O Ministério Público arquivou o inquérito que investigava dois contratos celebrados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) com Joaquim Morão, em 2015 e 2016, por ajuste direto, destinados à “coordenação e acompanhamento de obras municipais”. “Não resultaram indícios suficientes da prática de qualquer ilícito criminal”, conclui o MP. Morão era um influente ex-autarca socialista de Idanha-a-Nova e Castelo Branco. À data dos factos, Fernando Medina, que assumiu desde logo a responsabilidade pelo convite, presidia à CML.De acordo com o despacho de arquivamento, o inquérito teve origem numa notícia de “O Público”, de março de 2018, segundo a qual “Câmara de Lisboa simula consultas de mercado para contratar histórico do PS”. O texto dizia que a Câmara “tinha convidado por duas vezes, três empresas, para apresentarem propostas de prestação de serviços relativos à gestão de projetos: duas sociedades pertenciam à mesma pessoa, António João Realinho, empresário de Castelo Branco, amigo e colaborador de Joaquim Morão, sem experiência na área e com registo criminal por burla (quando a CML lhe endereçou o convite já estava acusado de burla e de falsificação de documento. E, quando foi convidado pela segunda vez, já o julgamento decorria. Em Novembro de 2016 foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão efetiva); a outra sociedade pertencia a Joaquim Morão e fora criada um mês antes de o convite para a contratação ora em causa ter lugar”. .Joaquim Morão nega qualquer ilícito e disponibiliza-se para colaborar com investigação. O objeto do inquérito foi apurar se houve ilegalidades ou crimes na contratação de Morão pela CML, nomeadamente favorecimento indevido ou violação dolosa de deveres por parte de decisores públicos. O MP entendeu que o processo investigaria possíveis crimes de participação económica em negócio, abuso de poder e prevaricação por titular de cargo público), acrescentando o de burla, imputada a Morão, no decorrer na investigação.A investigação ganhou grande visibilidade mediática em janeiro de 2023, quando a Polícia Judiciária (PJ) realizou buscas na CML, em empresas e residências em Lisboa e Castelo Branco. Mais tarde, as notícias davam como certa a constituição de Medina como arguido – o que nunca aconteceu, não tendo sequer sido chamado pelo MP como testemunha - atribuindo-lhe o papel de cabecilha de um esquema corrupto de favorecimento por ajuste direto, relacionando-o até com alegada existência de um “saco azul” de financiamento ilícito do PS, através da angariação de dinheiro em obras públicas, com subornos de empreiteiros.Fernando Medina, na altura ministro das Finanças, reagiu publicamente, afirmando não ter conhecimento de qualquer investigação e anunciando que tinha pedido para ser ouvido pela Procuradoria-Geral da República, de modo a esclarecer os factos. Garantiu também que o processo de contratação tinha sido transparente e decidido nos termos legais. No despacho, o MP não imputa qualquer ato criminoso a Medina.Ajuste direto justificadoEnquanto vice-presidente da CML em 2015 (e Presidente a partir de abril de 2015, sucedendo a António Costa), Fernando Medina teve um papel central na génese desta contratação. Foi Medina quem identificou a necessidade de acompanhamento especial para as diversas obras municipais em curso e quem escolheu pessoalmente Joaquim Morão para essa função..60 acusados. Medina ilibado. O Caso Tutti Frutti em cinco respostas . Em junho de 2015 assinou um despacho criando a “Equipa de Coordenação de Investimentos Inter-Municipais” (ECIM), estrutura concebida para integrar Joaquim Morão como coordenador, ao lado de técnicos dos gabinetes do Presidente e do Vereador do Urbanismo Manuel Salgado. A finalidade subjacente à redação deste despacho foi a de “empoderar” a referida equipa e Joaquim Morão junto dos serviços da CML, de forma a que houvesse uma formalização do papel da ECIM..Morão confirma que a sua empresa celebrou ajuste direto com a Câmara de Lisboa. O MP constituiu arguidos Joaquim Morão, António Realinho, Manuel Salgado, Maria Helena Bicho, Diretora Municipal de Projeto e Obras, e também Luís Dias, que trabalhava com Morão.O despacho conclui que as diligências realizadas não confirmaram a ocorrência dos factos noticiados, incluindo a alegada viciação das regras do procedimento para beneficiar um determinado adjudicatário.Relativamente às empresas convidadas, o MP descreve os elementos recolhidos e conclui que não foi possível provar que tenham atuado de forma combinada para condicionar a concorrência.Sobre as irregularidades na tramitação processual, o despacho refere que algumas irregularidades formais foram detetadas, mas que não têm relevância penal e não permitem, por si só, concluir pela prática de crime.O MP examinou também a possibilidade de existirem pagamentos ou contrapartidas ilícitas, concluindo que não foi encontrada prova de subornos ou de vantagens patrimoniais