É com uma pintura de grandes figuras do século XIX, de Garrett a Herculano passando pelo primeiro duque de Palmela, como pano de fundo que me sento a conversar com Khalid Jamal no bar do Grémio Literário, instituição cheia de pergaminho como poucas mais há em Lisboa, reservada a sócios e seus convidados. É pois com Khalid como anfitrião que decorre este improvisado brunch - um bule com chá de menta e umas pequenas sandes com queijo da serra. Muçulmano praticante, Khalid não bebe álcool e faz questão de esclarecer, no momento do pedido que, para ele, nem pensar em acrescentar sandes com fiambre ou presunto. Mas o mais curioso, e que serve de ponto de partida para a conversa com este empresário que é também dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa, é que estamos a comer numa quarta-feira às 11 da manhã, mas no sábado da publicação da conversa tal não seria possível por que começou o Ramadão.."Observo o Ramadão em tudo o que me é permitido observar, os chamados mínimos olímpicos, mas que vão muito além do que um português poderia fazer se não tivesse a religião como um dos pilares da sua vida. Eu, por acaso, não só sou um crente convicto como tenho algumas responsabilidades na comunidade. Tirando essas responsabilidades, jejuo, levanto-me cedo para fazer uma refeição pré-jejum, jejuo o dia todo, faço as cinco orações diárias e ainda faço uma à noite, facultativa. Depois do pôr do Sol acontece a refeição principal. O Ramadão é um mês muito intenso na medida em que passo boa parte do meu dia, excetuando os intervalos entre as orações em que estou a trabalhar, dedicado a deus e à minha espiritualidade", explica Khalid, que conheço há alguns anos, daí estar a tratá-lo pelo primeiro nome. Foi com ele, num almoço no JNCQuoi com o embaixador do Qatar para conversar sobre o Mundial de Futebol e não só, que percebi quão refrescante pode ser um sumo de tomate temperado com sal e pimenta..Enquanto mordiscamos uma sandes, pergunto se no Ramadão os almoços de trabalho, ou até os brunches, são mesmo para esquecer? "Para esquecer completamente. Há outras matérias da minha religião em que estaria disposto a fazer concessões, no Ramadão não. Há quem ache que o Ramadão é uma época sacrificante, mas para mim não, é o meu mês favorito, o meu Natal. É um mês em que me encontro com Deus, em que reforço a minha fé e que para mim é um mês de rejubilo a todos os níveis"..Khalid nasceu em Lisboa, mas a família veio de Moçambique e tem raízes na Índia, no estado do Gujarate, que me recorda ser terra de gente empreendedora, e onde nasceu o Mahatma Gandhi e também o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Com 36 anos, cursou Direito pela Universidade Católica de Lisboa, divide-se entre as atividades profissionais (em boa parte no grupo JAO fundado pelo pai), na colaboração recente com a AESE Business School e pelos cargos ligados à comunidade islâmica e ainda por uma série de iniciativas relacionadas com a defesa da imagem o islão, como o projeto Reset em que conheceu a mulher, uma argelina educada em França e cidadã do mundo, como ele. Garante nunca ter tido dificuldades em conciliar a identidade portuguesa com a herança muçulmana: "Nunca senti contradição. Gosto de usar a expressão de que sou um português que professa a religião islâmica. Não sou um muçulmano português porque não seria justo para com a minha pátria dizer que sou mais muçulmano do que português, nem o contrário. Nasci e cresci em Portugal, é aqui que me sinto bem, não quero ir viver para o estrangeiro e costumo brincar e dizer que se tivesse de prestar serviço militar seria sob a bandeira portuguesa e não sob a de qualquer país de maioria islâmica. A religião, naquilo que é uma construção moderna, é uma extensão da minha personalidade, mas mais não é do que aquilo que quero que ela seja. Procuro sempre não impô-la em esfera pública e depois conservá-la dentro de quatro paredes, não destruindo a minha identidade e praticando-a com respeito pela maioria que em Portugal não é muçulmana, é preciso não esquecer"..Tendo em conta que Khalid era um adolescente quando aconteceram os atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas, percebe-se que passou grande parte da vida a ouvir