querem saber se elas menstruam. Já constatei que em várias escolas isso existe desde o quarto ano. Perseguem-nas, viram as mochilas para ver se têm pensos, tocam-nas. Arranjam estratégias de observação, nas casas de banho. Porquê? Porque é um tabu e há a ideia de que passam a poder ter sexo -- não sabem bem o que é e querem saber, querem ver.”
Quinquagenária, Alice suspira. “Achava que as coisas, tantos anos passados sobre a minha infância e adolescência, estariam melhores. Mas não estão. Aliás noto ultimamente um retrocesso muito grande, porque se anda a tentar impedir as intervenções na disciplina de Cidadania. As escolas têm medo, não querem falar sobre isto, têm medo dos pais, e não se trabalham estas questões. Os livros infantis dos meus sobrinhos que têm 24 ou 25 anos são muito mais avançados do que os de agora. Era preciso assegurar que as disciplinas de Cidadania implementam o plano de igualdade e de prevenção da violência.”
Em países nos quais esses programas existem na escola, a preocupação é com o facto de não chegarem a todos. No Reino Unido, um inquérito comissionado pelo Youth Endowement Fund sobre como raparigas e rapazes experienciam violência, efetuado entre maio e julho de 2024 e com mais de 10 mil inquiridos do 13 aos 17 anos em Inglaterra e Gales, concluiu que os temas do consentimento e do assédio sexual só tinham chegado a cerca de metade dos jovens dessa faixa etária. E que "é urgente que haja educação mais dirigida e profunda sobre a violência sexual", de modo a proteger os adolescentes.
Até porque outros conteúdos disponíveis podem estar a "educá-los" de forma contrária: um terço dos inquiridos admitiram ter sido expostos a conteúdo, nas redes sociais, promotor de violência contra mulheres e raparigas. 33% dos rapazes entre os 13 e os 15 anos disseram ter visto esse tipo de conteúdos -- uma tendência que desce para 29% na faixa etária 16/17. As percentagens são ainda mais expressivas nas raparigas, com 38% das mais velhas e 30% das mais novas a reportar ter visto esse tipo de conteúdo.
Como se combate essa violência? Para além de defenderem "palestras" na escola, as adolescentes ouvidas pelo DN consideram que esse combate/prevenção deve passar por fazer saber aos rapazes o mal que estão a fazer -- e que as suas condutas são punidas pela lei.
É o que acha Clara: “Deviam fazer uma sessão de consciencialização. E talvez punir. Acho que eles [os rapazes da escola] não têm noção nenhuma do que se passa na cabeça de uma rapariga depois disso.” Não saberão sequer, crê, que aquilo que fazem - tocar nas raparigas contra a vontade delas, fazer considerações sobre o seu corpo -- está previsto na lei como criminalizável. “Era importante que a escola os consciencializasse e que eles deixassem de fazer não só porque é crime mas também por não ser correto.”
Também Bárbara, afirmando-se “teimosa”, não quer perder a esperança de que seja possível derrotar o machismo que a faz “sentir horrível, sem liberdade, como se não tivesse livre arbítrio”: “Talvez simulando situações, fazendo-os sentir o que nós sentimos, e como seria se fosse com eles. Se calhar se conseguissem perceber o que sentimos mudassem o pensamento. E tinha de se começar cedo, desde o 3º ciclo, se calhar. Porque eles vêm já a crescer com este tipo de aprendizagem. Dir-lhes-ia para imaginarem que começam o dia deles muito bem, estão sozinhos -- porque isto nos acontece mais quando estamos sozinhas -- e acontecer-lhes o assédio.”