"Foi dada uma machadada no princípio de equidade e transparência no acesso ao ensino superior"

Antigo ministro da Educação e membro do think tank Edulog, David Justino, vice-presidente do PSD, fala sobre as Autárquicas 2021 e diz que as consequências da pandemia no ensino vão perdurar vários anos.

Que retrato faz do estado da educação em Portugal?
Pouco animador. Estou seriamente preocupado com o balanço que faço dos seis anos da governação da atual equipa do Ministério da Educação. Identifica-se uma clara rutura com as grandes linhas de política educativa que foram desenvolvidas nas duas décadas anteriores. Independentemente da sucessão de ministros, uns mais à esquerda outros mais à direita, houve continuidade de um conjunto de políticas que permitiram, de forma sustentada, melhorar os indicadores de desempenho dos alunos e do sistema educativo português. Dou-lhe como exemplos a valorização das vias profissionalizantes, o alargamento da escolaridade obrigatória, o reordenamento da rede escolar ou a existência de provas de avaliação externa no final de cada ciclo, entre tantas outras. Foi essa continuidade que permitiu tirar Portugal da cauda dos países da OCDE para o colocar na média, foram essas medidas que permitiram reduzir de forma sustentada o abandono escolar precoce e reduzir as desigualdades educativas. Ora, essa continuidade foi interrompida a partir de 2015. Tentei chamar a atenção para o que se estava a passar enquanto fui presidente do Conselho Nacional de Educação, mas os meus alertas foram entendidos como meras manifestações de oposição ao governo, o que não é verdade. Antevi o que se viria a passar e, passados quase seis anos, não me surpreende o estado a que chegámos.

E que análise faz à gestão da educação em tempo de pandemia?
É reconhecido que o último ano de pandemia teve consequências que irão perdurar por vários anos. Não é algo de passageiro. As sequelas vão sentir-se ao longo desta década. A atual equipa tem uma atenuante: ninguém sabia, para sermos honestos, como lidar de forma eficaz com esta pandemia. É algo para que ninguém estava preparado ou tinha soluções reconhecidas. É natural que durante os primeiros seis meses se tivessem cometido erros. Quem não os cometeria? Mas depois disso, julgo que houve imprevidência, teimosia e algum autismo político. Felizmente, a maior parte das escolas e dos profissionais tiveram um comportamento exemplar. Foram eles que seguraram e evitaram um potencial descalabro do sistema de ensino. Mas quando faltam recursos, não há milagres. O caso dos meios informáticos veio destapar a realidade: durante vários anos não se fez qualquer investimento neste tipo de recursos. Havia escolas que ainda estavam a utilizar equipamentos distribuídos ao abrigo das Salas TIC e do Plano Tecnológico para a Educação. A rede de banda larga estava obsoleta e a sua cobertura era muito deficiente. Como disse, nestas situações não há milagres.

o último ano de pandemia teve consequências que irão perdurar por vários anos. Não é algo de passageiro

Que impacto pensa que a pandemia deixará no ensino?
Começo por algo que tem sido muito pouco falado. A importância do ensino presencial ficou demonstrada. A ideia utópica de um ensino mediado pela tecnologia, dispensando a escola, a sala de aula e, mais importante, o papel do professor sofreu um forte abalo. A aprendizagem é muito mais do que o acesso e a transmissão de conhecimento: é interação social, é o aprender em conjunto, é interiorizar um conjunto de regras e maneiras de pensar que não está ao alcance das tecnologias. O fundamental é a relação humana e o professor tem um papel decisivo. Mas o principal impacto da pandemia exerceu-se sobre a aprendizagem. Essa é a mais importante ferida que está por sarar e, como disse atrás, vai levar muito tempo a dissipá-la, sendo provável que fiquem algumas cicatrizes. Não esquecer que todos os trajetos educativos assentam na sequencialidade curricular. Se essa sequencialidade é interrompida ou fragilizada os passos subsequentes irão ser afetados.

"A importância do ensino presencial ficou demonstrada. A ideia utópica de um ensino mediado pela tecnologia, dispensando a escola, a sala de aula e, mais importante, o papel do professor sofreu um forte abalo."

Especialistas alertam para uma grande falta de professores, sendo que alguns grupos de recrutamento já estão com carência de docentes. Como se resolve a questão?
Não temos alternativa: tornar a profissão mais atrativa. Mas isto, como é característico em educação, leva anos. Não há medidas mágicas para que os mais jovens entendam a profissão docente como algo de atrativo e socialmente reconhecido. Até lá temos de gerir melhor os recursos docentes que existem no sistema. A tentação mais perigosa é a de voltarmos a aligeirar os requisitos para se ser professor. Por isso teremos de ser mais exigentes e recompensar essa exigência com maiores benefícios e condições de trabalho para os professores. Percebe agora as consequências de reduzir drasticamente o número de alunos por turma? Se o fizermos, vamos criar mais turmas e depois não temos professores suficientes para as lecionar. Uma boa gestão de recursos humanos em educação pressupõe um planeamento minucioso e a longo prazo. Não se compadece nem com voluntarismos nem com medidas avulsas.