a tese do choque de civilizações e do suposto conflito entre o mundo islâmico e o Ocidente. E tem refletido muito sobre isso, ele que até já fez a peregrinação a Meca, um dos cinco pilares do islão, obrigatória uma vez na vida para qualquer muçulmano que tenha meios e saúde. "Não tenho dúvidas de que o Islão é incompreendido. Mea culpa dos próprios muçulmanos que não fazem este exercício de virem a público explicar a sua religião, estão muitas vezes na sua zona de conforto, uns não têm capacidade, aptidão, à vontade ou vontade de falar do Islão em praça pública, mas acho que os muçulmanos moderados, como é o meu caso, devem ser capazes de explicar a sua fé, até para que o justo não pague pelo pecador". Sobre o facto de haver 1500 milhões de muçulmanos no mundo, quase tantos como os cristãos ou pouco mais do que os hindus, e tantas vezes o terrorismo ser praticado por alguém que se reclama dessa religião, Khalid tem também pensado muito, ele que se confessa um estudante voraz, que não se quer limitar ao óbvio: "Não é uma justificação, mas há um aspeto cronológico que é importante realçar: o Islão tem 1400 anos de história, o cristianismo tem 2000. Portanto o Islão está a passar por uma fase de transformação, está a ser posto à prova e a criar a sua própria maturidade. O segundo aspeto é que o Islão é diferente das outras religiões, e a sua singularidade vem também da sua exigência e os muçulmanos não têm qualquer tipo de prurido com a exigência a que a religião convoca. O Ramadão e o jejum não são negociáveis para nós. Há pouco lugar no Islão para aquele que não pratica. O Islão é sedutor também pela exigência a que convoca e essa exigência é muitas vezes confundida com extremismo. Posso praticar a minha religião sem a pôr acima de qualquer coisa ou sobrepô-la a outros aspetos da minha vida. Depois há o facto de a nossa religião estar associada a uma comunidade mundial pouco letrada nos tempos modernos, porque o Islão atingiu o seu apogeu especialmente aqui no Al-Andaluz e noutras épocas em que havia uma intelectualidade própria. Não nos esqueçamos que os árabes quando entraram na Península Ibérica trouxeram uma série de evoluções e conhecimento. A civilização árabe, não necessariamente islâmica mas também, porque todos os árabes são tendencialmente muçulmanos mas nem todos os muçulmanos são árabes, atingiu o apogeu e entrou em declínio. Faz falta intelectualidade ao mundo islâmico moderno para perceber o que é a sua religião e para perceber que esta religião, ao fim ao cabo, é compatível com uma vida quotidiana cosmopolita. A religião não pode ser imposta pela força, tem de ser voluntarista, não há religião sob coação, e se a religião anular o cidadão lisboeta e cosmopolita, então não quero ser muçulmano. Só quero ser muçulmano na medida em que esse Islão é compatível com o que eu sou"..Tínhamos começado a conversa, enquanto esperávamos para ver que brunch de última da hora seria possível no bar do Grémio Literário, por falar um pouco da guerra da Ucrânia, da tomada de posse do novo governo de António Costa, também das recentes traduções de Os Lusíadas para o árabe, a língua do Alcorão, e para o turco, outra grande língua do islão. E Khalid diz-me: "Gosto bastante de ler Os Lusíadas porque acho uma grande referência da nossa nação. Os factos da história estão lá todos e Camões retratava Portugal como a cabeça da Europa, tinha ali uns laivos de auto lisonja que porventura hoje se poderão considerar excessivos, mas que exaltam as glórias da nossa pátria e tal, é amplamente motivador. Camões acaba por ser uma das minhas grandes referências por retratar a História desta bela nação na qual nasci e com a qual me identifico plenamente"..E sobre ser cidadão de um país com quase mil anos, nascido da Reconquista, que depois fez um império em busca de cristãos e de especiarias, e hoje acolhe tanta diversidade, como os gujaratis, onde coexistem muçulmanos sunitas como ele, mas também ismaelitas e hindus, Khalid responde: "Gosto de olhar para o fenómeno da minha portugalidade de uma forma integradora e este mosaico de culturas e esta esquizofrenia cultural que encontro na minha pessoa, essa diversidade é uma riqueza. A grande diferença entre Portugal e os outros