Gratuitidade nas creches: mais dúvidas que certezas
Há ainda muitas dúvidas sobre a real implementação da medida que entra hoje em vigor. Desde logo a priorização dos critérios de acesso. Mas há uma certeza: os equipamentos são insuficientes para a procura
Entra hoje em vigor a gratuitidade das creches para crianças nascidas a partir de 1 de setembro de 2021 (inclusive) que frequentem creches do setor social e solidário. Uma medida que, como o governo anunciou, vai ser revista em janeiro, prevendo-se eventuais ajustamentos decorrentes do acompanhamento e avaliação efetuados, estando igualmente definido que, até 2024, o aumento do número de creches abrangidas - sendo nesta altura a medida aplicada também às creches privadas. O objetivo é todas as crianças da rede social e solidária manterem a gratuitidade durante os anos que frequentarem a creche.
Relacionados
Em conversa com algumas mães e IPSS o Diário de Notícias encontrou mais perguntas que certezas. Segundo Ana (nome fictício), diretora de uma IPSS do Concelho de Cantanhede, só na quarta-feira a instituição recebeu o documento com informação da gratuitidade, para poder explicar a mesma aos pais. Mas, mais do que o atraso na disponibilização da informação Ana considera que já deveria ter sido dada uma explicação aos pais.
Desde logo a priorização da ordem dos critérios de admissão. Porque a gratuitidade não é para todas as vagas existentes em todas as creches e creches familiares, integradas no sistema de cooperação, bem como das amas do Instituto da Segurança Social (ISS). O estabelecido é que a gratuitidade se estende até ao limite da capacidade autorizada para o estabelecimento, ou seja, ao máximo de vagas autorizadas pelo ISS desde 1 de setembro de 2020. O que significa, explica Ana, que a maioria das creches apenas pode aplicar a gratuitidade dada pelo governo a 80% das vagas existentes - apesar de haver instituições, mais antigas, que têm mais vagas.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Por exemplo, se uma determinada creche dispuser apenas de 32 vagas para a gratuitidade, à partida vai primeiro renovar as inscrições de crianças que frequentem a instituição, que tenham irmãos na instituição... e com isso as vagas começam a diminuir. E pode, perfeitamente, acontecer que a inscrição número 33, apesar de cumprir todos os critérios de acesso à gratuitidade não tenha acesso à mesma. Porque as vagas (da gratuitidade) já estão completas.
E assim surge uma dúvida: mas então basta tentar a sorte numa outra creche, nomeadamente numa privada que, a partir de janeiro do próximo ano, dará a gratuitidade a crianças que comprovadamente não tenham vaga numa creche do setor social e solidário? Acontece, explica Ana, que a creche em questão, se ainda tiver vagas (pagantes), não pode emitir uma declaração em como não tem vagas. Parece confuso? Porque na verdade é.
O conceito geral é de que ninguém deve ser discriminado. Mas, com o Estado apenas a comparticipar 80% das vagas de uma creche, isso significa que a instituição terá de oferecer as restantes 20%? É que estas têm um custo para a entidade. Significa que vai haver pais que, apesar de os filhos terem nascido após 1 de setembro de 2021 (tendo por isso direito à gratuitidade da creche), como só terão acesso a uma vaga extra pelo acordo, vão ter de pagar a respetiva mensalidade? Ou seja, prevê-se alguma contestação.
A indefinição sobre a priorização dos critérios e a provável necessidade (anual) de recálculo da atribuição da gratuitidade está a preocupar pais e instituições. Porque, como aponta Ana, uma criança (de um ano) que no ano passado se enquadrava no direito à gratuitidade pode, agora, deixar de a ter. "Como é que explico isto aos pais?", questiona Ana.
E há ainda um outro problema - embora não afete todas as instituições. O valor do acordo definido pelo governo estabelece o pagamento de 460 euros por criança. Acontece que nalguns pontos do país - Lisboa é um bom exemplo - o custo da creche por vaga é superior a esse valor. Na prática significa que a instituição fica a perder financeiramente.
O que dizem as mães
Ao falar com várias mães, de vários pontos do país, o Diário de Notícias encontrou situações díspares. A maioria das crianças que não teve problemas em conseguir uma vaga - e nomeadamente o acesso à gratuitidade - beneficiaram ou de já ter um irmão(a) na instituição ou de já a frequentarem. Os pais recentes não tiveram tanta sorte.
Soraia Henriques, por exemplo, tentou inscrever, estando ainda grávida, o seu bebé em seis creches de Vila Nova de Gaia e teve "azar" em todos. Esta mãe acredita que todos beneficiariam se o governo oferecesse a mesma mensalidade a quem quisesse ficar com os filhos em casa. O mesmo aconteceu com Mariana Peixoto que, em maio, estando ainda grávida, inscreveu a sua criança em quatro creches. Já Ana Rita teve mais sorte.
E depois há ainda uma outra situação. Se há IPSS que só aceitam a inscrição depois de a criança nascer, há outras que permitem estando a mãe ainda grávida. E depois pode acontecer o que aconteceu a Filipa (nome fictício) que não conseguiu inscrever o seu bebé, porque havia vagas tomadas por bebés ainda por nascer.
Isto vem dificultar uma situação recorrente. A de falta de vagas (na realidade de creches). Um problema muito mencionado pela maioria das mães. "Não existem creches suficientes." "Não há infantários." "É preciso mais creches e berçários públicos." Estas são algumas das frases mais ouvidas. E depois ocorrem situações como a de os pais serem obrigados a pagar metade da mensalidade (de uma creche privada) até o bebé nascer só para manter a vaga.
Mas se há uma preocupação generalizada pela falta de creches e uma ainda maior insatisfação pela dificuldade na obtenção de vagas (principalmente nas de acesso à gratuitidade), também há quem considere que esta é uma má decisão.
Pelo menos uma mãe ouvida pelo DN defendeu o aumento da licença de maternidade ou pelo menos permitir que esta trabalhe a meio tempo. A opinião é a de que cada vez se desvirtualiza mais a importância do papel dos pais e família na sociedade. Ideia que é reforçada pelo facto de a gratuitidade das creches ser paga "por todos nós". Afinal "a segurança social está falida".
As dúvidas existentes podem, em última análise, causar injustiças e provocar insatisfação entre os pais. Porque já se estão a verificar situações "estranhas". Como a de uma mãe que foi obrigada a inscrever a sua filha numa creche privada - a pagar uma mensalidade de 400 euros - estando inserida no escalão 1. E depois há situações caricatas como a criança que, por 3 dias, não teve acesso a esta benesse.
A noção geral é que o conceito, em si, é bom, mas que o plano foi estruturado um pouco "em cima do joelho". Mesmo porque, mais importante do que ter acesso gratuito às creches, é... haver creches. O que se verifica no cenário atual é uma grande falta de equipamentos e de vagas. O que se traduz numa elevada procura e poucas vagas concretizadas.
dnot@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal