Gruta do Escoural é uma espécie de "cápsula do tempo"
A entrada natural era no extremo oposto", esclarece o arqueólogo António Carlos Silva, junto à porta metálica que dá acesso à Gruta do Escoural, a única identificada em território português com gravuras e pinturas paleolíticas, o mais próximo que temos de Lascaux ou de Altamira, míticas grutas artísticas em França e Espanha. O acesso atual resultou de uma explosão numa pedreira de mármore ao final da tarde de 17 de abril de 1963, que revelou a gruta. "Aqui havia uma pedreira a funcionar. E o encarregado da pedreira, Valentim Domingos Fernandes, por razões de segurança acompanhado naquele momento apenas pelo ajudante Olímpio Graixinha, é surpreendido mal assenta a nuvem de poeira por uma abertura na rocha. Curiosos, entram. Apesar de terem um petromax, os olhos tardam a habituar-se, até que percebem que aquilo que estalou ao pisarem eram esqueletos", conta o arqueólogo, agora reformado da Direção Regional de Cultura do Alentejo, entidade responsável pela gruta, situada no concelho de Montemor-o-Novo. O município, por seu lado, financia, em parceria com a Direção Regional de Cultura, o funcionário que abre a gruta todos os dias, e faz ainda a promoção desta como atração cultural.
A conversa junta também os arqueólogos Carlos Carpetudo, da Câmara de Montemor, e Rui Mataloto, que veio do Redondo, onde é técnico camarário, para falar do que está por cima, vestígios de ocupação humana que foram tema de investigação há uns anos juntamente com Ana Vale, da Universidade do Porto.
O pretexto para se falar da Gruta do Escoural é o Festival Terras Sem Sombra, que no fim de semana passado teve lugar em Montemor e incluiu visita ao monumento nacional, mas fico a saber por António Carlos Silva que o DN está ligado a esta descoberta: "No dia seguinte, a 18 de abril de 1963, há realmente muita gente da aldeia que vem visitar a gruta e o eco vai até longe. Causou algum espanto local. E é nesse dia que o sapateiro da aldeia terá vindo também, como os outros, e telefona para o Diário de Notícias e dá a notícia, e ela sai na edição de 19. O diretor do Museu Nacional de Arqueologia, Manuel Heleno, ao ler em Lisboa o seu jornal da manhã, no seu gabinete, deve ter percebido logo que provavelmente se tratava de uma necrópole neolítica. E porquê? Porque no Alentejo não era vulgar, mas em toda a zona da Estremadura as grutas são abundantes e conhecidas desde o século XIX. E normalmente podiam ter interesse paleolítico - era isso de que se ia à procura - mas, de uma maneira geral, aquilo que as distinguia era o facto de serem necrópoles usadas no neolítico".
Manuel Heleno, também catedrático na Faculdade de Letras, entrou em contacto com os colaboradores, na altura o principal era Farinha dos Santos, seu assistente. "E é ele, o professor Farinha dos Santos, que vai ter que arranjar uma viatura, depois entra em contacto com um arqueólogo, um amador dinamarquês, que vivia em Portugal há bastantes anos, e que costumava dar este tipo de apoio e então chegam aqui perto da uma hora da tarde, ainda no dia 19. Mas antes de partir, contacta a GNR local - havia aqui um posto a sério pois o Escoural era uma aldeia com alguma tradição antifascista - para fazer a proteção da gruta", acrescenta o autor do livro Escoural: Uma gruta pré-histórica no Alentejo, que investigou este monumento nacional.
Técnico do município montemorense, o arqueólogo Carlos Carpetudo tem-se dedicado também ao estudo da gruta e inclusive, com uma impressora 3D, reconstituiu alguns artefactos, desde um crânio humano até a um pote de barro e uma lâmina em pedra. Também tem acompanhado o mapeamento 3D da gruta, que tem 350 metros, o que abre caminho não só a novas possibilidades de estudo como à construção de uma réplica, como em Altamira, em que o local original deixou de ser visitável, para proteção do legado. Na Gruta do Escoural, para já, 20 visitantes no máximo por dia, dez de manhã e dez de tarde. "É sem dúvida algo excecional em Portugal porque é, até hoje, a única gruta conhecida com arte rupestre paleolítica no seu interior. Arte com pelo menos dez mil anos. Aliás, este sítio, o fascinante dele, obviamente, é ter esta arte rupestre do paleolítico, mas também o facto de revelar várias fases de utilização desde há 50 mil anos, primeiro pelo Neandertal. A entrada original não está visitável neste momento, porque apesar de ter entretanto sido desobstruída encontra-se no fundo de um fosso, mas era junto a ela, e através dela, que tudo aconteceu, depois já com o homem moderno, até ficar fechada", diz o arqueólogo camarário.
Esta questão do fecho acresce interesse à gruta. "Ela, ainda não sabemos exatamente por que razão, no final do neolítico é encerrada. Não sabemos se terá sido uma razão natural, se terá sido intencional. Assim, os dois homens que entraram depois da explosão, aquilo com que eles deram foi com uma cápsula do tempo. Estava ali encerrado um contexto arqueológico completamente fora do normal, fechado desde o neolítico médio, há cinco mil anos", sublinha Carlos Carpetudo, com António Carlos Silva a acenar com a cabeça, em sinal de concordância.