A tentação mais perigosa é a de voltarmos a aligeirar os requisitos para se ser professor

Concorda com o plano apresentado para recuperação de aprendizagens?
Tem algumas medidas interessantes, mas revela dois pecados mortais. Um é encher o plano com mais não sei quantos milhões de euros para equipamentos, quando todo o processo de recuperação das aprendizagens está dependente de um maior esforço pedagógico e de um bom planeamento. Só que esse planeamento torna-se impossível de concretizar se não houver um bom diagnóstico. E não há! Continuamos sem saber ao certo onde esse défice de aprendizagem tem maior expressão: em que tipo de alunos? Em que anos de escolaridade? Em que tipo de conhecimentos? Em que tipo de competências? Ninguém sabe, porque a maior parte dos instrumentos de monitorização do sistema de ensino foram pura e simplesmente "mandados pela janela fora". Imagine um médico sem meios de diagnóstico (termómetro, estetoscópio, análises, etc.), como pode identificar e atuar sobre a doença? O segundo pecado está na ideia de que é possível recuperar as aprendizagens até 2023. Qualquer pessoa de bom senso sabe que isto não é possível e não quero acreditar que a data foi encontrada por coincidir com as eleições legislativas. Presumo que foi mera coincidência.

A maior parte dos instrumentos de monitorização do sistema de ensino foram pura e simplesmente "mandados pela janela fora"

A comunidade escolar afirma que os alunos que neste ano concorrem ao superior sairão prejudicados comparativamente aos do ano letivo anterior. Abrir mais vagas poderia ajudar a fazer face às desigualdades como defendem pais e sindicatos?
O problema não está nas classificações deste ano, mas antes nas do ano passado. Foi de uma grande irresponsabilidade alterar o perfil das provas e os critérios de avaliação. Houve uma manifesta inflação das classificações e só me apercebi da real dimensão do problema quando li o relatório do Júri Nacional de Exames, nomeadamente ao visualizar os gráficos com as distribuições. Houve provas em que a maioria das notas estavam aconchegadas ao mais elevado percentil. A principal consequência vê-se agora: descrédito das provas e uma machadada no princípio da equidade e transparência no acesso ao ensino superior. Não sei se o aumento das vagas repõe esses princípios. É um expediente que poderá satisfazer alguns, mas vai ter implicações na gestão dos estabelecimentos de ensino superior. Mais alunos exigem mais turmas, mais professores e, que eu saiba, as disponibilidades financeiras para contratar mais professores não creio que sejam suficientes. Provavelmente vão "chutar" o problema para as universidades e politécnicos.

O problema [no acesso ao superior] não está nas classificações deste ano, mas nas do ano passado. Foi de grande irresponsabilidade alterar o perfil das provas e os critérios de avaliação. Houve uma manifesta inflação de notas

Defende a revisão do acesso ao ensino superior?
O modelo ideal seria a separação das provas de final do ciclo secundário do acesso ao ensino superior. Aquelas provas servem para avaliar o desempenho dos alunos quando terminam o ensino secundário. O que estão a fazer desses exames é transformá-los em provas de acesso ao ensino superior. Se as universidades e politécnicos não têm condições ou não querem selecionar os seus alunos com critérios próprios, então terão de recorrer às classificações finais do ensino secundário. Mas já seria muito bom que aqueles estabelecimentos pudessem utilizar critérios diferenciados em função do tipo de curso e do perfil de aluno que pretendem. E esses critérios podem ir muito além da classificação dos exames.

Faz parte do Conselho Consultivo da Edulog. Dos estudos que têm realizado, há conclusões que o surpreendem?
O Edulog tem um objetivo muito preciso: incentivar a investigação científica de forma a contribuir para a conceção de políticas educativas mais sustentadas em evidência. Neste sentido, representa um esforço para confrontar as opções políticas com a indispensável fundamentação científica. Não estou lá para defender as minhas opções políticas ou ideológicas, mas para contribuir com o meu conhecimento e experiência para fazer aproximar cada vez mais a política da investigação em educação. Dito isto, há que reconhecer que não me têm surpreendido muito. Só que há uma enorme diferença entre conceber políticas por intuição ou voluntarismo e fazê-lo com bases sólidas de conhecimento. Nesta perspetiva o Edulog tem sido para mim muito importante para nos fazer sair da bolha do conhecimento consolidado e obrigar-nos a questionar o adquirido considerado como válido ou o senso comum. Dou-lhe um exemplo. O último estudo sobre o contributo dos professores para o desempenho dos alunos é exemplar. Mesmo que possamos ter algumas dúvidas sobre alguns conceitos e métodos utilizados, o trabalho obriga-nos a reformular os problemas de partida, incentiva-nos a contrariar o senso comum e nesse aspeto penso que todos teremos muito a ganhar com a multiplicação desses estudos. Infelizmente, há sempre gente que julga que já sabe tudo. Não é o meu caso, por isso estou sempre disponível para aprender e alterar as minhas ideias.

