Investigadora Sónia Melo, do i3S
Investigadora Sónia Melo, do i3SPedro Correia / Global Imagens

Investigadora portuguesa conseguiu mapear os passos silenciosos do cancro do pâncreas

Sónia Melo montou um sistema de vigilância sobre um pâncreas com células tumorais que permitiu rastrear toda a atividade do tumor e perceber como ele manipula o sistema imunitário. O estudo abre portas a novas vias terapêuticas para um dos cancros mais letais.
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Com a fama de assassino silencioso, o cancro do pâncreas é um dos mais mortíferos. Difícil de detetar precocemente e bastante eficaz na sua proliferação, os seus sintomas só costumam manifestar-se numa etapa tardia do desenvolvimento, quando as células tumorais já invadiram outros órgãos. Entender melhor a biologia deste cancro e como ele consegue disseminar-se de forma tão eficiente tem sido um desafio para a comunidade científica, mas a descoberta de uma investigadora do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S) pode abrir portas a importantes avanços nesta área, já que, pela primeira vez, conseguiu mapear a forma como o cancro do pâncreas comunica.

O estudo da equipa liderada pela investigadora Sónia Melo, cujos resultados foram esta quarta-feira publicados na prestigiada revista científica Nature Communications, consistiu em montar uma espécie de sistema de vigilância sobre um pâncreas com células tumorais que permitiu rastrear toda a atividade do tumor e perceber como ele se reproduz, abrindo caminho a “novas vias terapêuticas para um tipo de cancro em que elas são atualmente muito limitadas”, refere a investigadora ao DN.

Utilizando como modelo um ratinho geneticamente modificado com um cancro no pâncreas, os investigadores do i3S conseguiram “ver o tumor a desenvolver-se e identificar as vias de comunicação que ele utiliza”. Para isso, rastrearam os exossomas, ou vesículas extracelulares, segregados pelas células cancerígenas pancreáticas e que estabelecem a comunicação com outras células. A forma como estas vesículas se distribuem e quais os órgãos com que comunicam, bem como o impacto que têm nesses órgãos, era ainda território desconhecido, mas a vigilância montada pela equipa de Sónia Melo permitiu chegar a descobertas relevantes. Como, por exemplo, o facto de o timo ser um dos órgãos com que o tumor mais comunica através desses exossomas “mensageiros”.

“Essas vesículas têm uma marca de fluorescência que nos permite vigiá-las e perceber de que forma o tumor as usa em seu proveito”, explica a investigadora, acrescentando que a sua equipa encontrou “comunicação dentro do próprio tumor e também entre o tumor e alguns órgãos distantes, como é o caso do timo”. Este mapeamento permitiu esclarecer que a comunicação estabelecida pelas células tumorais “não é aleatória”. Pelo contrário, “está bem organizada e direcionada”, refere Sónia Melo: “O tumor sabe para onde canalizar a informação, por forma a permitir a progressão da doença e modificar órgãos à distância a seu favor.”

Nesta imagem vemos um tumor pancreático multicolor (com quatro cores) que produz exossomas também com cor. Desta forma, podemos seguir estes exossomas durante a progressão do tumor dentro do corpo in vivo e ver para onde é que eles vão, em que outras células é que vão entrar, e de que forma modificam essas células e esses órgãos.

Daí que o timo seja um alvo preferencial desses exossomas segregados pelas células tumorais pancreáticas, já que é nesse órgão localizado no tórax, entre os pulmões e a frente do coração, que “nascem e maturam as células do sistema imunitário”, revela. Ao enviar informação para o timo através dessas vesículas, o tumor “pode modificar a resposta imune do organismo, impedindo as células imunes de o reconhecerem e o atacarem”. Ou seja, “manipula” as células do sistema imunitário e reprograma-as de forma a que estas não o combatam, pois estes exossomas contêm material genético (RNA e DNA) e molecular (proteínas e lípidos) representativo das células que lhes deram origem - neste caso, tumorais - e podem fundir-se com outras células, vizinhas ou noutros órgãos mais distantes (através da circulação sanguínea), tendo um papel importante na proliferação e formação de metástases no cancro.

Sónia Melo e a sua equipa de investigação no i3S
Pedro Correia/Global Imagens

Sónia Melo salienta que este estudo abre novas vias terapêuticas sobre um tumor do qual “ainda se sabe muito pouco em termos biológicos”, estimulando a pesquisa para melhorar os cuidados prestados aos doentes. Uma das vias, adianta, poderá ser “tentar identificar novas drogas que inibam a produção destas vesículas nas células tumorais e bloquear assim a comunicação do tumor”. Uma outra, acrescenta, “é tentar perceber de que forma esses exossomas que viajam até ao timo vão atuar nesse órgão, que células do sistema imunitário alteram e de que forma as alteram”. Detalhando essa intervenção, os cientistas poderão “perceber melhor como repor o normal funcionamento do sistema imunitário”.

Essas são pistas importantes para futuras investigações sobre um tipo de cancro a reclamar mais atenção. “Nos últimos 40 anos quase não houve evolução significativa no estudo deste tipo de cancro, ao contrário do que aconteceu com outros tumores como o da mama, do pulmão ou o colorretal, que são cancros com incidência mais elevada”. Mas as características silenciosas do cancro do pâncreas - um dos cancros do sistema digestivo - tornam-no de facto num dos mais mortíferos e a sua incidência “tem subido” nos últimos anos, alerta a investigadora do i3S e do Porto Comprehensive Cancer Center Raquel Seruca, e docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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