Leonor Beleza: "A discriminação existe nos ensaios clínicos  e medicamentos"

As células têm sexo, afirmam os cientistas, logo a ciência, a investigação e a medicação têm de ter em conta o género, alerta a presidente da fundação Champalimaud e ex-ministra da Saúde. Numa entrevista exclusiva ao DN, apela às mulheres para "nunca esquecerem que todas as ambições estão ao seu alcance".

Uma conversa informal e um café com vista para o rio Tejo, no seu gabinete de trabalho na Fundação Champalimaud, a que preside, antecederam a entrevista, que decorreu posteriormente, para assinalar o dia 8 de março, abordar o papel da mulher na ciência e deixar escritas palavras de incentivo à igualdade.

De que forma a mulher se tem afirmado no mundo da ciência?
As mulheres estão a afirmar-se no mundo da ciência, como está a acontecer em muitos outros mundos. Não é muito diferente encontramos uma larga participação feminina, sobretudo na base, muitíssimas mulheres a fazer ciência, mas depois há alguma dificuldade em chegar aos lugares de topo, aos lugares de direção, isso acontece assim em Portugal, na ciência, e outros setores, como acontece em muitos outros países. No entanto, é interessante verificar que, segundo um documento europeu recente, em Portugal as mulheres na ciência podem constituir um exemplo pela larga participação e pelo facto de que, ao contrário do que acontece em outros países, não tenderem, a certa altura e em funções de responsabilidades, a abandonar a sua atividade. Em Portugal há uma maior persistência, uma maior manutenção das mulheres no mundo da ciência. O mais recente levantamento sobre a situação das mulheres, feita pela Comissão pela Cidadania e Igualdade de Género, mostra como em Portugal, em quase todos os domínios de ensino, as mulheres são preponderantes, nomeadamente na educação superior, praticamente em todos os setores, até ao doutoramento. Há sempre mais mulheres a atingir a formação superior incluindo ao nível do doutoramento, mas depois há alguma menor presença em lugares do topo importantes, para efeito da direção das instituições científicas. Essa presença das mulheres em Portugal é dominante em quase todos os domínios, exceto nalguns de tecnologias de informação e engenharia. Nalgumas destas áreas em Portugal, as mulheres ainda são minoritárias, às vezes até largamente minoritárias ao nível da formação. Portanto, ainda há setores onde a presença feminina não é tão relevante e, sobretudo, essa presença é menos visível ao nível dos órgãos de direção, seja das universidades seja dos institutos de investigação. Mas há, de um modo geral, uma comparação favorável entre o que se passa na ciência em Portugal e o que se passa na ciência dos países com que nos comparamos.

As células têm sexo, afirmam os cientistas, logo a ciência, a investigação e a medicação têm de ter em conta o género, alerta a presidente da fundação Champalimaud e ex-ministra da saúde. Numa entrevista exclusiva ao DN, apela às mulheres para "nunca esquecerem que todas as ambições estão ao seu alcance".

Falta ainda à ciência e à investigação uma visão feminina das doenças?
Normalmente quando se fala de mulheres e ciência tende-se a pensar nesse assunto nos termos que acabo de referir, isto é, a presença das mulheres enquanto cientistas. Mas a questão é bastante mais complexa e até adquire uma nova luz ou um novo interesse quando pensamos nas mulheres e nas eventuais diferenças entre mulheres e homens, agora não como agentes de investigação ou de ciência, mas como objeto da investigação e da ciência. Nas áreas sociais as pessoas há muito que compreendem a influência do género, e isso é bastante estudado e razoavelmente compreendido. Mas há outras áreas onde a presença das diferenças de sexo ou de género têm sido menos compreendidas, como na biologia ou na medicina, em que muitas vezes se estudou e se pretende tratar o ser humano indiferentemente do seu sexo, sem consciência ou sem o conhecimento das diferenças que o sexo justamente pode ocasionar. Na biologia é, na verdade, sobretudo o sexo que realça as diferenças. Algumas são bastante óbvias, são as mulheres que têm útero e quando se estuda o útero estamos a falar de saúde nas mulheres; mas depois há áreas onde as coisas são diferentes, por exemplo, o cancro da mama é normalmente uma doença nas mulheres, mas também é uma doença que existe nos homens e aí, às vezes, é do lado dos homens que as coisas saem prejudicadas, porque normalmente se pensa no cancro da mama como uma doença exclusiva das mulheres. Depois há muitíssimos domínios onde pode haver diferenças que nem sempre foram, ou são, suficientemente consideradas. Ao nível do conhecimento, da investigação, da tentativa de compreender os fenómenos e as coisas, mas depois também ao nível do tratamento e ao nível da medicina. Tem-se vindo recentemente a compreender como a presença de diferenças de sexo, de género, não é suficientemente compreendida e percebida com enormes consequências negativas, a maioria das vezes para as mulheres. Porque tradicionalmente nessas áreas, que são teoricamente comuns, estudou-se ou estuda-se com base no modelo que se considera dominante, isto é o modelo do homem, e depois não se compreende que há diferenças, ou não se percebe que há diferenças que têm de ser consideradas em termos que podem vir a revelar-se trágicos para as mulheres.

