Liberdade religiosa não é uma realidade para todos os que moram em Portugal
Ibrahim queixa-se de perseguição e de ser despedido por ter pedido à Teleperformance, onde trabalhava, a mudança da hora de almoço à sexta-feira para ir à mesquita, o que a empresa nega. A lei concede-lhe esse direito, mas impõem condições. O Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a interpretação restritiva das mesmas.
Ibrahim Aybek trocou a Turquia por Portugal há 14 anos e é cidadão português. Tem formação superior, é dele a tradução turca de Os Lusíadas, mas não tem tido uma vida fácil. O último emprego foi no call center da Teleperformance, mas foi dispensado quando terminava o mês experimental. É muçulmano e diz que o discriminaram a partir do momento em que exigiu a troca do horário de almoço à sexta-feira para ir à mesquita. A multinacional nega, sem explicar as razões da rescisão, alegando "privacidade". O caso de Ibrahim levanta questões na aplicação da Lei da Liberdade Religiosa, que concede aos cidadãos o direito a praticar a sua fé, o que nem sempre é compreendido pela entidade patronal.
Ibrahim tem 35 anos, licenciou-se em Arquitetura e frequentou o mestrado em História de Arte Portuguesa na Universidade do Porto.
"Candidatei-me para trabalhar na Teleperformance e, quando estavam a concluir o processo de recrutamento, disse que era muçulmano e que ia à mesquita à sexta-feira à oração principal. Pedi para que a hora do almoço nesse dia passasse para as 13.30-14.30, meia hora depois do habitual. Quando estavam para me recrutar, disseram que tinham de questionar o cliente [mercado turco de uma rede social]. Não aceitaram, responderam que era proibido ir à mesquita na hora de trabalho", explica Ibrahim Aybek.
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Argumentou que também era português, que conhecia a Lei da Liberdade Religiosa (n.º 16/2001), nomeadamente o artigo 10.º, que lhe dá o direito "de aderir, celebrar e comemorar" uma religião. E o artigo 14.º especifica que a concretização desse direito significa "suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam".
A Teleperformance acabou por recrutá-lo e aceitar o pedido de alteração do horário. Pediram-lhe que entregasse uma justificação todas as sextas-feiras que fosse à Mesquita Central de Lisboa. Esta entidade passou-lhe uma declaração atestando que era muçulmano praticante. Começou a trabalhar e alega que foi tratado de forma desigual em relação aos outros funcionários que entraram ao mesmo dia - 9 de maio.
"Não me deram o cartão de entrada para o edifício, tive de usar sempre o de estagiário, quando perguntava a razão diziam que ainda não tinha sido pedido. Puseram-me num piso onde não estava mais ninguém. Quando pedia ajuda por ter problemas técnicos, demoravam e nem sempre os resolviam. Estava sempre a receber notificações. Alteravam os turnos em cima da hora".

Ibrahim Aybek traduziu Os Lusíadas para turco. Veio há 14 anos e tem nacionalidade portuguesa.
© Diana Quintela / Global Imagens
Foi despedido três dias antes do fim do mês experimental, curiosamente no dia de aniversário. "Fizeram tudo para eu desistir, não o conseguiram e despediram-me. Disseram-me que não ia ser integrado na equipa turca por não ter tido sucesso na minha prestação, não explicaram o que fiz mal. Estamos sempre a ser avaliados e vi pessoas com avaliações inferiores à minha e que ficaram. Aliás, disseram-me que é raro ser-se despedido durante o período experimental". Acusações de Ibrahim que foram corroboradas ao DN por colegas turcos, muçulmanos, mas que tiveram medo de ver o nome publicado.
Ibrahim foi despedido três dias antes do fim do mês experimental, curiosamente no dia de aniversário. "Fizeram tudo para eu desistir, não o conseguiram e despediram-me."