países é que as pessoas olham para nós com um carinho enorme, quer estejamos a falar de África, ou da Índia. Onde quer que eu vá, quando anuncio meu nome este transporta-nos o horizonte imaginário logo para o mundo árabe, especialmente para o Golfo Pérsico. Portanto, quando digo que sou português as pessoas normalmente sorriem. Este retângulo à beira-mar plantado conseguiu inculcar além-fronteiras um fenómeno de miscigenação, autenticidade no trato, à vontade e liberdade que outras potências colonizadoras não conseguiram"..E garante nunca ter sido discriminado por ser um português muçulmano: "Já disse várias vezes, até porque nós como comunidade temos essa pretensão e gostaríamos de estar vigilantes a casos em que possa haver discriminação religiosa, eu nunca vi. Já me foram denunciados casos mas rapidamente vi que havia alguma carência, vulnerabilidade e exagero por parte dos intervenientes. Portanto, não vou dizer que é uma folha imaculada, mas praticamente é. Em tantos anos de direção de comunidade, nunca vi nenhum caso de discriminação religiosa. O mesmo não é dizer que não há casos de discriminação étnica. Mas o cenário muito positivo resulta de duas coisas: de Portugal e dos portugueses. Somos um país que acolhe bem., integramos bem, não diferenciamos e não criamos rótulos, é o melhor que Portugal tem. Os migrantes sentem-se cá bem. Por outro lado, no caso dos muçulmanos, é produto de uma linha que a comunidade islâmica portuguesa tem que é de não tentar impor a sua religiosidade fora destas quatro paredes e não achar que a sua religião é melhor que a dos outros"..Neste seu compromisso com Portugal, Khalid teve um momento muito especial, que foi uma passagem pela diplomacia, e logo nas Nações Unidas, no ano em que o antigo primeiro-ministro António Guterres se candidatou a secretário-geral da organização que reúne 193 países. "Sempre tive o sonho antigo de ser diplomata. Na altura havia uma possibilidade para ir para Nova Iorque ao abrigo de um estágio do MNE e foi o que fiz. Candidatei-me para ir para a missão permanente de Portugal junto da ONU e coincidiu com a candidatura do engenheiro Guterres e por isso a missão teve um papel importante nessa candidatura e eu estive a acompanhar a quarta comissão - estamos a falar do Conselho de Segurança, que é onde se passam as coisas e onde está instalado o poder da ONU, e tive o privilégio de lidar com matérias e pastas muito importantes para a comunidade islâmica, nomeadamente o conflito do Sara e o conflito israelo-palestiniano. Foi uma experiência muito enriquecedora porque conheci muitas pessoas, porventura de países inóspitos que de outra forma não conheceria, ainda mais naquele contexto de uma cidade global como Nova Iorque. Foi muito enriquecedor na medida em que se diz que um diplomata não é verdadeiramente um diplomata se não tiver estado na ONU, e depois porque a ONU é um posto de observação muito interessante da diplomacia mundial. Entretanto, o sonho caiu por terra, mas foi uma experiência muito interessante", relembra..O meu primeiro contacto com Khalid veio de uma reportagem no DN sobre um programa na Antena 1 em que era o muçulmano que conversava com um cristão e um judeu. Foi a jornalista Ana Mafalda Inácio que fez essa reportagem sobre os participantes no E Deus Criou o Mundo e me desafiou, enquanto parte da direção do DN, a convidá-lo para um artigo de opinião (no currículo destaca que o primeiro artigo num jornal foi mesmo no DN!). Agora, na TSF, Khalid participa num programa diário intitulado Que Mundo Meu Deus, em que conversa com Miriam Assor e João Paiva, com Abraão como ponto de união, por ser o profeta de quem descendem as três grandes religiões monoteístas. Pergunto a Khalid se este papel nos media o faz sentir-se um pouco embaixador da comunidade islâmica em Portugal: "Seria um bocado vaidoso auto-proclamar-me embaixador da comunidade, ainda assim gosto de pensar que os mais jovens me veem como alguém que os inspira a saírem das suas zonas de conforto e do seu casulo e irem para fora, para a sociedade em geral, integrando-se naquilo que é Portugal". Também convida quem quiser a conhecer a Mesquita de Lisboa: "tem as portas abertas para todos"..leonidio.ferreira@dn.pt
