Kristina e Yaroslav são ucranianos, cidadãos portugueses e médicos a ajudar quem foge da guerra
Kristina Hundarova é médica interna do 4.º ano na especialidade de Ginecologia Obstetrícia no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, cidade que escolheu para fazer o curso de Medicina, completar a sua formação e, quiçá, para ficar. Nasceu em Rivne, no noroeste da Ucrânia, há 29 anos. Chegou a Portugal com a mãe aos oito e já com dois de escola.
Apesar do obstáculo da língua, adaptou-se bem à nova realidade. Hoje, tem dupla nacionalidade e confessa: "Sinto-me mais portuguesa do que ucraniana". Mas assim que soube da invasão russa quis ajudar o país e o povo que a viram nascer. "Antes de mais, porque sou médica, é o meu dever. Depois, porque são as minhas origens que estão a ser atingidas". Em Portugal, fez o ensino básico e secundário, em Silves, região para onde os pais decidiram emigrar e se fixaram, em 2001.
"Os meus pais tinham empregos estáveis, mas a situação começou a complicar-se e decidiram emigrar", conta. No início, "não foi fácil". "Havia a barreira da língua, a minha mãe era contabilista e teve de se sujeitar a empregos mais precários. Eu era criança e adaptei-me muito bem na escola. Eles trabalharam muito e acabaram por ficar em Portugal". Ao olhar para trás, diz: "Sempre tive medo do que a Rússia poderia fazer à Ucrânia, mas nunca imaginei que se pudesse concretizar esta ameaça". E a única coisa que deseja "é que tudo acabe rapidamente".
À história de Kristina, junta-se a de Yaroslav Chernousov, médico radiologista no Hospital São Martinho, em Valongo, que também já diz ser "um nortenho". "Tenho muito orgulho de viver em Portugal e de ter uma filha que já nasceu neste país", confessa, agradecendo a forma como sempre foi acolhido e o que "o povo português está a fazer ao povo ucraniano".
Yaroslav nasceu na cidade de Lugansk, no leste da Ucrânia, conheceu Portugal em 2010, para onde veio fazer um estágio no âmbito da especialidade que escolheu, Radiologia, no Hospital de São João, no Porto. "Vim porque na comunidade médica criam-se sempre conhecimentos nas áreas em que estamos a estudar, conheci alguns colegas em Portugal e quis vir fazer aqui o meu estágio da especialidade", justifica.
Mal sabia que, quatro anos depois, regressaria de vez, logo após os conflitos entre Ucrânia e Rússia na zonas fronteiriças, uma delas na cidade onde vivia, e da anexação da Crimeia pela Rússia. "A minha região foi ocupada pelas forças pró-russas e isso complicou a situação social. Eu trabalhava num hospital e num programa internacional do cancro da tiróide, do Ministério da Saúde, como médico especialista em Radiologia, e o hospital começou a ter muitos problemas em conseguir manter os compromissos. Percebi que a partir dali não seria mais a mesma coisa e decidi sair", conta.
"Na altura, nem olhei para outros países, decidi-me logo por Portugal", afirma, a rir. Veio com a mulher e o filho de um ano. Hoje, tem dupla nacionalidade e mais uma filha que "já nasceu no Hospital São João". Em Portugal, sofre à distância. "Tenho lá os meus pais, os meus sogros, o padrinho do meu filho e outros familiares. Alguns já tiveram de fugir das zonas onde moravam, já ficaram sem casas, mas querem continuar a lutar pelo país". Uma atitude que não o surpreende. "Os ucranianos são um povo do mundo, pacífico, mas guerreiro", diz. Aliás, de uma coisa tem a certeza: "Continuarão a lutar até ao fim".
Kristina Hundarova e Yaroslav Chernousov são dois dos médicos ucranianos em Portugal, de um total de 319, que integram o Gabinete de Apoio Humanitário criado recentemente pela Ordem dos Médicos, para apoiar os refugiados que cheguem a Portugal.
Como explicam, o GAH integra médicos ucranianos, portugueses e russos, porque todos estão inscritos na mesma ordem profissional e todos são médicos. Ali, não há nacionalidades e a meta é cuidar da saúde de quem já chega fragilizado. "O objetivo é fazer a triagem de situações graves, crónicas ou de risco, de forma a que estas pessoas possam ser logo referenciadas para os serviços de saúde", referem ao DN. As tarefas vão desde a recolha de informação clínica à tradução de relatórios e de diagnósticos clínicos e da observação de doentes ao encaminhamento e tratamento destes.
