Fisco investiga fraude nos combustíveis que rouba mais de 200 milhões ao Estado
O Estado português estará a ser prejudicado em mais de 200 milhões de euros por fraudes fiscais praticadas por empresas importadoras de combustíveis, ou seja qualquer coisa como 50 milhões de euros por ano nos últimos quatro. Em causa está a fuga ao pagamento de impostos como o IVA e o ISP, mas também das compensações que são devidas sempre que uma operadora não incorpora a quantidade de biocombustível prevista na lei para reduzir as emissões de co2. E, tanto quanto o DN apurou, não só as metas para os biocombustíveis não estão a ser cumpridas por todos os operadores, como há falhas na fiscalização dessa incorporação e lacunas legais que dão margem de manobra aos prevaricadores para lesarem o Estado e o ambiente. Questionada pelo DN, a Autoridade Tributária e Aduaneira garantiu que tem o setor sinalizado e que está a atuar tanto ao nível inspetivo como penal.
A perda de 200 milhões em receita fiscal para os cofres públicos é uma estimativa por baixo da Associação Portuguesa das Empresas Petrolíferas (APETRO), já desatualizada, e foi avançada ao DN pelo seu secretário-geral, António Comprido, tendo em conta o crescente peso que os pequenos operadores estão a ganhar no mercado nos últimos anos. Mas embora não se comparem em dimensão com as gigantes petrolíferas, estas empresas já movimentam valores de largos milhões de euros, num mercado que se tem mostrado bastante lucrativo, “sobretudo se as regras fiscais e ambientais não forem cumpridas”, como enfatiza António Comprido.
O esquema tem várias componentes, sendo que a face mais visível é “aproveitar ilicitamente o diferencial de IVA e ISP entre Portugal e Espanha, comprando o combustível no mercado espanhol como sendo para operar localmente e depois vendê-lo em Portugal, sem declarar e pagar o IVA remanescente”, disse aquele responsável.
Por outro lado, e face à dificuldade já assumida ao DN pela entidade fiscalizadora competente, a ENSE, em controlar o efetivo cumprimento das percentagens das chamadas “matérias avançadas” no biodiesel quando é importado, este pode ser comercializado como biodiesel, mesmo quando não o é. Porque o biodiesel tem um preço mais alto, a falsificação resulta em ganhos importantes, se os volumes forem grandes, garantem os agentes deste setor.
Graças a este e outros expedientes, estas empresas conseguem apresentar preços mais baixos, e mesmo assim, ganhar bastante dinheiro. Segundo uma fonte que não se quis identificar, um operador português aumentou a faturação 10 vezes em dois anos, passando de 10 milhões para 100 milhões de euros. Outro expediente, que já foi detetado em Espanha, e que se admite que também possa estar a ocorrer em Portugal, é simular vendas de combustíveis a sociedades fictícias, sem pagamento de IVA, depois vende-se às gasolineiras a baixo preço, conseguindo, ainda assim, lucrar, porque não pagam IVA na compra nem declaram o que vendem e não fazem a liquidação. Entretanto, as sociedades de fachada desaparecem ou apresentam falência.
Só em Espanha, no último mês, descobriu-se que mil em 12 mil operadores estavam a vender gasóleo a preço abaixo de custo, o que alertou as autoridades para investigar estas redes de fraude, que terão como origem operadores que compram combustível por atacado nos mercados internacionais, segundo noticiou o jornal espanhol El Mundo. Ainda de acordo com aquele jornal, dados oficiais das Finanças indicam que aqueles esquemas causaram um prejuízo da ordem dos 700 milhões de euros ao Estado espanhol em 2022, a que há a acrescentar mais de 90 milhões pelas compensações não pagas por falta de incorporação de biodiesel. Só para se ter uma ideia da ordem de grandeza que este ‘negócio´ pode envolver, uma das empresas sobre investigação, a Biomar Oil, entre 2021 e 2022 disparou a sua faturação de 25 milhões para mil milhões de euros. Para tentar impedir a propagação destas redes, o Governo espanhol aprovou uma lei que reduz a cadeia de intermediários no comércio de combustíveis, que entra este mês em vigor.
Toda a gente sabe, mas nada muda
Segundo o DN apurou junto de várias fontes, em Portugal haverá, pelo menos, seis empresas com procedimentos suspeitos, algumas com ações em tribunal por dívidas ao Fisco. “Toda a gente sabe, mas a verdade é que por lacunas legais, que já estão identificadas há muito tempo, ou por falta de capacidade de fiscalização da ENSE, estas empresas vão usando manobras dilatórias, por advogados experientes, e continuam a operar no mercado”, disse ao DN o secretário-geral da Apetro.