É com uma pintura de grandes figuras do século XIX, de Garrett a Herculano passando pelo primeiro duque de Palmela, como pano de fundo que me sento a conversar com Khalid Jamal no bar do Grémio Literário, instituição cheia de pergaminho como poucas mais há em Lisboa, reservada a sócios e seus convidados. É pois com Khalid como anfitrião que decorre este improvisado brunch - um bule com chá de menta e umas pequenas sandes com queijo da serra. Muçulmano praticante, Khalid não bebe álcool e faz questão de esclarecer, no momento do pedido que, para ele, nem pensar em acrescentar sandes com fiambre ou presunto. Mas o mais curioso, e que serve de ponto de partida para a conversa com este empresário que é também dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa, é que estamos a comer numa quarta-feira às 11 da manhã, mas no sábado da publicação da conversa tal não seria possível por que começou o Ramadão.."Observo o Ramadão em tudo o que me é permitido observar, os chamados mínimos olímpicos, mas que vão muito além do que um português poderia fazer se não tivesse a religião como um dos pilares da sua vida. Eu, por acaso, não só sou um crente convicto como tenho algumas responsabilidades na comunidade. Tirando essas responsabilidades, jejuo, levanto-me cedo para fazer uma refeição pré-jejum, jejuo o dia todo, faço as cinco orações diárias e ainda faço uma à noite, facultativa. Depois do pôr do Sol acontece a refeição principal. O Ramadão é um mês muito intenso na medida em que passo boa parte do meu dia, excetuando os intervalos entre as orações em que estou a trabalhar, dedicado a deus e à minha espiritualidade", explica Khalid, que conheço há alguns anos, daí estar a tratá-lo pelo primeiro nome. Foi com ele, num almoço no JNCQuoi com o embaixador do Qatar para conversar sobre o Mundial de Futebol e não só, que percebi quão refrescante pode ser um sumo de tomate temperado com sal e pimenta..Enquanto mordiscamos uma sandes, pergunto se no Ramadão os almoços de trabalho, ou até os brunches, são mesmo para esquecer? "Para esquecer completamente. Há outras matérias da minha religião em que estaria disposto a fazer concessões, no Ramadão não. Há quem ache que o Ramadão é uma época sacrificante, mas para mim não, é o meu mês favorito, o meu Natal. É um mês em que me encontro com Deus, em que reforço a minha fé e que para mim é um mês de rejubilo a todos os níveis"..Khalid nasceu em Lisboa, mas a família veio de Moçambique e tem raízes na Índia, no estado do Gujarate, que me recorda ser terra de gente empreendedora, e onde nasceu o Mahatma Gandhi e também o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Com 36 anos, cursou Direito pela Universidade Católica de Lisboa, divide-se entre as atividades profissionais (em boa parte no grupo JAO fundado pelo pai), na colaboração recente com a AESE Business School e pelos cargos ligados à comunidade islâmica e ainda por uma série de iniciativas relacionadas com a defesa da imagem o islão, como o projeto Reset em que conheceu a mulher, uma argelina educada em França e cidadã do mundo, como ele. Garante nunca ter tido dificuldades em conciliar a identidade portuguesa com a herança muçulmana: "Nunca senti contradição. Gosto de usar a expressão de que sou um português que professa a religião islâmica. Não sou um muçulmano português porque não seria justo para com a minha pátria dizer que sou mais muçulmano do que português, nem o contrário. Nasci e cresci em Portugal, é aqui que me sinto bem, não quero ir viver para o estrangeiro e costumo brincar e dizer que se tivesse de prestar serviço militar seria sob a bandeira portuguesa e não sob a de qualquer país de maioria islâmica. A religião, naquilo que é uma construção moderna, é uma extensão da minha personalidade, mas mais não é do que aquilo que quero que ela seja. Procuro sempre não impô-la em esfera pública e depois conservá-la dentro de quatro paredes, não destruindo a minha identidade e praticando-a com respeito pela maioria que em Portugal não é muçulmana, é preciso não esquecer"..Tendo em conta que Khalid era um adolescente quando aconteceram os atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas, percebe-se que passou grande parte da vida a ouvir