Portanto, durante cinco mil anos nenhum ser humano entrou na gruta. Mas logo no primeiro ano de investigação foi possível perceber quão importante era o tesouro nela guardado, a arte das cavernas mais ocidental da Europa. E é então que o DN dá destaque de primeira página a 20 de julho de 1964 à notícia de que "pela primeira vez em Portugal descobriram-se pinturas rupestres", uma reportagem assinada por João Salvado, que acompanhou os trabalhos de Farinha dos Santos, que com as décadas se consolidou como um nome incontornável da arqueologia. Nas páginas interiores, o DN explicava que se tratava de uma "descoberta arqueológica de importância europeia" e que "as pinturas quaternárias aparecidas na gruta do Escoural situam o paleolítico superior português na linha franco-cantábrica", que inclui Altamira e Lascaux.
António Carlos Silva e os colegas não fazem comparações, pois, por exemplo, as pinturas de Altamira são tão excecionais que tardou a serem reconhecidas como paleolíticas. Concordam, porém, no grande valor científico da gruta portuguesa, com as suas pinturas e gravuras de animais , desde auroques a cavalos, uns mais visíveis do que outros, a impressionarem os visitantes do Escoural, mesmo que identificá-las exija esforço. A própria estrutura da gruta, galerias formadas pelas águas subterrâneas, é de grande beleza, aconselhando-se o uso dos capacetes fornecidos à entrada, pois por vezes é preciso todo o cuidado para não se bater nas protuberâncias da rocha.
E por cima da gruta, no topo da colina, o que há? A palavra agora a Rui Mataloto: "Fiz alguns trabalhos no exterior da gruta. Porque, na sequência, enfim, dos reconhecimentos que o próprio Farinha dos Santos fez da necrópole neolítica e dos reconhecimentos que foi fazendo na gruta, desde as gravuras, ele apercebeu-se também de que o exterior, o cerro por cima da gruta, tinha vestígios de ocupação e tinha igualmente, de outra fase, gravuras. Foi sobre essa ocupação que eu fiz trabalhos arqueológicos há uns anos. O monumento não é só a gruta, é também o espaço por cima da gruta. Para permitir uma compreensão mais alargada. Pela raridade, pela escassez, enfim, o conjunto é único. E se hoje é a gruta, pela sua realidade no contexto alentejano, que chama a atenção, no entanto há toda uma realidade, envolvente, que lhe dá uma particularidade única no contexto diria mesmo nacional".
E sim, no topo da colina onde está a gruta, onde noutra era, antes da pedreira, devia haver impressionantes afloramentos de mármore, lá surge uma pequena muralha a comprovar que a ocupação humana manteve-se mesmo depois do tal encerramento da gruta. Há na zona também gravuras neolíticas exteriores. E ainda hoje, talvez por transmissão oral, nota António Carlos Silva, a zona onde está a gruta "chama-se a Herdade da Sala. E sala no Alentejo identifica gruta. Há uma tradição de que há aqui, mas também podia estar associado às minas, porque há minas do século XIX aqui nas imediações. E há mesmo outras até mais antigas. E, portanto, a Herdade da Sala chamar-se assim pode ter a ver não com a gruta em si, mas com essas galerias artificiais".
Sobre a existência de outras grutas por descobrir, a incógnita é de novo muita, como admitem os três arqueólogos. "É possível, mas não se sabe. E até já se fez bastante prospeção na zona", diz António Carlos Silva". Aliás, a serra em que se enquadra a gruta é a Serra de Monfurado. Mas também isso pode ter a ver com as minas", acrescenta Rui Mataloto. Sendo zona de calcários "é natural que existissem outras cavidades, mesmo que de menores dimensões, ainda que com a entradas obstruídas", remata Carlos Carpetudo.
Haja ou não grutas por descobrir e com vestígios do paleolítico, toda a zona entre Montemor e Évora surpreende pela abundância de monumentos pré-históricos, como o Cromeleque dos Almendres, a Anta-Capela de São Brissos, as Antas de Pinheiro do Campo, o Cromeleque da Portela de Mogos, o Cromeleque de Vale Maria e a Anta Grande do Zambujeiro, como se pode ler no livro de António Carlos Silva, que teve a colaboração especial do arqueólogo António Martinho Batista, que num capítulo faz a ligação entre a arte do Escoural e as gravuras hoje famosas do vale do Côa, pois "os criadores rupestres em ambas ambiências eram afinal os mesmos".
Centro Interpretativo da Gruta do Escoural
Rua Dr. Magalhães de Lima, 48; 7050-555 Santiago do Escoural
E-mail: gruta.escoural@cultura-alentejo.gov.pt
Tel: 266 857 000
HORÁRIO
Verão: 09h30-13h00 e 14h30-18h00;
Inverno: 09h00-13h00 e 14h00-17h00
leonidio.ferreira@dn.pt