João Varandas Fernandes, médico, professor universitário e autor de várias publicações sobre políticas de saúde, foi o convidado em mais uma entrevista no estúdio do Diário de Notícias. Com um currículo vasto, que inclui as funções de diretor do Serviço de Urgência do Hospital de São José, diretor clínico e administrador do Hospital de Cascais (que foi a primeira parceria público-privada na saúde em Portugal), João Varandas Fernandes foi também vice-presidente do Sport Lisboa e Benfica e, atualmente, faz parte da direção da Cruz Vermelha Portuguesa. Nesta entrevista ao DN, o também militante do CDS deixa várias propostas para o futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e declara o seu apoio a António José Seguro nas próximas presidenciais.
Sobre o Benfica, o seu clube do coração, João Varandas Fernandes mostra-se muito crítico da atual direção. Na próxima segunda-feira, dia 16, publicaremos a segunda parte desta entrevista, focada no futuro do clube das águias.
A versão em vídeo desta entrevista foi gravada e editada por Inês Pedrosa.
Temos assistido a casos em que alguns médicos recebem valores exorbitantes por cirurgias fora do horário normal. Estamos a falar de 400 mil euros. Como é que isto acontece?
A questão que se passa, obviamente, é que a cirurgia adicional aparece para reduzir as listas de espera. Tem mais de uma década, e na altura, de facto, era um incentivo que existia para além da hora normal de trabalho dos profissionais de saúde. Obviamente que esse número que fala é um exagero que mina a credibilidade da classe.
Ou seja, é uma boa ideia mas que não está a funcionar como deveria por falta de controlo.
Claro. Temos que perceber que os hospitais têm gabinetes de planeamento e gestão e de auditoria, que controlam essa codificação e esses pagamentos e esses horários em que são feitas as cirurgias adicionais. Sempre defendi... eu fui diretor do Centro de Responsabilidade Integrado de Trauma no Central de Lisboa e a cirurgia adicional era feita depois do horário normal de trabalho. Era sempre auditada, tinha um gabinete de planeamento onde era verificado todos esses atos, e portanto nunca tivemos o mínimo problema. (...) Na minha opinião, a cirurgia adicional deverá ser feita de uma outra forma, deverá ser feita num horário normal de trabalho. E as remunerações dos profissionais devem ser efetuadas por uma contratualização direta com o conselho de administração. É nesse contrato que deve entrar, na minha opinião, essa cirurgia adicional. E não de uma forma adicional ou de uma forma para além do horário normal de trabalho.
Tem de estar tudo contratualizado e de haver incentivos ao mérito e à produtividade?
Ao mérito, à produtividade e à qualidade. É necessário desenvolver autonomia, responsabilidade e incentivos. E isso deve ser uma equipa multiprofissional, que deve contratualizar com os conselhos de administração contratos de três anos, auditados anualmente, que podem ser extintos por ineficácia, mas deve-se dar incentivo a que os profissionais de saúde giram a sua própria atividade. E é dentro desse contexto de responsabilidade é que obviamente aparece a cirurgia adicional para dar uma resposta às listas de espera, e não há só às listas espera cirúrgicas, também às consultas, aos exames complementares de diagnóstico. Em certa medida deu resultados, mas tem que ser bem auditada e bem codificada, porque senão aparecem esses exageros.
