Detenção de ativistas que a 14 de dezembro bloquearam o Viaduto Duarte Pacheco, em Lisboa. Todas as raparigas, garantem, e só elas, foram mandadas despir para "revista".
Detenção de ativistas que a 14 de dezembro bloquearam o Viaduto Duarte Pacheco, em Lisboa. Todas as raparigas, garantem, e só elas, foram mandadas despir para "revista".Direitos reservados/climáximo.pt

IGAI adverte polícias: revistas "nuas" só com indícios objetivos

Perante as denúncias de ativistas de que foram mandadas despir pela PSP, a inspeção Geral da Administração Interna torna claro às polícias que as "revistas intimistas" só podem ocorrer quando haja indícios objetivos de ocultação de objetos ou armas no corpo de detidos. E nunca com base em fatores discriminatórios.
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"Revistas só podem ser efetuadas se houver indícios, concretizados em factos objetivos, de que o suspeito ou detido oculta na sua pessoa objetos relacionados com o crime ou com os quais possa praticar atos de violência. (...) Salvo razões específicas e objetivas devidamente fundamentadas que o justifiquem, em caso algum as revistas podem ser feitas por forma a discriminar positiva ou negativamente os cidadãos visados (...)."

Esta é a mensagem essencial da recomendação exarada esta sexta-feira, dirigida à direção nacional da PSP e ao comando geral da GNR, pela Inspeção Geral da Administração Interna, que frisa ainda: "A escolha do procedimento deve ter em consideração (...) as circunstâncias em que os factos ocorreram e aquilo que previsivelmente se procura ou se prevê encontrar", tendo sempre que "assentar em critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação, por forma a respeitar a dignidade pessoal e, na medida do possível, o pudor do visado" .

Assinada pela dirigente daquele órgão fiscalizador das polícias, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, a recomendação surge na sequência da abertura, por ordem do ministro da Administração Interna, a 7 de janeiro, de um "inquérito urgente" às denúncias de ativistas climáticas de que dizem ter sido, em duas ocasiões recentes - a 24 de novembro e a 14 de dezembro de 2023 - obrigadas a nu integral pela PSP.

Tais revistas "intimistas", que, de acordo com os relatos efetuados ao DN por várias ativistas, ocorreram nas esquadras da Penha de França e do Calvário, assim como na sede do Comando Metropolitano de Lisboa (COMETLIS), em Moscavide, terão incidido essencialmente sobre detidas do género feminino, já que os detidos do género masculino foram maioritariamente revistados apenas por palpação, mantendo a roupa vestida - daí a referência da IGAI à proibição da motivação discriminatória nas revistas.

IGAI já censurara atuação semelhante da PSP e recomendara manual sobre revistas

Recorde-se que a IGAI já analisara uma denúncia em tudo semelhante, ocorrida em maio de 2021, também com ativistas climáticas detidas pela PSP. E concluíra não só que os factos denunciados se confirmavam -  ordem de nudez total e só aplicada a detidas do género feminino -, como que essa revista "intimista" fora desproporcionada (não se justificando), e que a PSP não possuía quaisquer normas internas sobre revistas.

No seu relatório final sobre o caso ocorrido em 2021, além de propor uma sanção (confirmada pelo ministro José Luís Carneiro e aplicada em janeiro de 2023) à agente da PSP considerada responsável pela decisão de mandar despir as detidas, a IGAI recomendava à Direção Nacional da PSP que elaborasse "um manual de boas práticas no âmbito de revistas a efetuar pela PSP a pessoas detidas, que observem o cumprimento dos direitos, liberdades e garantias, criando por exemplo um escalonamento de situações para a necessidade de efetuar as revistas intrusivas simples/sumárias com recurso a palpação e as revistas intimistas (…).”.

O que não terá acontecido: quando no início de janeiro de 2023, no âmbito da preparação da notícia sobre a denúncia das ativistas, o DN questionou a PSP sobre se já elaborara ou estava a elaborar o dito manual, ou se considerava não ser este necessário, não obteve resposta.

Já em relação à existência das chamadas "revistas intimistas" nas datas e locais referidos pelos ativistas ao DN, a PSP começou por declarar que “todos os detidos foram tratados com respeito, tolerância e elevada consideração, desconhecendo-se qualquer violação ao dever de correção”. Acabaria porém por admitir “procedimentos de revista diferenciados": se "à generalidade dos detidos" tinha sido "efetuada uma revista de segurança"," relativamente a outros detidos, o âmbito da revista foi mais pormenorizado, atentas as suspeitas da existência de elementos ou objetos que pudessem constituir meios de prova, que importava acautelar.”

Esta polícia não esclareceu no entanto por que motivo as suspeitas em causa incidiram sobretudo ou exclusivamente nas detidas do género feminino, em que se basearam tais suspeitas e o que procurava.

Também questionada pelo DN aquando da preparação da notícia sobre as denúncias das ativistas, nomeadamente sobre quais as circunstâncias em que considerava poderem as polícias efetuar revistas "intimistas", a IGAI não tinha até ao momento tomado qualquer posição sobre a matéria. 

O caso de 2021 foi objeto de queixa ao Ministério Público, exsitindo um inquérito criminal a decorrer. Também os factos ocorridos em 2023 serão, de acordo com o que foi comunicado pelos ativistas ao DN, objeto de queixa criminal.

Outros detidos mandados despir no COMETLIS: "deliberação de humilhar"?

Mas os (ou neste caso as) ativistas climáticos não são os únicos detidos a ser, nos últimos tempos, sujeitos às ditas revistas intimistas sem motivo aparente. Advogados de arguidos que em novembro passaram várias noites sob custódia da PSP na sede do COMETLIS admitiram que os seus constituintes, indiciados por crimes económico-financeiros, foram, numa das vezes em que, vindos do tribunal, ali deram entrada  para pernoitar, alvo de uma revista em que se tiveram de se despir por completo e “agachar”.

“Não vejo o que poderiam estar a procurar nestas circunstâncias, e nenhum motivo para esta atuação que não a deliberação de humilhar”, disse ao jornal um dos causídicos. Outro dos advogados manifesta estranheza também pelo facto de outro seu cliente, indiciado pelo mesmo tipo de crimes, ter pernoitado em 2021 no mesmo local e não ter sido sujeito a revista “nua”. “Só se despiu para vestir o pijama”, comenta.

Falando na condição de não ser identificado, um agente sénior da PSP disse ao DN estar espantado com as situações relatadas pelo jornal: “Esse tipo de revistas é indicado quando se julga que pode haver droga escondida – sendo nesse caso recolha de prova – ou armas. Quando não há suspeita de uma coisa nem de outra, parece-me abuso.”

Aliás, as situações narradas pelos ativistas climáticos, que qualifica de “pacíficos”, suscitaram indignação neste homem com décadas ao serviço da PSP: “A sensação que dá é que, a ser verdade, há uma tentativa de humilhação dos miúdos.” Crítico de uma visão autoritária da missão policial, o agente completa o seu diagnóstico: “Os polícias acham que têm de ser justiceiros, que humilhando os miúdos já os estão a punir. É uma mentalidade que vem de cima, espero que este novo diretor mude isso”.

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