O que passa pela cabeça do forcado, no momento em que salta as tábuas, sabendo que, em segundos, estará perante um animal de força hercúlea? Pedro Maria Gomes, cabo dos Forcados Amadores de Lisboa, não consegue dar um nome a essa motivação ou sentimento, apenas sabe que, depois de sofrer uma grave colhida na Malveira, voltou às arenas porque essa coisa inominável foi mais forte do que o medo. Aconteceu em 2007, três anos depois da colhida que o deixou entre a vida e a morte, a que só escapou depois de quatro operações em seis dias e uma amputação de parte do fígado. “Há medo? Há, mas a satisfação de estarmos juntos e sermos parte do espetáculo fala mais alto.”.Pedro Maria Gomes, neto de matador de touros e filho de outro histórico cabo do grupo, José Luís Gomes, fala com visível orgulho dos feitos dos Forcados de Lisboa, dos quais passou a fazer parte como praticante aos 16 anos (hoje tem 43). E é com prazer que antecipa a corrida de sexta-feira, no Campo Pequeno, em que se assinalarão os 80 anos de fundação dos Forcados Amadores de Lisboa: “É uma homenagem a uma instituição por onde passaram centenas de homens e tem tudo para ser um momento muito bonito, porque descerão à arena, para as cortesias, os nossos forcados de várias gerações, devidamente trajados.”.A esse momento somar-se-á a homenagem que a Praça do Campo Pequeno decidiu fazer a José Luís Gomes, cabo histórico do grupo e, como já vimos, pai e figura inspiracional de Pedro..O Museu do Toureiro, em Lisboa. (Leonardo Negrão).A história que será lembrada na arena começou há precisamente 80 anos, no verão de 1944. Numa Lisboa em que o Campo Pequeno ainda tinha um toque rural, distante do burburinho do Chiado e do Terreiro do Paço, um grupo de miúdos passava as tardes a brincar às touradas. Entre eles, estava um puto de 14 anos chamado Nuno Salvação Barreto..Como nos conta Pedro Maria Gomes, “foi a ele que escolheram para líder dos Forcados Amadores de Lisboa, apesar de ser o mais novo do grupo de amigos.” Não se enganaram quanto às capacidades de liderança do rapaz. .Salvação Barreto foi cabo do grupo durante 48 anos, ao longo dos quais andou, ele e os companheiros de jaqueta, nas bocas do mundo: em Hollywood, no filme Quo Vadis (1951) - em que usou a sua arte para “salvar” a personagem de Deborah Kerr de uma fera no Coliseu de Roma-, mas também nas principais feiras de Espanha e em França, onde, também como empresário de praças, foi o grande responsável pela introdução da corrida à portuguesa. “Até aí só existia tourada à espanhola”, recorda ainda Pedro Gomes..Desde menino que o atual cabo do grupo ouviu muitas histórias de Nuno, que ainda conheceu, embora fosse criança quando ele deixou as praças. Mas há muito mais protagonistas neste percurso. Como José Luís Gomes, a quem o fundador passou o testemunho, em 1992. .Ou outras histórias, marcadas pela tragédia, para nos lembrar que a vida de forcado é um contínuo bailado com a morte: “Recordamos o Domingos Barroca, que era de Benavente, que foi colhido com muita gravidade e ficou com sequelas até ao final da vida. Ou Carlos Ramalhinho, que perdeu uma vista, por causa de uma bandarilha.”.Apesar dos riscos (e da quebra de popularidade da tauromaquia nos últimos anos), Pedro não teme pelo futuro da sua arte: “Existem, no nosso grupo, mais 4 ou 5 forcados com um historial familiar neste espetáculo, mas continuamos a receber miúdos que vêm por causa de um amigo que está no grupo. E também espontâneos. Alguns contactam-nos e tornam-se mesmo bons forcados.”.O que, acrescenta, exige mais do que conseguir olhar de frente para uma força da natureza, qualquer coisa como 80 quilos de homem a desafiar perto de 500 quilos de animal, de olhos em alvo: “Este trabalho exige-nos um espírito muito gregário, o que nos leva a desenvolver valores como o companheirismo, a humildade e a lealdade. Na praça, temos de estar coordenados e funcionar como uma equipa, porque, a partir do momento em que saltamos as tábuas, já não há volta a dar.”.Ao cabo, como ele é, exige-se ainda capacidade de liderança, em função dos homens que tem no grupo e das características de cada animal, “sempre diferente e imprevisível”, como frisa: “Isto não é uma ciência exata, mas temos de perceber qual é o melhor forcado para liderar determinada pega, em função do momento pessoal de cada um, da praça e do touro. São escolhas delicadas, que mexem com os egos de cada um, mas é como em qualquer equipa, seja numa modalidade desportiva, seja numa empresa. Aqui não há estrelas, a única estrela é o próprio grupo.”.Engenheiro alimentar de profissão, Pedro Maria Gomes assegura que, entre os seus, “há o máximo respeito pelo touro, que é um animal lindo e imponente, tanto na arena, como no campo, onde está sempre muito atento a quem se aproxima do seu território. Cada um tem a sua personalidade e, a esse propósito, costumo dizer que, de touros, ninguém sabe. Nem as vacas, que são as mães deles.”.Não obstante a paixão que o move desde miúdo, diz respeitar a opinião dos ativistas antitourada. Desde que estes tratem com o mesmo respeito a sua opção de vida.