Governo ouviu especialistas sobre novo confinamento, maioria prefere reforço de medidas

O governo tem de decidir esta quinta-feira, em reunião do Conselho de Ministros, se vão ser precisas mais medidas para controlar a pandemia. Esteve a ouvir vários especialistas sobre a possibilidade de um novo confinamento, um dos cenários em cima da mesa. Houve quem dissesse sim, mas a maioria prefere o reforço de outras medidas.
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O número de casos de covid-19 continua a aumentar no país. Lisboa e Vale do Tejo mantém-se à frente na propagação da doença, mas agora há também o Grande Porto, que começa a crescer exponencialmente. O receio do que pode vir a acontecer nos serviços de saúde levou o Governo a contactar médicos de várias unidades e vários especialistas de outras áreas para saber o que preveem que possa acontecer em termos de internamentos em enfermarias e nos cuidados intensivos, mas, segundo garantiram ao DN, também quis saber qual a sensibilidade de quem está no terreno sobre a possibilidade de um novo confinamento.

Os contactos foram feitos nos últimos dias e o DN sabe que houve especialistas que disseram sim ao confinamento, mas que a maioria dos contactados disse não. A justificação apresentada pelos especialistas e relatada ao DN parece estar no facto de um novo confinamento ter mais coisas más do que boas e de ser um adiar da solução para o problema.

As mesmas fontes referiram que o Governo continua a trabalhar em vários cenários a nível local e geral e que o confinamento é um dos que está em cima da mesa - apesar de o Presidente da República já ter vindo dizer que com ele tal medida não será possível. Mas há mais cenários como outras medidas restritivas que possam ser acrescentadas às já tomadas em outros concelhos, como a proibição de circular para fora da Área Metropolitana de Lisboa ao fim de semana, redução do horário para o comércio e teletrabalho que voltou a ser obrigatório.

A maioria dos especialistas ouvidos pelas ministras Marta Temido e Mariana Vieira da Silva defendeu que antes de se voltar a chegar a uma situação de confinamento tem de se reforçar o rastreamento, para se quebrar as cadeias de transmissão, a testagem e a vacinação, que deve ser alargada o mais rápido possível a toda a população. "Ninguém quer um novo confinamento. Uma situação destas tem graves consequências e económicas e sociais", justificaram.

Na reunião de hoje do Conselho de Ministros, o Governo irá analisar, mais uma vez, a incidência da doença concelho a concelho para decidir quem fica no mesmo nível de desconfinamento, em alerta ou os que têm de recuar, assumindo medidas mais restritivas, como aconteceu na semana passada com Lisboa, Sesimbra e Albufeira.

Mas esta semana há nova preocupação: o Norte, nomeadamente a zona do Grande do Porto, em que o número de casos está a crescer exponencialmente, como confirmou ao DN o diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva (UAGUMI), do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ), Nelson Pereira. "Nas últimas semanas, para não dizer meses, recebíamos cerca de 40 casos suspeitos nas urgências, e quando digo suspeitos falo de doentes com sintomas respiratórios, com uma taxa de positividade da ordem de um a dois por cento. Nos últimos cinco dias, passámos a receber 60 a 70 por dia e a taxa de positividade passou para 15% a 20 %. Por exemplo, na terça-feira, foi de 23%, o que significa que a onda epidémica está a progredir para a região Norte, pelo menos para o Grande Porto, que é a zona onde está a nossa unidade".

O Governo terá de decidir o que fazer em Lisboa e Vale do Tejo, onde ainda não há sinal de abrandamento da transmissibilidade - basta referir que dos 2362 casos registados ontem, 1336 foram notificados nesta região, que também teve três das quatro mortes ocorridas, a outra foi na ilha da Madeira -, em relação aos dez concelhos que na semana passada ficaram em alerta e ainda sobre o novo foco que é agora o Grande Porto.

Ao que o DN apurou, os especialistas terão dito ao Governo que em termos de internamentos e de cuidados intensivos que ainda é possível gerir a capacidade existente nos hospitais e que o reforço tem de acontecer é na Saúde Pública e nos Cuidados Primários, na testagem e na vacinação. "Só se estas medidas falharem é que devem ser pensadas outras mais restritivas como o confinamento", relataram-nos.