Para além do prejuízo ao erário público “existe também uma distorção das regras de concorrência”, aponta o secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis (APPB), em declarações ao DN. Jaime Braga considera ainda que é fundamental saber se há empresas a fazer mistura de biocombustível em Portugal sem ser num entreposto fiscal, não declarando o produto. E lembra que os produtores portugueses de biocombustíveis que representa, essencialmente não importadores, estão a ser prejudicados porque são altamente fiscalizados para fazerem a mistura das chamadas “matérias avançadas” no biodiesel, enquanto não existe essa garantia no produto importado.
Esta situação aliada ao método demasiado administrativo de obtenção de “títulos de sustentabilidade”– que podem ser comprados num leilão oficial da Direcção Geral de Energia, para as operadoras poderem compensar as falhas de incorporação real de matérias mais ecológicas no biodiesel –, faz com que Portugal possa não estar a cumprir as metas europeias que estipulam uma incorporação de 11,5%, admite aquele responsável.
Fiscalizar e penalizar
Em resposta ao DN sobre a veracidade e extensão destas suspeitas de fraude no setor dos combustíveis e se as mesmas estão a ser investigadas, a Autoridade Tributária e Aduaneira confirmou que o setor está debaixo de olho, com ações de fiscalização, mas também com processos de infração. “O setor dos combustíveis e as eventuais fraudes associadas estão a ter um tratamento específico pela AT, não só em sede de procedimento inspetivo, mas também no âmbito da ação penal. Trata-se de um setor que se encontra sinalizado e perante o qual a AT está a exercer as suas competências legais”, declarou aquele organismo. A AT rejeitou, no entanto, confirmar os nomes das empresas envolvidas em atuações suspeitas, invocando o sigilo fiscal a que está legalmente obrigada.
Contactada a Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE), esta escusou-se a adiantar que e quantas ações de fiscalização promoveu, bem como os seus resultados, tendo em conta suspeitas mais antigas sobre falsos certificados de sustentabilidade. Em declarações ao DN, o seu presidente , Alexandre Fernandes, alegou confidencialidade para não avançar com pormenores. Mas garantiu que “a ENSE já está a averiguar” uma denúncia reencaminhada , há uma semana pelo DN, relativa a um caso de fuga ao IVA na importação e a mistura de biodiesel não controlada. Em janeiro, a ENSE admitiu ao DN que a margem de manobra para fiscalizar a conformidade ambiental dos biocombustíveis importados é curta, pois tem de fazer fé nos certificados de sustentabilidade que as cargas trazem emitidas nos países de origem. A ENSE disse estar a colaborar com as entidades europeias e a proceder a fiscalizações sempre justificável.
Não será ao ritmo desejado pelos operadores que se queixam de concorrência desleal, nem das Finanças, mas, pelo menos uma daquelas seis empresas foi notificada pela AT a pagar uma dívida superior a 20 milhões de euros, encontrando-se o processo em disputa judicial. Em 2021, o Departamento de Investigação e Acção Penal (DCIAP) do Porto confirmava estar a investigar suspeita de fraude em rede de venda de combustível em dois casos que envolviam o empresário checo Gasovez, com empresa do mesmo nome, que entrou em insolvência e terá ficado a dever 6,8 milhões de euros ao Fisco, segundo noticiou o Eco na ocasião.
As suspeitas de irregularidades neste setor não são novas, mas desde 2021 agravaram-se com o reforço das exigências ambientais e também com a isenção de ISP que o governo criou para os componentes mais “verdes” a incorporar no biodiesel. “A primeira vez que sinalizámos problemas à tutela foi em 2014, depois disso já houve mais dois governos e nada se fez”, lamenta António Comprido.
Em 2018 foi constituído um grupo de trabalho a envolver as secretarias de Estado da Energia e do Ambiente e das associações mais representativas do setor como a Apetro, a APPB ou a Anecra.
Do grupo de trabalho saiu um relatório, onde se recomendavam várias medidas, como alterações legais com vista a reduzir o risco de infração, mas também harmonização dos limites para incorporação de biocombustíveis com os países da UE, de modo a evitar distorções de mercado; agilizar mecanismos de cobrança coerciva em casos de incumprimento nos títulos de biocombustíveis e também para a suspensão das licenças. “Seis anos passados, estamos na mesma”, resume António Comprido.