indevidas ligadas aos contratos analisados.Conclui ainda, quanto ao ajuste direto, que os valores em causa permitiam o recurso a este instrumento contratual, ainda que a soma dos dois contratos (96 mil euros + IVA) excedesse os 75 mil euros previstos. “Atendendo a todo o exposto e ainda que o procedimento em causa tenha assumido a forma que assumiu (designadamente o ajuste direto com convite a três entidades, sendo uma delas a que já havia celebrado um contrato anteriormente, nos últimos três anos e ultrapassando o valor do contrato sucessivo as regras limite), na verdade não podemos afastar a possibilidade de o contrato ser celebrado através de ajuste direto, socorrendo-se, para tanto, a entidade adjudicante da supra referida disposição legal, atenta a especificidade técnica que o trabalho a executar exigia e as características que a experiência profissional de Joaquim Morão assumia, tudo se vindo a confirmar na execução do contrato”, escreve o MP. “De igual modo, não se logrou fazer prova que tenha sido o arguido Manuel Salgado o decidir sobre se o procedimento seria de ajusto direto, com convite a três empresas, em respeito pela norma de controlo interno, ou se o seria ao abrigo da exceção a essa norma, o que sempre seria possível se nesse sentido fosse decidido pelo Presidente ou pelo vereador com o pelouro das finanças. Certo é que, o convite a três empresas foi inócuo em termos de formalizar a adequação do procedimento ao Código de Contratos Públicos. Ademais, não se logrou apurar quem tenha dado orientações para que se recorresse a tal convite. Os vários juristas que, atentas as suas funções, poderiam ter dado indicações para convite a três sociedades, inquiridos nada esclareceram”, completa.Morão cumpriu o trabalhoNa verdade, sublinha o MP, “relativamente à execução dos contratos, resulta dos elementos reunidos, nomeadamente dos meios de prova documental (incluindo digital) e pessoal, que Joaquim Morão efetivamente realizou trabalho para a CML, através do acompanhamento de reuniões de trabalho, controlo de prazos estabelecidos nas operações em curso e variados contactos com entidades intervenientes, nomeadamente, empreiteiros, serviços camarários, empresas municipais relevantes (EMEL, Sociedade de Reabilitação Urbana, Metropolitano de Lisboa, EPAL, etc.), Tribunal de Contas e outras entidades públicas”. Ao tempo da contratação de Morão, confirmaram os procuradores do MP e os investigadores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, “decorreram em simultâneo, no município de Lisboa, cerca de 65 obras no espaço público, mais de trinta delas de reabilitação profunda ou construção de novos edifícios, preocupação que presidiu à ideia do então Presidente de criar uma comissão de acompanhamento de obras”.No essencial, é salientado, “do que resulta das diligências efetuadas, Joaquim Morão foi escolhido por ser a pessoa indicada para exercer aquelas funções, que exerceu, numa situação particular vivida na Câmara Municipal de Lisboa de grande execução de obras, sendo a pessoa com especiais apetências técnicas para o trabalho a exercer, atenta a experiência acumulada, em funções semelhantes, enquanto autarca em Castelo Branco. E, de acordo com os depoimentos das testemunhas, exerceu corretamente as funções em causa. Mesmo as testemunhas que não estavam de acordo com a “presença” do mesmo na Câmara Municipal, concordaram que a sua contratação foi uma mais valia”.Sobre a suspeita de burla que foi depois imputada a Joaquim Morão, tem a ver com o facto de este como aposentado não poder ser remunerado por uma entidade pública sem a devida autorização do Governo. Enquanto trabalhava para a CML, Morão, segundo disse o próprio ao MP, prestava também serviços na Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa (CIMBB), como secretário executivo, era Provedor da Santa Casa da Idanha, e Presidente do Conselho de Administração não executivo do Crédito Agrícola. O MP confirmou registos de recebimento de despesas de representação da CIMBB. O MP descartou uma acusação criminal por burla, mas entendeu que era “suscetível de integrar a prática de infração financeira”, Assim, o MP decidiu remeter ao Tribunal de Contas o despacho “com vista à apreciação de eventual responsabilidade financeira”.O desfecho do processo contrasta assim com o impacto mediático inicial, quando as buscas e as suspeitas noticiadas colocaram sob escrutínio figuras políticas e técnicas da CML. Em 2023, as manchetes falavam em crimes graves e em esquemas de financiamento partidário. Dois anos depois, a investigação concluiu que não havia prova que sustentasse a acusação contra qualquer dos arguidos ou outros intervenientes, encerrando um caso que durante meses alimentou o debate político e a atenção pública.Recorde-se que, no inquérito Tutti-Frutti Medina também foi constituido arguido em novembro de 2024 e o MP decidiu não o acusar no seu despacho concluído em fevereiro de 2025.