Neste momento, a variante Delta, cuja origem está associada à Índia, bem como uma das suas mutações, a Delta Plus, já são consideradas as de maior risco de transmissibilidade e de maior gravidade, passando assim o impacto da variante Alpha, associada ao Reino Unido. E ambas estão presentes em Portugal e em força - segundo dados oficiais a variante Delta já é responsável por mais de 70% dos casos e deve tornar-se predominante nas próximas semanas. No mundo, Israel, um dos países mais avançados em relação à vacinação, voltou ao confinamento devido a esta variante. O Reino Unido adiou o desconfinamento por mais um mês, devendo começar a abrir a sociedade só a 21 de julho, e outros decidem o que fazer.

A médica pneumologista Raquel Duarte, convidada pelo Governo para elaborar as duas propostas de desconfinamento, a primeira a seguir à terceira onda, em março, e agora para um período mais prolongado, sublinhou ontem ao DN que a mensagem que tem de continuar a passar é de que o vírus continua a circular e que o risco de infeção não passou.

"A pandemia é dinâmica e nesta fase é fundamental que as pessoas continuem a cumprir as regras de proteção. O que se tem observado é que as pessoas vivem agora com um excesso de confiança em relação à pandemia e a realidade não é essa. O risco continua a existir até termos toda a população vacinada. Portanto, é preciso evitar a infeção a todo o custo", apelando mesmo à população que se vacine, que não deixe de o fazer por motivo de férias. "É fundamental que se reforce a vacinação completa e que se alargue este processo o mais rápido possível a toda a população", disse.

Destaquedestaque "É fundamentas que as pessoas continuem a cumprir as medidas de proteção individual que já todos conhecem bem. O uso de máscara diminui o risco, o distanciamento social também e a vacinação também".

Raquel Duarte, que é também coordenadora da Unidade de Investigação da Administração Regional do Norte (ARSN), salienta o facto de estarmos a entrar "num período de grande risco, que é o das férias, e se mantivermos a incidência que registamos agora estamos a correr o risco de levar o vírus para zonas que até estão protegidas". Por isso, "é fundamentas que as pessoas continuem a cumprir as medidas de proteção individual que já todos conhecem bem. O uso de máscara diminui o risco, o distanciamento social também e a vacinação também".

Em relação ao confinamento, a médica defende que "é preciso perceber o que aconteceu para depois se tomar decisões", tal como já o defendeu várias vezes. Agora, refere, "tivemos a entrada de uma nova variante, a Delta, pela zona de Lisboa, que já se sabe que é uma variante de maior transmissibilidade, de maior gravidade e de maior risco de hospitalização. Se tal não está a acontecer é porque a vacinação também o está a evitar, mas quanto à transmissão sabemos que a vacinação não a evita, que há sempre um risco", acrescentando: "Por exemplo, Lisboa e Vale do Tejo é das zonas mais atrasadas na vacinação e também a maior em termos de mobilidade e, neste mês, tivemos dois fins de semana prolongados que levaram à mobilização de pessoas para o Sul e para o Norte. Portanto, é preciso perceber as cadeias de transmissão e avançar o mais rápido possível com a vacinação completa".

A médica lançou mesmo um alerta: "É importante que todas as pessoas façam as duas doses de vacinas, que não as rejeitem ou que não as deixem de fazer só porque estão de férias, porque assim a infeção continuará a existir". Ao mesmo tempo, "é fundamental que continuem a cumprir as regras de proteção individual, como o uso de máscara, o distanciamento e a higienização das mãos". Raquel Duarte lembra, por outro lado, que tais regras devem ser acompanhadas das medidas de saúde pública no terreno, para que assim seja possível travar as cadeias de transmissão, defendendo: "Só se estas medidas falharem é que, então, será preciso refazer alguma coisa, mas o confinamento não pode ser aplicado de imediato ou como algumas pessoas o querem".