Como por exemplo?
Por exemplo, muitos dos medicamentos retirados do mercado pela FDA, nos Estados Unidos, foi porque se verificou que eram particularmente danosos para as mulheres e que isso não tinha sido suficientemente verificado e estudado quando tinham sido lançados no mercado. Há ainda a convicção errada de que as doenças de coração são mais frequentes nos homens do que nas mulheres, liga-se a ideia das doenças de coração a maior atividade e também se liga erradamente a ideia de maior atividade ao sexo masculino, quando o que acontece na verdade é que as maiores vítimas de doença de coração são as mulheres e não os homens. E até aconteceu, por exemplo, que quando se fizeram cateteres para tratar determinadas doenças cardíacas, foram feitos em termos adequados ao corpo dos homens e tiveram consequências negativas quando experimentados nos corpos de mulheres, porque não havia suficiente precisão de que era preciso estudar cuidadosamente tudo com eventuais diferenças de sexo. Isto não acontece exclusivamente na biologia e na medicina, acontece em muitos domínios. Deixe-me dar um exemplo: os cintos de segurança foram feitos nos carros para modelos masculinos, não foram feitos adequados ao corpo das mulheres. Há uma consciência das questões de sexo e de género, que é insuficiente ao nível do conhecimento, na maneira como foram pensadas e feitas.

"Só há pouco tempo se começa a exigir que as investigações sejam feitas quer em homens quer em mulheres. Até agora havia danos para a saúde feminina."

A discriminação pode começar na bancada de um laboratório, escolhendo espécies do género masculino em vez de feminino para os ensaios clínicos?
Sim, a discriminação pode existir na bancada do laboratório ou pode existir em ensaios clínicos. Na verdade acaba por se traduzir em discriminações, mas o que acontece é a falta de atenção às diferenças ou a falta da consideração da importância que as diferenças podem ter. Acontece muitas vezes, justamente em experiências científicas ou acontecia, porque agora as coisas tendem a mudar. Havia a utilização de modelos animais masculinos na convicção de que tanto fazia e considerando que o sexo não seria relevante para aquilo que se estivesse a estudar. Hoje, sabe-se perfeitamente que é errado, os cientistas dizem que as células têm sexo, e portanto têm diferenças, e essas diferenças têm de ser olhadas e consideradas esteja a estudar-se o que se quiser, em toda a biologia isto é extremamente relevante. E, portanto, tende-se hoje a considerar, mesmo na utilização de animais como modelos, que importa considerar as diferenças de sexo ou a distinção por sexos daquilo que é feito, para que a base depois do que vier a ser feito não esteja errada. E atenção, todos os medicamentos que são utilizados para uso humano foram experimentados com animais modelo e, portanto, podem ter erros resultantes dessas verificações menos certas na base, traduzir-se depois em coisas complicadas e perigosas na utilização em humanos. Por outro lado, os ensaios clínicos, já agora ensaios com humanos, nomeadamente para efeitos de medicamentos ou de quaisquer outros meios que sejam utilizados para tratar das pessoas, também nem sempre foram feitos ou pensados utilizando homens e mulheres, e distinguindo entre homens e mulheres quando esses ensaios são realizados. Agora as coisas tendem a ser diferentes, mas isto é muito recente, a consideração de que é preciso sistematicamente considerar o sexo, e às vezes o género, dependendo daquilo que estamos a falar. Essa consideração é bastante recente, só há pouco tempo é que sistematicamente se começa a exigir que as coisas sejam feitas em modelos masculinos e femininos, que os medicamentos sejam sistematicamente experimentados em homens e em mulheres, que se perceba bem quais são as diferenças, e que muitas vezes se retire daí conclusões para não haver prejuízos específicos para um sexo ou para o outro, tradicionalmente sobretudo para as mulheres que eram muito menos utilizadas nestes ensaios clínicos.

O acesso a investimentos para a investigação e a ciência começaram a exigir critérios climáticos. Também já exigem critérios de género?
Sim, é verdade que as agências de financiamento, as entidades que financiam a investigação e ciência começaram a exigir que haja a atenção a eventuais diferenças de género e de sexo, naquilo que é estudado e que é financiado. A ciência é largamente financiada por entidades públicas em grande medida, mas também por entidades privadas, e cada vez mais, por exemplo nos Estados Unidos e ao nível da União Europeia, se exige, quando se submete para efeitos de financiamento uma determinada hipótese de estudo ou de investigação, que seja definido se há ou não há critérios relacionados com o sexo e com o género, que devam ser tidos em conta para encontrar determinados resultados. Ou para assegurar que determinados resultados correspondem à verdade, correspondem àquilo que tem de ser conhecido, e têm suficientemente em atenção as diferenças que podem existir. Agora para os financiamentos novos, por parte da União Europeia - com expressão financeira elevadíssima naquilo que já está em vigor por parte da UE -, há esta exigência sistemática, que se verifique se há ou não há questões relacionadas com o sexo ou com o género, que devam ser tidas em conta na elaboração do estudo de investigação e em que termos, sem isso não haverá acesso ao financiamento. Há aqui uma forma nova, bastante mais exigente do que no passado, de consideração e de tratamento dessas questões, com o objetivo de que o conhecimento, aquilo que se alcança em termos de conhecimento, seja rigoroso, e por outro lado que as respetivas consequências, se as houver, por exemplo ao nível da medicina, também tenham por base conhecimentos que não gerem ou que possam originar efeitos conhecidos e seguros, seja qual for o sexo da pessoa que esteja a ser tratada.

A tendência é encontrar para cada doente um tratamento e um medicamento personalizados. O que já está a ser feito nesse sentido e como é que a Fundação Champalimaud está a fazer esse caminho?
Sim, a tendência, hoje, é para encontrar para cada doente um tratamento e, até se for caso disso, um medicamento mais personalizado. Portanto, não é só o sexo ou o género ou outros fatores a esse nível que têm de ser considerados. Por exemplo, na área que na Fundação Champalimaud é objeto da clínica que fazemos que é o cancro, este caminho personalizado está consagrado em muitíssimas circunstâncias em que é preciso por exemplo estudar o ADN da pessoa em causa, ou até o ADN do tumor da pessoa em causa. Não sou cientista nem médica, só posso falar destas questões com alguma distância e com uma capacidade de compreender relativamente limitada, mas cada vez mais é preciso adequar a cada pessoa o tipo de tratamento que é de facto utilizado, com uma exigência em relação ao cancro muitíssimo elevada. Descobrir exatamente o que é que funciona em cada situação exige um conhecimento muito individualizado.

"Todos os setores podem ser explorados, todas as ambições estão ao nosso alcance e julgo que o nosso país precisa muito da nossa participação."

Pode dar um exemplo que se aplique na Fundação Champalimaud?
Posso dar um exemplo: um tipo de abordagem que estamos a fazer em relação ao cancro, justamente, tem que ver com a utilização de modelos animais. Neste caso peixes-zebra, que são animais muito pequeninos, e larvas de peixe-zebra, onde injetamos amostras do tumor ou metástases de um determinado paciente. Depois então verifica-se a possibilidade de utilizar diferentes medicamentos que possam ser eficazes naquele tumor ou naquelas metástases. Tem que ver justamente com um tratamento personalizado, com medicamentos adequados àquela pessoa, àquela situação, até àquele tipo de tumor. É um esforço enorme que tem de ser feito e que está a ser feito. Estamos neste momento a investir na criação de um laboratório muitíssimo sofisticado no nosso edifício dedicado ao cancro do pâncreas, onde se poderão fazer estudos e ensaiar hipóteses de tratamento em termos extremamente individualizados e adequados até às células das pessoas que estão doentes ou às células doentes das pessoas. Portanto, estamos a fazer este caminho, como todas as instituições modernas que abordam a investigação e o tratamento de doenças. Por exemplo, no cancro do pâncreas têm resistido, resistido, resistido a conhecer um caminho que dê esperança aos doentes.

Que mensagem final gostaria de deixar a todas as mulheres em Portugal?
Bom, tenho alguma dificuldade em achar que sei enviar mensagens para todas as mulheres, mas aquilo que me apetece talvez dizer-lhes é que, por um lado, pratiquem a consciência de que somos mulheres, eu também, de que somos mulheres em todas as circunstâncias e olhemos para as coisas tentando compreender se tem ou não tem - muitas vezes têm uma má abordagem - sentido pensar em função de sermos ou não mulheres. E portanto tenhamos essa consciência, olhemos para realidade com essa consciência, lendo a realidade tendo em atenção se isso é relevante ou não é. Eu acho que é relevante em muitíssimas situações. Depois ao nível da atuação, ao nível das ambições, ao nível daquilo que fazemos, daquilo que desejamos fazer. Guardando a consciência de que somos mulheres, deitemos fora tudo o que é, ou que tradicionalmente é, a ideia de que se somos mulheres não fazemos ou não querem que façamos ou não é a nossa área. Não. Utilizemos aquilo que sabemos, utilizemos a realidade, os instrumentos que existem independentemente de qualquer espécie de juízo, de que tenhamos limitações, em função do facto de sermos mulheres. Todos os setores estão abertos e podem ser explorados, todas as ambições estão ao nosso alcance e julgo que o nosso país precisa muito da nossa participação. Precisa muito da participação de todos, e precisa muito de uma participação que tenha consciência das diferenças, da diversidade, de tudo aquilo que influencia o nosso comportamento e tudo aquilo que pode influenciar a nossa realização pessoal e a realização coletiva do nosso país, já agora.

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