A Teleperformance (TP) confirmou ao DN o despedimento, sem especificar as razões: "Após avaliações regulares de desempenho, e durante o período experimental, o contrato de Ibrahim Aybek foi rescindido. Por respeito à privacidade de Ibrahim, a TP não divulgará as circunstâncias que levaram à rescisão. Contudo, podemos confirmar que nenhuma das pessoas com quem trabalhamos é contratada ou dispensada, com base nas preferências religiosas". Tanto quanto o DN soube, o caso não está fechado.
Quisemos saber quantas pessoas na empresa recorreram à Lei da Liberdade Religiosa para exercer esse direito, muçulmanos e de outras religiões, como os adventistas e judeus, que descansam desde o pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado. A empresa respondeu que "não pede às pessoas com quem trabalha que revelem as suas crenças religiosas, nem mantém registos ou estatísticas sobre práticas religiosas".
Reforçámos que o objetivo era saber quantos funcionários tinham usado a lei da Liberdade Religiosa, mas não deram mais explicações. Acrescentaram que no edifício onde Ibrahim trabalhou, na sede em Entrecampos, há uma sala para a oração no piso -1. Não vem sinalizado na descrição do edifício, nem é do conhecimento dos muçulmanos com quem falámos.
Segundo Ibrahim, trabalhavam no seu projeto 60 turcos e a empresa terá 500 destes nacionais, 95 % dos quais muçulmanos. Não serão todos praticantes, mas há quem tenha dito ao DN que desconhecia a lei e/ou que tem receio de represálias se fizer esse pedido. Há anos, um funcionário terá sido discriminado após cumprir o mês do Ramadão e acabou por retirar o testemunho com medo de ser despedido.
Trabalhadores não reclamam
O Sindicato dos Trabalhadores de Call Centers não tem queixas devido à prática religiosa. Mas José Abrantes, também ele funcionário da Teleperformance e dirigente da estrutura, reconhece algumas das práticas descritas por Ibrahim. "Há situações em que arranjam maneira de isolar as pessoas, por exemplo, um membro nosso que, pouco tempo depois de se tornar delegado sindical, foi separado dos colegas. Acho é que, neste caso, as pessoas nem se atrevem a pedir dispensa para praticar a sua religião". Confirma que é pouco habitual uma pessoa não ficar após o período experimental.
O advogado de Direito do Trabalho Garcia Pereira tem tido poucas denúncias relacionadas com a liberdade religiosa. Quanto à empresa em questão, foram-lhe denunciadas situações que põem em causa os direitos dos trabalhadores. "É conhecida por atropelos à lei: horários laborais, coação, desrespeito pelos interesses dos trabalhadores, chefias agressivas, tentativas de controlo das idas à casa de banho. São exemplos de como se utiliza a contratação precária, completamente fora do quadro legal, para ter as pessoas na mão e para que não possam exercer os seus direitos".
David Munir, da Mesquita Central de Lisboa, explica que passam declarações a atestar a prática religiosa dos muçulmanos, mas não estão a preencher uma justificação sempre que a pessoa vai à mesquita. Não tem conhecimento de muitos casos em que o direito à participação religiosa tenha sido negado. Muitas vezes, trata-se de um ajuste do horário, como acontece no setor bancário. Recorda um caso deste ano, de uma pessoa que foi despedida após ter respeitado o Ramadão, sem deixar de cumprir as funções laborais.
A situação chegou à Comissão da Liberdade Religiosa, presidida por Vera Jardim. "A única queixa que tivemos é recente. Uma senhora foi admitida e, quando foi o Ramadão, descobriram que era muçulmana, despediram-na, o que é ilegal. Não é permitido perguntar a alguém qual é a sua religião e, muito menos, pôr termo a um contrato de trabalho com base na religião", explica Vera Jardim
A Comissão quis dar seguimento ao caso, que também chegou aos responsáveis da comunidade islâmica, mas a trabalhadora acabou por negociar um acordo com a entidade patronal. Sublinha o presidente da estrutura, que não têm poderes de decisão, mas que podem denunciar a situação às entidades competentes: Ministério Público, Autoridade para as Condições do Trabalho ou ao Provedor de Justiça (estruturas do Estado).