A pneumologista reforça ainda, tal como já o fez várias vezes, que estamos a atravessar uma fase em que "a população deve manter as bolhas familiares, laborais e sociais. Portanto, festas? Não. Ou outros eventos de grande dimensão. Se optamos por este tipo de comportamento nunca mais saímos desta situação, estamos a correr mais riscos e a levar o vírus para as nossas bolhas. Isto é o que não pode acontecer. Há regras estabelecidas que têm de continuar a ser cumpridas, só se estas não forem eficazes é que será preciso reajustar as medidas".

Raquel Duarte refere que todos nós devemos ter em mente que "a vacinação diminui o risco, a máscara também e o distanciamento igualmente, mas todas estas medidas sozinhas não funcionam. Têm de ser tomadas em conjunto. São as armas que estão ao nosso dispor. Se as usarmos não seremos infetados".

O médico Nelson Pereira, diretor da UAGUMI do Hospital São João, que nos últimos dias lançou o alerta para a realidade que se está a viver na urgência daquela unidade e que retrata o Grande Porto, disse ao DN que neste momento já há consciência de que a onda epidémica está a progredir para aquela região. "Estamos claramente numa fase da epidemia cuja incidência em número de casos está em crescimento exponencial. Disto, não temos dúvidas".

Para o médico há dois fatores que, conjugados, são mais preocupantes: "Não é só o aumento de casos em número absoluto de doentes suspeitos que temos recebido nas urgências, é sobretudo o constatar que muitos destes são, efetivamente casos de covid, o que significa que a transmissão comunitária está bastante ativa".

Perante esta situação e questionado sobre se deve haver ou não um novo confinamento ou medidas mais restritivas, Nelson Pereira, salvaguardou que há nesta matéria dois pontos de vista: "Um é o da missão hospitalar, e que é a de adaptar a pressão que nos vai chegando. Do ponto de vista da urgência temos o nosso plano de contingência a funcionar e estamos tranquilos. Do ponto de vista dos internamentos e dos cuidados intensivos também estamos com uma expectativa otimista de que não vamos ter a mesma repercussão que tivemos em outras vagas. A nossa capacidade de resposta hospitalar está mais controlada e pensamos que não vai ter grande impacto a curto ou a médio prazo na atividade não covid, onde a responder em grande escala".

O segundo é o ponto de vista mais genérico, o que deve ser feito no país ou na região do Grande Porto, e, aqui, salvaguardando que não gostava muito de se alongar, sublinha que "o impacto em termos de mortalidade é claramente menor neste momento e a tónica deve passar muito pelas pessoas", argumentando que o que se observa agora "é que as pessoas nas últimas semanas acharam que a situação da pandemia estava absolutamente controlada, e não está".

Nelson Pereira explicou mesmo que apesar de haver menos mortalidade, porque a vacinação a está a evitar, haverá sempre um impacto na vida de algumas pessoas, porque há algumas que vão perder a vida. E tudo o que pudermos fazer para alertar a população para os cuidados que tem de continuar a ter, vai contribuir para salvar vidas".

O diretor da UAGUMI chama também a atenção para que todos os que são chamados à vacinação tenham a consciência de que o devem fazer, que os que têm alguns sintomas que não pensem sequer que é uma simples gripe e que vão fazer um teste, porque "também nós podemos travar as cadeias de transmissão". No final, o médico concorda que é preciso que "as estruturas de saúde pública sejam muito efetivas neste momento, porque numa fase de crescimento exponencial, um caso dá origem a vários e o mais importante é conseguir-se acompanhar todos os casos a cada dia que passa. Se há um dia em que estes e os seus contactos não são isolados, estamos a contribuir para que a onda se propague".

Nelson Pereira relembra que, nesta altura, já sabemos que "as medidas restritivas são eficazes, mas têm um custo económico e social muito elevado, por isso ainda é mais necessário que as medidas de saúde pública estejam a funcionar e que travem as cadeias de transmissão. Se falharmos aqui, corremos o risco de a transmissão aumentar ainda mais".

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