Há três pilares indispensáveis ao processo educativo: conhecimento, pedagogia e disciplina. Em qualquer deles o professor tem um papel central.

Na sua opinião, que tipo de ensino teremos nos próximos anos?
Não ouso fazer prognósticos nem tenho qualquer premonição do que será a educação nos próximos anos. Esse é um exercício que resisto a fazer. Mas há algo que eu sei: para muitos que andam à procura de uma "escola nova" que rompa com o modelo atualmente existente, seria bem melhor que apostassem numa escola renovada, que vá incorporando pequenas inovações, que vá respondendo sem ruturas aos desafios que os novos tempos nos vão colocando. Não vale a pena antecipar visões futuristas nem utopias idílicas. É necessário ter visão, sem viver na ilusão, de preferência com os pés bem assentes no que existe, naquilo que não muda porque não há razão para mudar, no que permanece sem se fossilizar. Há algo mais de que estou convencido: os professores vão continuar a desempenhar um papel central no processo de ensino e aprendizagem e tudo o que fizermos para os tornar melhores profissionais terá reflexos na formação e desenvolvimento dos alunos. Há três pilares indispensáveis ao processo educativo: conhecimento, pedagogia e disciplina. Em qualquer deles o professor tem um papel central. Quando sacrificamos um destes pilares arriscamo-nos a ver o edifício ruir. Espero não ter de assistir a essa demolição e faço votos para que as obras de reabilitação - que terão de existir sempre - não atinjam a estrutura do edifício.

Autárquicas são decisivas para o PSD

O vice-presidente da Comissão Política do PSD aborda também, nesta entrevista, a estratégia do seu partido para as próximas eleições autárquicas e admite que estas serão decisivas

Que expectativas tem o PSD para as eleições autárquicas? Este ato eleitoral é decisivo?
Desde a primeira eleição de Rui Rio como presidente do PSD que foi claramente afirmado que as eleições autárquicas de 2021 eram decisivas para tornar o PSD mais forte, mais bem implantado no território e com uma base social de apoio mais alargada. Esses objetivos passam por ganhar mais mandatos nas câmaras, nas assembleias municipais e de freguesia. Temos expectativas de aumentar o número de câmaras lideradas por sociais-democratas. Na noite das eleições é essa a contabilidade que vai ser feita. Neste sentido, estamos confiantes em que estes objetivos serão atingidos e que vamos ter um PSD mais forte e mais bem preparado para ganhar as eleições legislativas seguintes.

Que análise faz das polémicas com as candidaturas à Câmara de Vila Nova de Gaia e da Amadora?
Julgo que a polémica já foi ultrapassada, ainda que por razões diferentes. Na Amadora, Suzana Garcia está a fazer uma campanha muito dinâmica e quem olhar para a constituição das listas de candidatos verá muita gente que terá de rever o que disse nessa polémica. Suzana Garcia continua a surpreender. No caso de Vila Nova de Gaia, tenho pena de que António Oliveira tenha desistido, mas Cancela Moura, um gaiense que conhece muito bem o concelho, poderá também surpreender. A nossa estratégia autárquica foi concebida com bastante antecedência. Acabou por ser mais consensual do que a maior parte de idênticas campanhas no passado e por esta razão o PSD está hoje mais bem preparado para recuperar a confiança dos eleitores e alargar a sua implantação no poder local.

Subscreve as estratégias para Lisboa e Porto?
Lisboa e Porto são dois desafios muito difíceis, mas também muito diferentes. São difíceis porque se trata de concorrer com dois candidatos que estão no exercício dos cargos a que se candidatam e o chamado "benefício da continuidade" tende a prevalecer. São diferentes porque os contextos e projetos políticos são diametralmente opostos: em Lisboa temos um autarca que é um delfim de António Costa que anseia suceder-lhe, no Porto o sonho de Rui Moreira é ser presidente do FC do Porto. Quer um quer outro jogam o seu futuro nestas eleições, mas, infelizmente, o futuro das duas cidades parece ser de menor importância. Carlos Moedas e Vladimiro Feliz estão libertos desses propósitos, apostam tudo na qualificação das suas cidades, no bem-estar das suas populações, no desenvolvimento das suas instituições. Tenho esperança de que lisboetas e portuenses percebam esta diferença de propósitos porque ela é fundamental para anteciparmos o que poderão ser os próximos quatro anos de gestão autárquica.

dnot@dn.pt

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