Kristina já teve a sua primeira missão no âmbito deste gabinete. "Viajei com mais colegas até à Polónia para apoiar a vinda de 400 pessoas, sobretudo mães com filhos menores, grávidas e alguns idosos. A maior parte da população era saudável e não houve nenhuma situação de risco maior, que fosse necessária ser referenciada para um hospital. Apenas constipações, alguns enjoos, gastroenterites e casos de ansiedade, o que também já era expectável. As situações foram resolvidas, mas o facto de haver médicos ucranianos na equipa ajudou muito, tranquilizou todas as pessoas", explica.
Antes de irem sabia que uma viagem destas, com tanta gente, quase 500 pessoas, 400 refugiados e cerca de 70 voluntários, sem apoio médico "poderia ser muito complicada". No final, ficou a perceber que "o apoio médico nestas missões é fundamental e deve ser cada vez estimulado", para o bem de todos, tanto de quem foge da guerra como de quem está em ação humanitária.
"Foi muito importante poder prestar-se apoio físico e emocional durante a viagem. As situações que foram detetadas foram avaliadas e medicadas. O facto de ser bilingue permitiu explicar às pessoas que havia uma equipa médica com conhecimento que não iria deixar para trás nenhuma situação de risco, e isso deu-lhes confiança".
A médica de Coimbra conta que soube da missão numa sexta-feira à noite. Com ela iam mais quatro médicos, entre eles o coordenador do GAH, Vítor Almeida, clínico em Viseu e especialista em medicina de catástrofe. A ideia era a equipa médica partir, no domingo seguinte, no comboio de cinco autocarros que iria trazer os refugiados com os cerca de 70 voluntários, mas tal não foi possível.
"Para um médico é muito difícil reorganizar a sua vida em tão pouco tempo. Tínhamos que acautelar escalas de urgência e consultas programadas, então partimos todos na terça-feira seguinte de avião para Cracóvia", onde ficaram apenas algumas horas, o tempo necessário para recolher informação clínica de todas as pessoas indicadas para acolhimento em Portugal através daquela missão e para perceberem se alguma estaria em situação de risco que a impedisse de realizar a viagem.
"Assim que chegámos começámos a falar com todos as pessoas e a distribuir um inquérito nas duas línguas para perceber se haveria algumas situações graves de saúde, que impedissem as pessoas de fazerem uma viagem de três dias, que tem alguns riscos associados", mas todas puderam integrar o comboio humanitário até Portugal. E mesmo durante os mais de três mil quilómetros percorridos, nada houve que tivesse de ser referenciado de imediato para um serviço hospitalar.
Há uma semana de regresso a Portugal, a vida de Kristina Hundarova voltou ao normal, à formação, às consultas, às urgências na área da Ginecologia Obstetrícia numa das maternidades de Coimbra, para fazer o que mais gosta. "Fui sempre muito de ajudar e pensei que em medicina poderia ser mais útil e conseguir fazer a diferença na vida das outros", afirma para explicar a escolha profissional que fez ainda bem jovem, confessando mesmo que foi este objetivo que fez sempre com que se aplicasse cada vez mais para o alcançar. "As dificuldades fizeram-me estudar cada vez mais para ser uma boa aluna e poder abrir outras portas", conta.
Um espírito muito próprio das suas raízes. "Penso que uma das coisas que os portugueses sabem do povo ucraniano é o facto de serem muito trabalhadores e muito esforçados", destaca. "Muitos dos melhores alunos nas escolas portuguesas são ucranianos ou porque vieram com boas bases ou porque têm uma boa educação e disciplina". Por tudo isto, Kristina Hurdanova não pensou duas vezes em integrar o GAH, e quando chegou à Polónia também não estranhou o facto de ter encontrado um cenário que não era tão complicado como o que imaginava.
"Achei que estaria tudo muito pior, que o ter de abandonar as suas vidas, o ter de deixar para trás pais, avós, maridos, filhos e ter de fazer um longo caminho para chegar à Polónia, tivesse fragilizado muito aquelas pessoas, mas não. Mostraram-se sempre muito fortes, sem qualquer tipo de fraqueza e muito organizados".
Quando lhe perguntamos como definiria um povo assim, não hesita: "É um povo com uma enorme resiliência, persistência e amor à pátria". Também por isto pede aos portugueses que continuem a acolher "estas pessoas e a proporcionar-lhes bem-estar". Como médica, seja de que nacionalidade forem, estará sempre lá para apoiar quem necessitar, porque "é um dever. Foi para isso que me formei".