a tese do choque de civilizações e do suposto conflito entre o mundo islâmico e o Ocidente. E tem refletido muito sobre isso, ele que até já fez a peregrinação a Meca, um dos cinco pilares do islão, obrigatória uma vez na vida para qualquer muçulmano que tenha meios e saúde. "Não tenho dúvidas de que o Islão é incompreendido. Mea culpa dos próprios muçulmanos que não fazem este exercício de virem a público explicar a sua religião, estão muitas vezes na sua zona de conforto, uns não têm capacidade, aptidão, à vontade ou vontade de falar do Islão em praça pública, mas acho que os muçulmanos moderados, como é o meu caso, devem ser capazes de explicar a sua fé, até para que o justo não pague pelo pecador". Sobre o facto de haver 1500 milhões de muçulmanos no mundo, quase tantos como os cristãos ou pouco mais do que os hindus, e tantas vezes o terrorismo ser praticado por alguém que se reclama dessa religião, Khalid tem também pensado muito, ele que se confessa um estudante voraz, que não se quer limitar ao óbvio: "Não é uma justificação, mas há um aspeto cronológico que é importante realçar: o Islão tem 1400 anos de história, o cristianismo tem 2000. Portanto o Islão está a passar por uma fase de transformação, está a ser posto à prova e a criar a sua própria maturidade. O segundo aspeto é que o Islão é diferente das outras religiões, e a sua singularidade vem também da sua exigência e os muçulmanos não têm qualquer tipo de prurido com a exigência a que a religião convoca. O Ramadão e o jejum não são negociáveis para nós. Há pouco lugar no Islão para aquele que não pratica. O Islão é sedutor também pela exigência a que convoca e essa exigência é muitas vezes confundida com extremismo. Posso praticar a minha religião sem a pôr acima de qualquer coisa ou sobrepô-la a outros aspetos da minha vida. Depois há o facto de a nossa religião estar associada a uma comunidade mundial pouco letrada nos tempos modernos, porque o Islão atingiu o seu apogeu especialmente aqui no Al-Andaluz e noutras épocas em que havia uma intelectualidade própria. Não nos esqueçamos que os árabes quando entraram na Península Ibérica trouxeram uma série de evoluções e conhecimento. A civilização árabe, não necessariamente islâmica mas também, porque todos os árabes são tendencialmente muçulmanos mas nem todos os muçulmanos são árabes, atingiu o apogeu e entrou em declínio. Faz falta intelectualidade ao mundo islâmico moderno para perceber o que é a sua religião e para perceber que esta religião, ao fim ao cabo, é compatível com uma vida quotidiana cosmopolita. A religião não pode ser imposta pela força, tem de ser voluntarista, não há religião sob coação, e se a religião anular o cidadão lisboeta e cosmopolita, então não quero ser muçulmano. Só quero ser muçulmano na medida em que esse Islão é compatível com o que eu sou"..Tínhamos começado a conversa, enquanto esperávamos para ver que brunch de última da hora seria possível no bar do Grémio Literário, por falar um pouco da guerra da Ucrânia, da tomada de posse do novo governo de António Costa, também das recentes traduções de Os Lusíadas para o árabe, a língua do Alcorão, e para o turco, outra grande língua do islão. E Khalid diz-me: "Gosto bastante de ler Os Lusíadas porque acho uma grande referência da nossa nação. Os factos da história estão lá todos e Camões retratava Portugal como a cabeça da Europa, tinha ali uns laivos de auto lisonja que porventura hoje se poderão considerar excessivos, mas que exaltam as glórias da nossa pátria e tal, é amplamente motivador. Camões acaba por ser uma das minhas grandes referências por retratar a História desta bela nação na qual nasci e com a qual me identifico plenamente"..E sobre ser cidadão de um país com quase mil anos, nascido da Reconquista, que depois fez um império em busca de cristãos e de especiarias, e hoje acolhe tanta diversidade, como os gujaratis, onde coexistem muçulmanos sunitas como ele, mas também ismaelitas e hindus, Khalid responde: "Gosto de olhar para o fenómeno da minha portugalidade de uma forma integradora e este mosaico de culturas e esta esquizofrenia cultural que encontro na minha pessoa, essa diversidade é uma riqueza. A grande diferença entre Portugal e os