Hortas que desafiam poluição e trânsito do IC19 à beira do fim

Autarquias de Sintra e da Amadora estão vigilantes em relação à ameaça para a segurança pública e para a saúde que são os espaços junto a vias rápidas. Estudos científicos alertam para vegetais poluídos e contaminados. Para quem cultiva feijão, ervilhas e favas para alimentar muitas bocas, como a cabo-verdiana Maria, o maior risco é perder o seu espaço
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Duas mulheres africanas limpam o terreno para o cultivo, no alto de uma colina à beira do IC19 (que liga Lisboa a Sintra), na zona de Alfragide, como se fosse natural ter a terra a cair por baixo dos pés e o abismo para a via rápida cortado apenas por um separador metálico. São 16.00 de uma tarde de sábado. Duas mães de família, cabo-verdianas, ignoram esses perigos - para elas e para os outros - e o risco da contaminação dos seus legumes pela poluição, para o qual já alertaram estudos científicos produzidos pelas universidades do Minho e de Aveiro.

Desconhecedoras desses perigos, as mães de família cabo-verdianas continuam a cultivar no talude junto à via rápida que liga Lisboa a Sintra. Feijão, ervilhas e favas para alimentar muitas bocas, isso é o que as faz cansar os braços e as pernas todos os dias. "A Polícia Municipal [PM] esteve aqui no final do ano e avisou para termos cuidado, para não cair nada para o IC19", contou a hortelã Maria, uma cabo-verdiana de 61 anos, enquanto limpava a terra para semear feijão. Mãe de sete filhos, com idades dos 19 aos 40 anos, Maria ainda senta boa parte deles à mesa, alguns sem trabalho. "Neste ano andamos com medo de semear, como já veio aí a polícia da câmara falar com a gente, temos medo de que precisem da terra", confessou ao DN.

Maria mora na Reboleira e faz o caminho para a horta a pé todos os dias. Meia hora de caminhada, que "andar a pé faz bem", graceja. "Temos ervilhas, feijão, favas... Como não há água nas encostas, as regas são apenas com a chuva. E só não dá para cultivar o milho para a cachupa porque não tem água." A mãe cabo-verdiana, habituada no seu país a cultivar a terra desde menina, gosta do trabalho. "Aqui estamos a mondar e a semear e não em casa a pensar nos filhos e nos netos", afirmou, de sorriso aberto. A sua vizinha, também cabo-verdiana, admitiu, sem nunca se querer identificar, que depende da horta: "Venho sempre, todos os dias, não tenho outro trabalho." A terra "dá feijão-verde, dá ervilhas", o que é bom. "Tenho muitos filhos..."

Câmaras querem regular espaços

As autarquias estão cientes do valor de subsistência familiar destas hortas mas querem normalizá-las, colocá-las em talhões, regulá-las. A Câmara de Sintra pretende acabar com as hortas selvagens ou cultivadas sem a autorização em terrenos municipais na zona urbana do concelho, confirmou a autarquia ao DN nesta semana. O município está a fazer o levantamento e caracterização das hortas espontâneas, distinguindo entre as hortas instaladas em terrenos seus e em terrenos de privados. "Um dos objetivos do programa adotado consiste na eliminação das hortas espontâneas instaladas, sem a devida autorização, em terrenos municipais ou sob a gestão da câmara municipal, podendo nalgumas situações, desde que se verifiquem adequadas condições, manter-se tais hortas desde que sujeitas às adaptações decorrentes do regulamento aprovado e integradas no Programa Municipal de Hortas Solidárias", respondeu o gabinete de imprensa da autarquia. Será o fim das hortas selvagens como a que o DN visitou, à beira do IC19.

Já o município da Amadora, também servido pelo IC19, está a intensificar a vigilância nos taludes cultivados junto às vias rápidas, preocupado com a segurança dos automobilistas e dos próprios agricultores.

A segurança e a saúde pública

Contactada pelo DN, a Câmara da Amadora, à qual pertence a zona de Alfragide, respondeu que apenas tem inviabilizado hortas selvagens (que não foram previamente autorizadas pela autarquia) "em situações que coloquem em risco a segurança das pessoas, como é o caso dos taludes das principais rodovias do concelho".

E confirmou que a Polícia Municipal tem visitado algumas dessas hortas para falar com os agricultores. A autarquia enviou também funcionários para limparem os espaços ocupados nas hortas nas ilhas localizadas junto ao IC19 e à EN117. Junto a essas duas vias rápidas "foi levada a cabo uma ação cujo foco principal assentou na segurança dos cidadãos que utilizam estas estradas, repondo as condições de visibilidade das vias envolvidas", referiu o gabinete de imprensa da Câmara da Amadora. A hortelã cabo-verdiana Maria pede apenas uma coisa: "Nós só queremos que nos avisem quando não quiserem que a gente cultive aqui. Semeamos a terra e não pomos químicos nenhuns. Mas, se o Estado não quiser mais, que nos avisem."

O risco para a saúde pública dos alimentos cultivados junto a vias rápidas também não é de descurar, embora quem cultive para sobreviver, como as duas hortelãs cabo-verdianas, não pense nesse problema. Um estudo da Universidade do Minho, dos investigadores Rute Pinto e Rui Ramos, analisou amostras de alfaces e de solos de hortas de área urbana do município de Braga e detetou a presença dos metais pesados cádmio, chumbo e zinco.

Outro estudo, da Universidade de Aveiro e coordenado por Sónia Rodrigues, verificou que os níveis de metais pesados e potencialmente perigosos em hortas urbanas e pastagens do Grande Porto ultrapassam os valores máximos definidos pela União Europeia. Também neste estudo da Universidade de Aveiro os metais encontrados foram cádmio, cobre, chumbo e zinco, tendo sido analisadas centenas de amostras de solo recolhidas em hortas situadas nos arredores da cidade do Porto.

O impacto da ingestão desses produtos na saúde humana e animal ainda não foi devidamente avaliado.

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