A viagem à Polónia correu bem, mas por cá, no terreno, os médicos que integram o GAH continuam a trabalhar. Yaroslav Chernousov é um deles, porque também ele, diz, "nenhum médico, nenhum colega de origem ucraniana, pode ficar indiferente a esta situação. Sinto-me magoado, não só como ucraniano, mas também como cidadão português de origem ucraniana, e como ser humano. O que está a acontecer na Ucrânia é uma repetição da Segunda Guerra Mundial, mas num só país do centro da Europa".
Para ele, que assume não ser "um especialista em geopolítica", "estamos perante uma das maiores catástrofes humanitárias", mas de uma coisa tem a certeza: "Os ucranianos não se vão render. A Ucrânia é um país de paz, mas vai lutar até ao fim, até ao último metro quadrado do seu território e até ao último cidadão".
Até este fim de semana, Portugal recebeu mais de 22 500 pedidos de acolhimento temporário por parte de cidadãos ucranianos, por isso Yaroslav Chernosov diz que o papel, não só dos médicos ucranianos, mas de toda a classe médica, no GAH, "é muito importante". "Não somos soldados, não somos bombeiros, somos médicos, e podemos ajudar quem vem para Portugal e não conhece a língua". Yaroslav sente que muitos deles já o estão a fazer desde "os primeiros dias de guerra e desde que o sr. bastonário teve a ideia de criar o GAH e nomeou o Dr. Vítor Almeida como coordenador. O gabinete já conseguiu criar uma estrutura muito eficaz, quase a 100%", diz confiante.
"Os médicos ucranianos que vivem em Portugal têm quase todos dupla nacionalidade e estão espalhados por todo o país já a acompanhar os processos clínicos de quem vem, a traduzi-los e a fazer uma triagem".
Segundo afirma, "o gabinete conseguiu mobilizar 82 médicos, que estão prontos para dar apoio sete dias por semana durante 24 horas. E já estamos a ser chamados por várias organizações voluntárias, que acolhem refugiados, para observarmos alguns pacientes". Também para Yaroslav Chernousov, independentemente da origem dos refugiados, esta ação de apoio é muito mais do que uma ação individual de um médico, de um enfermeiro, de um bombeiro: "É uma intervenção de saúde pública de um país. Daí o ter sido tão importante criar-se um mecanismo como o GAH, que pode ajudar a reduzir as sequelas e as consequências, físicas e psicológicas, de uma situação como esta". Também por isto, se Portugal precisar dele, no futuro, para apoio a outros refugiados, ajudará da mesma forma.
Kristina Hundarova deseja que esta guerra acaba rapidamente, Yaroslav Chernousov tem fé que isso acontecerá. Quando? Não sabem, porque aquilo que, afinal, para o mundo Ocidental e para eles era impensável acontecer nos tempos de hoje, aconteceu. Mas cada um continuará a fazer o que puder para apoiar aqueles que escolherem Portugal.
Na Ordem dos Médicos em Portugal estão inscritos, 319 médicos de origem ucraniana. A maioria está no Sul, 192 profissionais, no Norte estão 84 e no Centro 43. De acordo com dados da OM, 84 destes médicos têm idade igual ou inferior a 35 anos e 76 têm idade igual ou superior a 55 anos.
As especialidades
São muitas as especialidades em que exercem funções os médicos ucranianos inscritos na OM. Todos são sujeitos as provas de equivalência, de língua e para as especialidades. A maioria acaba por ficar como médico não especialista. Neste momento são 225, mas há 2 em Anestesiologia; 1 em Cirurgia cardio torácica; 3 em Cirurgia geral; 1 em Estomatologia; 1 em Genética médica; 3 em Ginecologia Obstetricia: 1 em Imuno-alergologia; 8 em Imuno-hemoterapia; 8 em Medicina do trabalho; 33 em Medicina geral e familiar; 9 em Medicina interna; 1 em Medicina interna e emergência médica; 1 Medicina interna e medicina intensiva; 2 em Medicina interna, medicina intensiva e emergência médica; 1 em Medicina legal; 3 em Medicina legal, avaliação do dano corporal; 1 em Oncologia médica; 8 em Patologia clínica; 1 em Pediatria; 1 em Psiquiatria; 2 em Radiologia; 1 em Saúde pública e 2 em Urologia.