E como se pode enfrentar o problema da falta de médicos e enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
Há vários problemas. O problema do Serviço Nacional de Saúde é um problema complexo, senão já teria sido resolvido há muito tempo. Mas tem resoluções que têm urgência em serem feitas. A redução dos tempos de espera para consultas, cirurgias e para exames complementares de diagnóstico - é urgente resolver isso. É urgente resolver a burocracia excessiva e a gestão ineficiente que existem no sistema. O problema é estrutural, não é financeiro. Também tem uma componente financeira, mas o problema estrutural é quase que sobreponível ao problema financeiro. E depois há uma falta de investimento, quer na prevenção, quer nas restantes vertentes. É fundamental, acima de tudo, ter uma estratégia. Há uma coisa que ando a dizer há algum tempo, sobre o PRR. Queria só lhe dizer estes números, que acho que é importante. Tem 1,7 mil milhões de euros para investimento na acessibilidade, na eficiência e na qualidade do SNS. Mas há uma baixa taxa de execução, que coloca em causa a eficácia dessas mesmas reformas. Na modernização tecnológica, que é uma área importantíssima para a reestruturação do Serviço Nacional de Saúde, apresenta apenas uma taxa de execução que não chega aos 7%, de 6,6% em maio de 2025. Nos cuidados de saúde primários, cujo investimento ia ser prioritário, a taxa de execução não ultrapassa os 15 a 6%. Repare, se houver uma utilização na totalidade ou perto disso no sistema, torna-se muito mais eficiente, é mais acessível e há com certeza uma maioria...
Mas esse investimento na parte tecnológica fará, de facto, a diferença, ou estaremos apenas a digitalizar a burocracia?
A combinação das novas tecnologias com a inteligência artificial permite que os profissionais de saúde atuem em equipa. E permite uma outra questão, que é a multidisciplinaridade das próprias equipas. As funções, por exemplo, de triagem, que hoje já são feitas por enfermeiros. Ou alguns diagnósticos, muitas das aplicações burocráticas que são feitas hoje por médicos e por pessoas profissionalmente muito diferenciadas, podem passar a ser feitas, ser executadas por pessoas menos diferenciadas. O que pode permitir uma disponibilidade maior dos médicos para outras tarefas e para acompanhar o doente de uma outra forma. Agora, esta multidisciplinaridade não substitui os recursos humanos na maioria das situações. Mas resolvem as ineficiências do sistema.
E ainda em relação à tecnologia, nomeadamente a Inteligência Artificial, é um caminho que se deve explorar ou há questões éticas que devem ser tidas em conta?
Sim, mas essas questões éticas são discutidas e têm sido discutidas a nível mundial e mesmo a nível nacional também, são questões que são ultrapassadas. E concordo com as tecnologias inteiramente. Não só. Olhe, numa parte básica, a interligação dos circuitos de conhecimento clínico em relação aos doentes devem estar interligados. Deve ser de fácil acesso em qualquer posto de saúde termos acesso à ficha clínica do próprio doente. Isto faz sentido imenso. Quer seja numa região do interior, quer seja numa região do litoral, do norte ou do sul.
Neste momento isso ainda não existe?
Existe parcialmente existe. Com uma boa aposta tecnológica é possível fazer. O médico que está numa capital distrito do interior tem um acesso imediato à informação clínica de uma pessoa. Seja privado, seja público, seja do sector social. Ou seja, deve haver uma rede comum de conhecimento daquilo que se passa em relação ao cidadão. Isso seria facilitador.
Tem-se falado de uma revisão constitucional que abra a porta a um reconhecimento de um papel dos privados e do setor social no acesso à saúde. Concorda?
Os modelos a criar, nomeadamente de acesso nos cuidados de primeira saúde, no internamento com novos modelos de gestão nos hospitais, na hospitalização domiciliária e nos cuidados continuados e paliativos também, devem ter a participação efetiva das entidades privadas e sociais. Obviamente, isto vai melhorar substancialmente o sistema, porque é partilhada a responsabilidade e é mais rápida a resposta a dar. Desde que a carga fiscal não tenha um acréscimo. As pessoas têm que ter acesso à saúde e para elas é igual ter acesso no SNS, na clínica privada ou num hospital da misericórdia, é rigorosamente igual. Hoje em dia há hospitais da misericórdia a funcionarem extraordinariamente bem. E portanto, o que eu digo é o seguinte, todos somos poucos para fazer o sistema funcionar com a resposta adequada. Não pode estar com listas de espera.