Constituição apoia adventistas
A Lei da Liberdade Religiosa impõe condições para que se possa usufruir do direito à prática de um credo. Tem de haver "compensação integral" do período de trabalho de que foi dispensado, o que não levanta dúvidas. Já a alínea a) do artigo 14.º tem servido para impossibilitar o exercício desse direito. Condiciona-o às empresa que têm "flexibilidade de horário". Mas há jurisprudência nesta matéria. Vera Jardim recorda os acórdãos do Tribunal Constitucional (TC) de 2014 que deram razão a duas adventistas, a quem foi recusada a dispensa de serviço desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado.
As adventistas trabalhavam por turnos e os tribunais de primeira instância consideraram que não se integrava no "horário flexível", o que foi confirmado pelas instâncias superiores. Garcia Pereira lembra-se de ter sido consultado pelo TC e que foi contrário a essa interpretação, com os conselheiros a concordarem com o seu parecer.
Um dos processos diz respeito a uma procuradora do Ministério Público (MP). Avançou para o Tribunal Administrativo contra o Conselho Superior do MP por não a terem dispensado "da realização dos turnos de serviço urgente que coincidissem com os dias de sábado, invocando ser membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia e encontrar-se obrigada, por motivos religiosos, a guardar o sábado como dia de descanso, adoração e ministério, e abster-se de todo o trabalho secular". Não lhe deram razão, recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, que confirmou a sentença.
O outro caso é de uma mulher que foi despedida por se ter recusado a trabalhar a partir do pôr do sol de sexta-feira e o seu turno terminar muito tempo depois. Apresentou queixa no Tribunal do Trabalho de Loures, onde estava localizada a empresa, que também considerou que o trabalho por turnos não era flexibilidade. O mesmo entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa.
Recorreram para o TC, argumentando que as decisões eram inconstitucionais "por violação da liberdade de religião e da liberdade de escolha de profissão (artigos 41.º e 47.º, n.º 1, da Constituição). Expostos os argumentos de todas as partes, a decisão saiu em 2014, acórdãos 544 (Loures) e 545 (MP), dando razão às reclamantes.
O TC considerou que interpretação da norma sobre horário flexível "em termos de tal modo restritivos", conduzindo "forçosamente a uma aplicação meramente residual e sem qualquer efeito prático minimamente relevante, levaria a concluir pela inconstitucionalidade da norma, no ponto em que não salvaguardaria em termos razoáveis o próprio princípio da liberdade religiosa". Entendeu que o legislador, ao referir-se ao trabalho em regime de flexibilidade de horário, "não está a reportar-se apenas às situações em que os trabalhadores possam gerir os seus tempos de trabalho, escolhendo as horas de entrada e de saída, mas também a todas aquelas em que seja possível compatibilizar o cumprimento da duração do trabalho com a dispensa para efeitos da observância dos deveres religiosos". Ou seja, o que importa é que o regime de horário de trabalho permita "a compensação dos períodos de trabalho em que tenha ocorrido a suspensão". A magistrada teve o sábado e a funcionária de Loures foi reintegrada.
A decisão foi recebida entusiasticamente pelos adventistas, mas também por muçulmanos e judeus, prevendo que a partir daí seria mais fácil a concretização do direito à liberdade religiosa. "Até 2012, 2013, anos anteriores aos acórdãos, o Departamento de Liberdade Religiosa da União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia, recebia dezenas de pedidos de apoio por ano. Desde o acórdão do TC esse número diminuiu consideravelmente, porque ficaram sanadas as dúvidas que resultavam do termo "horário flexível", explica Ezequiel Duarte, diretor do departamento. Mas não acabaram os problemas.
"Não temos queixas, no sentido jurídico, contra entidades, o que temos são esforços no sentido de sensibilizar as diversas entidades públicas e privadas, para o cumprimento da Lei da Liberdade Religiosa, mais concretamente do artigo 14.º. Ou seja, não temos necessidade de recorrer à litigância, não porque esses casos não o pudessem exigir, mas porque agora há uma maior consciência em relação ao respeito pelo cumprimento da lei".