outros países é que as pessoas olham para nós com um carinho enorme, quer estejamos a falar de África, ou da Índia. Onde quer que eu vá, quando anuncio meu nome este transporta-nos o horizonte imaginário logo para o mundo árabe, especialmente para o Golfo Pérsico. Portanto, quando digo que sou português as pessoas normalmente sorriem. Este retângulo à beira-mar plantado conseguiu inculcar além-fronteiras um fenómeno de miscigenação, autenticidade no trato, à vontade e liberdade que outras potências colonizadoras não conseguiram"..E garante nunca ter sido discriminado por ser um português muçulmano: "Já disse várias vezes, até porque nós como comunidade temos essa pretensão e gostaríamos de estar vigilantes a casos em que possa haver discriminação religiosa, eu nunca vi. Já me foram denunciados casos mas rapidamente vi que havia alguma carência, vulnerabilidade e exagero por parte dos intervenientes. Portanto, não vou dizer que é uma folha imaculada, mas praticamente é. Em tantos anos de direção de comunidade, nunca vi nenhum caso de discriminação religiosa. O mesmo não é dizer que não há casos de discriminação étnica. Mas o cenário muito positivo resulta de duas coisas: de Portugal e dos portugueses. Somos um país que acolhe bem., integramos bem, não diferenciamos e não criamos rótulos, é o melhor que Portugal tem. Os migrantes sentem-se cá bem. Por outro lado, no caso dos muçulmanos, é produto de uma linha que a comunidade islâmica portuguesa tem que é de não tentar impor a sua religiosidade fora destas quatro paredes e não achar que a sua religião é melhor que a dos outros"..Neste seu compromisso com Portugal, Khalid teve um momento muito especial, que foi uma passagem pela diplomacia, e logo nas Nações Unidas, no ano em que o antigo primeiro-ministro António Guterres se candidatou a secretário-geral da organização que reúne 193 países. "Sempre tive o sonho antigo de ser diplomata. Na altura havia uma possibilidade para ir para Nova Iorque ao abrigo de um estágio do MNE e foi o que fiz. Candidatei-me para ir para a missão permanente de Portugal junto da ONU e coincidiu com a candidatura do engenheiro Guterres e por isso a missão teve um papel importante nessa candidatura e eu estive a acompanhar a quarta comissão - estamos a falar do Conselho de Segurança, que é onde se passam as coisas e onde está instalado o poder da ONU, e tive o privilégio de lidar com matérias e pastas muito importantes para a comunidade islâmica, nomeadamente o conflito do Sara e o conflito israelo-palestiniano. Foi uma experiência muito enriquecedora porque conheci muitas pessoas, porventura de países inóspitos que de outra forma não conheceria, ainda mais naquele contexto de uma cidade global como Nova Iorque. Foi muito enriquecedor na medida em que se diz que um diplomata não é verdadeiramente um diplomata se não tiver estado na ONU, e depois porque a ONU é um posto de observação muito interessante da diplomacia mundial. Entretanto, o sonho caiu por terra, mas foi uma experiência muito interessante", relembra..O meu primeiro contacto com Khalid veio de uma reportagem no DN sobre um programa na Antena 1 em que era o muçulmano que conversava com um cristão e um judeu. Foi a jornalista Ana Mafalda Inácio que fez essa reportagem sobre os participantes no E Deus Criou o Mundo e me desafiou, enquanto parte da direção do DN, a convidá-lo para um artigo de opinião (no currículo destaca que o primeiro artigo num jornal foi mesmo no DN!). Agora, na TSF, Khalid participa num programa diário intitulado Que Mundo Meu Deus, em que conversa com Miriam Assor e João Paiva, com Abraão como ponto de união, por ser o profeta de quem descendem as três grandes religiões monoteístas. Pergunto a Khalid se este papel nos media o faz sentir-se um pouco embaixador da comunidade islâmica em Portugal: "Seria um bocado vaidoso auto-proclamar-me embaixador da comunidade, ainda assim gosto de pensar que os mais jovens me veem como alguém que os inspira a saírem das suas zonas de conforto e do seu casulo e irem para fora, para a sociedade em geral, integrando-se naquilo que é Portugal". Também convida quem quiser a conhecer a Mesquita de Lisboa: "tem as portas abertas para todos"..leonidio.ferreira@dn.pt