Ou seja, os privados e o setor social devem ter um papel complementar, estando focados em áreas onde o SNS não dá resposta?
Certo.
Por exemplo, nos paliativos?
Por exemplo, e nos continuados também. De uma forma em que toda a gente tenha acesso à saúde. O problema da saúde não deve ser ideológico. É um problema de cidadania e de responsabilidade. E, portanto, ver a saúde como problema ideológico, no meu ponto de vista, é errado. Sou defensor do Serviço Nacional de Saúde, tive a minha carreira toda, durante quatro dezenas de anos, no Serviço Nacional de Saúde, de onde saí há meia dúzia de dias. O Serviço Nacional de Saúde é fundamental, é importantíssimo, é um pilar social importante no Estado. Até pelas condições económicas que o país teve e ainda tem, não é suficiente, não resolve o problema.
Saiu há poucos dias do SNS, após quatro décadas. Quais são as grandes diferenças que nota, entre o momento da sua saída e o que encontrou no início da sua carreira?
Sim, saí há pouquíssimos dias e estou, enfim, ainda estou ligado a setores da saúde, estou na Universidade Autónoma onde tenho a responsabilidade de um departamento de ciências da saúde. Acho que há particularidades que se mantêm. Olhe, os serviços de urgência mantêm-se quase praticamente iguais. A confusão dos serviços de urgência... As urgências estão melhores, obviamente. Há uma triagem, isso aí evoluiu bastante. Agora, estamos a falar em recursos humanos. A mesma carência de recursos humanos que tínhamos há uma dúzia de anos atrás, é a mesma carência que hoje temos. É praticamente. Repare, Portugal tinha há dois anos uma média de 5,7 ou 5,8 médicos por cada mil habitantes, com licença, para exercer. Estamos acima de países europeus como a Irlanda, os Países Baixos e a Finlândia, mas estamos abaixo da Grécia, a Suécia e da Bélgica, mas esta situação de recursos humanos tem de ser analisada pela distribuição geográfica e pela especialização. A nível de enfermagem, por exemplo, a média europeia é de 10 enfermeiros por cada 1.000 habitantes. Nós temos uma média de 8, 7,5, 8, portanto, há aqui necessidade de formar e de definir em que situações os médicos e os enfermeiros devem intervir prioritariamente. Há que regulamentar. Isso passa pelas classes profissionais e pelas ordens. E aí é que está o grande problema. As ordens têm um grande papel aqui.
Acha que a Ordem dos Médicos é demasiado corporativista, por exemplo no que toca à criação de novos cursos de medicina?
Eu penso que sim. Mas mesmo que não queiram, vamos entrar numa nova era, com a imprevisibilidade que hoje existe no mundo. Vamos ser obrigados a manter o rigor, obviamente, a manter o cumprimento de protocolos e determinadas regras.
João Varandas Fernandes decidiu apoiar a candidatura de António José Seguro à Presidência da República, por considerar que o antigo líder do PS tem as “qualidades humanas” necessárias para assumir a mais alta magistratura da Nação. O médico, que é militante do CDS e se define como democrata-cristão, considera que António José Seguro tem possibilidades de passar à segunda volta das presidenciais. “A dimensão ética, a dignidade, o equilíbrio e a sua sensibilidade social são as condições que, por mim, determinaram o apoio a António José Seguro. Para além disso, ele tem uma experiência política, conhece bem as necessidades das pessoas, das instituições, está há alguns anos afastado da vida partidária política. Portanto, isso é uma vantagem”, disse João Varandas Fernandes na entrevista ao DN. “Apoio o António José Seguro como cidadão português e por estes atributos que lhe acabei de referir. Pela sensibilidade dele, pelo equilíbrio, pelo seu humanismo. Eu apoio por isso. Agora, interessa-me pouco neste domínio da presidência da República, se é de direita, se é de esquerda, se é do centro. Interessa-me mais a pessoa”, disse.