Os microplásticos e as beatas de cigarros são dois dos resíduos mais encontrados nas limpezas das praias em Portugal.
Os microplásticos e as beatas de cigarros são dois dos resíduos mais encontrados nas limpezas das praias em Portugal.Pedro Rocha / Global Imagens

Flávia Silva: "É preciso atuar na fonte do plástico nos oceanos"

Ao DN, a responsável pela limpeza de lixo marítimo na Fundação Oceano Azul fala sobre o estado dos mares e faz o lançamento da Conferência dos Oceanos da ONU, que se realiza em 2025, em Paris.
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Enquanto responsável pela limpeza do lixo marítimo na Fundação Oceano Azul, qual o seu ponto de vista sobre o futuro dos mares?

Aquilo que vem a verificar-se, na nossa costa e no mundo, é um aumentar do lixo marinho e da poluição, quer seja a difusa como a pontual. E vem crescendo, mesmo com todo o conhecimento que temos e que a ciência nos proporciona. No entanto, a aplicação das taxas e das normas de proibição dos itens de uso único, como os sacos de plástico, os talheres, os copos resultaram, nos anos seguintes, numa redução drástica deste tipo de poluição. É um bom exemplo e mostra que as taxas e estas leis são efetivas. Mas temos muitas outras centenas de itens que vamos encontrando todos os dias na praia, que continuam a crescer e a aumentar esse lixo marinho. Por isso, é preciso realmente fazermos algo em relação à fonte e identificá-la, quer seja na conceção do próprio produto em si, de como é produzido e depois comercializado, como também no seu fim de vida, que tem ou não. O problema é ainda mais grave nos microplásticos, porque não conseguimos muitas vezes sequer identificar o problema.Em Portugal as limpezas são feitas naquilo que é visível a olho nu. Ou seja, tudo o que é maior do que uma beata de cigarro ou uma tampa de garrafa. Isso é aquilo que, normalmente, é recolhido. E os microplásticos e fragmentos menores do que dois centímetros acabam por ficar no areal. Se contarmos com esse tipo de resíduos, aumenta exponencialmente a quantidade de lixo que podemos reportar. Muitas vezes não se veem e até já são detetados no corpo humano, juntamente com plásticos mais pequenos. É um problema gigante, mas invisível. Por exemplo, aquilo [um derrame de esferas plásticas, chamadas pellets] que aconteceu no norte de Espanha, recentemente, tem um efeito grave. Os pellets, quando são encontrados na praia, muitas vezes confundem-se com pedras e areia daquele grau mais grosso. E muitas vezes os animais confundem-nos com ovos de outros animais e consomem-nos pensando estar a alimentar-se de ovos.

Falou em traçar o caminho até à origem e atacar logo aí. Como se pode fazer um combate mais incisivo até a outros materiais não-biodegradáveis?

Mais de 80% do lixo que se encontra nas praias e na costa é plástico. Se formos contabilizar com os microplásticos e nanoplásticos sobe aos 99%. Daí o foco nesse material. Mas encontramos muito lixo de outros tipos. É preciso atuar na fonte do plástico que chega aos oceanos. Tem sido feito muito trabalho, por exemplo, nos esfoliantes e no gel de banho. E as próprias indústrias já se comprometeram - até como resultado da pressão científica e da sociedade civil - a não incluírem mais estes plásticos nos seus produtos e passarem a utilizar produtos naturais. Muitas vezes, estas alterações partem exatamente desta pressão da sociedade civil. É preciso que cada vez mais sejam identificados estes problemas. Por exemplo, aconteceu isso com os sacos de plástico. Antes das medidas, estavam sempre no top 3 do lixo marítimo encontrado. Agora temos outro problema: as cápsulas de café. Passámos a ter esse lixo não só nas praias como nas nossas lixeiras e aterros. Com todo o conhecimento científico que temos e todas as amostras, não devia ser permitido, sequer, sair para o mercado um novo produto destes, sabendo que vai ter um impacto grande, sem haver princípio, meio e fim de vida.

D.R. / Fundação Oceano Azul

Qual o papel em concreto da Fundação Oceano Azul neste problema e nesta área? Como contribuem iniciativas como a Convenção das Organizações para um Oceano Limpo (COOL, que aconteceu em Lisboa)?

Na Fundação, temos o programa Save the Future. Tem uma série de iniciativas que decorrem durante o ano, em que o núcleo são as organizações da sociedade civil. Lançamos o desafio de celebrarem várias datas específicas, em conjunto, para podermos ter um impacto maior a nível nacional. Acabamos por centralizar esta informação, ajudar na divulgação para chegar ao cidadão e passar o exemplo das limpezas costeiras para celebrar o Dia Internacional de Limpeza Costeira, que é em setembro. No ano passado conseguimos mais de 10 mil cidadãos envolvidos nas limpezas de praia em oito dias. Tudo graças à participação de mais de 200 organizações e entidades da sociedade civil que em todo o país organizam estas ações nas suas comunidades e reúnem estas pessoas. Esta edição do COOL juntou mais de 60 organizações numa sala, com mais de 100 pessoas. 80% destas organizações trabalham o lixo marinho. Isso significa que conseguimos partilhar informação. Por exemplo, nem todos estão cientes dos problemas dos microplásticos e aproveitamos para partilhar informação para que estas pessoas saiam daqui mais ricas e capacitadas para partilharem informações nas comunidades e nos públicos com quem trabalham. A COOL serve sobretudo para isso: partilhar experiências e conhecimentos nas mais diversas vertentes. Esta edição foi focada na Conferência dos Oceanos das Nações Unidas (UNOC), que se realiza em Paris, em junho de 2025. A ideia é realmente que pensemos juntos como as organizações da sociedade civil se podem fazer ouvir e levar aquilo que é o mais importante.

Queria terminar justamente aí. Sei que ainda falta mais de um ano, mas qual a sua expectativa para a Conferência dos Oceanos? Acha que vão sair consensos importantes?

Esperamos certamente que sim. A expectativa da Fundação Oceano Azul é que realmente a Conferência das Nações Unidas sirva para alcançar várias das metas internacionais que estão a ser pedidas e aclamadas. Uma das coisas que consideramos que é muito importante e relevante - e que foi muito falada na COOL - é que a organização da conferência está cada vez mais aberta a ouvir e integrar os contributos e a participação da sociedade civil. A deixar que estas organizações se pronunciem, falem, exijam e possam participar nas decisões. E quisemos trazer para junto de nós estas organizações, para, durante este ano, prepararmos algo para poder ser apresentado como propostas concretas. E aquilo que fizemos na COOL  foi já começar a reunir estas organizações, tentar preparar uma comissão organizadora para montarmos um projeto, uma ideia que possamos levar à conferência como um produto conjunto de Portugal e uma chamada de atenção ou uma exigência. Ainda vamos definir bem o quê com este grupo coordenador e, depois, a priori, incentivar a participação e a adesão do maior número possível de organizações nacionais. Vamos trabalhar durante este próximo ano exatamente para levar algo que nos represente a todos e que seja efetivo, muito claro e que retrate a vontade e a posição destas organizações. 

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