"Falta de confiança nos polícias para fazer cumprir a lei de forma justa poderia ser uma causa de afastamento"
Dois dirigentes da histórica Liga Antidifamação (Anti-Defamation League - ADL), líder da luta global contra o discurso de ódio online, estiveram em Lisboa, ainda no rescaldo da investigação nas polícias. Nesta entrevista, concedida por escrito, destacam que em 2022 foi a comunidade LGBTQ+ a sofrer mas ataques.
Com sede nos EUA, o ponto de partida para a criação da ADL em 1913 foi a luta contra o antissemitismo, mas a sua ação, campanhas e tecnologias alargaram-se também ao assédio online, racismo, homofobia e desinformação extremista.
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Carole Nuriel, uma das diretoras, que trabalha há mais de 20 anos para a ADL, e Andrew Srulevitch, diretor para a Europa, responderam ao DN.
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Qual é o retrato atual do discurso de ódio no mundo e como se tem desenvolvido nos últimos anos, incluindo os da pandemia?
O discurso de ódio é expresso com mais frequência nas redes sociais, pelo que a Anti-Defamatin League (ADL) tenta medir a sua prevalência com através de inquéritos conduzidos pelo nosso Centro de Tecnologia e Sociedade (Center for Technology & Society - CTS).
Todos os anos, a ADL realiza um inquérito nacionalmente representativo sobre ódio e assédio online para saber quantos americanos experimentam incidentes de ódio e abuso nas redes sociais.
O nosso último inquérito concluiu que o assédio continua, inaceitavelmente, a prevalecer, apesar dos esforços das plataformas para o refrear.
Grupos marginalizados, incluindo judeus, mulheres, pessoas racializadas, e pessoas LGBTQ+, são vítimas de assédio online devido à sua identidade a níveis desproporcionalmente elevados
Grupos marginalizados, incluindo judeus, mulheres, pessoas racializadas, e pessoas LGBTQ+, são vítimas de assédio online devido à sua identidade a níveis desproporcionalmente elevados: 65% dos membros de grupos marginalizados relatam assédio baseado no ódio.
A taxa de assédio grave - definido como ameaças físicas, assédio sustentado, perseguição, assédio sexual, doxing (revelação de informação sobre alguém na internet), e/ou swatting (falsas denúncias à polícia que levam à detenção de uma pessoa inocente)- foi relatada por 27% dos inquiridos.
E quase metade (47%) dos jovens entre os 13-17 anos de idade relataram ter sofrido algum tipo de assédio.
O foco do vosso trabalho é o antissemitismo. Que paralelos existem entre o antissemitismo e o discurso de ódio e de extremismo contra outras comunidades?
Existem semelhanças entre o discurso de ódio antissemita e o discurso de ódio racista ou xenófobo, especialmente no caso de incitação à violência.
O ódio em linha foi desencadeado pelos assassinos em massa que atacaram uma sinagoga em Pittsburgh, uma igreja negra em Charleston, um supermercado em Buffalo em Nova Iorque e um Walmart em El Paso onde muitos imigrantes latinos fizeram compras.
Muitos desses atiradores invocaram "A Grande Teoria da Substituição", que é um mito anti-semita, criado por supermacistas brancos, de que os judeus estão a orquestrar a "substituição" da população "branca" da América pelos imigrantes de outras origens e etnias.
Muitos desses atiradores invocaram "A Grande Teoria da Substituição", que é um mito antissemita, criado por supremacistas brancos, de que os judeus estão a orquestrar a "substituição" da população "branca" da América pelos imigrantes de outras origens e etnias.
Uma diferença importante, porém, é que o discurso de ódio antissemita está normalmente relacionado com teorias conspiratórias sobre o "poder maléfico dos judeus", enquanto que o discurso de ódio racista e xenófobo é geralmente humilhante e desumanizante.
Quem são os principais alvos do discurso de ódio neste momento? Há novas tendências?
O nosso inquérito online de 2022 sobre ódio e assédio constatou que os inquiridos LGBTQ+ eram mais propensos do que qualquer outro grupo inquirido a sofrer ataques com 66% a atribuir o assédio à sua orientação sexual.
Os asiáticos-americanos relataram um aumento dramático do assédio, de 21% em 2021 para 39% em 2022, a par do aumento dos incidentes de ódio anti-asiático offline.
Como definem a fronteira entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio?
Abordamos essa questão de forma um pouco diferente. Nos EUA, temos a Primeira Emenda, que nos dá o direito à liberdade de expressão, mesmo ao discurso de ódio, sem receio de repercussões por parte do governo.
No entanto, acreditamos firmemente que os propagadores de ódio devem enfrentar consequências.
Como o recente exemplo de Kanye West e da Adidas demonstraram, as empresas não querem ser associadas ao antissemitismo e há consequências na sociedade por tal conduta.
As plataformas de redes sociais precisam de fazer mais para proteger os utilizadores da exposição ao antissemitismo e ao discurso do ódio, e a ADL está a pressionar para uma nova legislação que responsabilize essas empresas pelo assédio e ódio que se espalha nas suas plataformas.
Mas as plataformas de redes sociais precisam de fazer mais para proteger os utilizadores da exposição ao antissemitismo e ao discurso de ódio,
A ADL está a pressionar para que seja aprovada uma nova legislação que responsabilize as empresas de redes sociais pelo assédio e ódio que se espalha nas suas plataformas.
Em Portugal, uma investigação jornalística revelou que cerca de 600 agentes da polícia estavam a publicar comentários racistas, xenófobos e contra figuras de órgãos de soberania em grupos privados online. São comuns casos de agentes da polícia a difundir discurso de ódio? São punidos?
Vimos situações semelhantes nos Estados Unidos, mais recentemente no que diz respeito à divulgação de dados do "Oath Keeper" (Guardião do Juramento - uma organização de extrema-direita) que revelou que mais de 300 membros de forças policiais dos EUA se tinham registado naquela organização extremista.
O desafio, ao abrigo da lei dos EUA, é contrariar o argumento de que os membros das forças da ordem mantêm absolutamente os seus direitos constitucionais à liberdade de expressão e ideologia, particularmente quando estão "fora do uniforme".
A liberdade de expressão é confrontada e contrariada pela necessidade de manter a confiança pública de que a polícia está a prestar um serviço igual a todos os indivíduos e comunidades. Os polícias têm de garantir que fazem cumprir a lei de forma justa para todas as comunidades.
Mas esta liberdade é confrontada e contrariada pela necessidade de manter a confiança pública de que a polícia está a prestar um serviço igual a todos os indivíduos e comunidades. Os polícias têm de garantir que fazem cumprir a lei de forma justa para todas as comunidades.
Relativamente à situação em Portugal, muito dependerá tanto do contexto das conversas nos grupos das redes sociais, como das políticas dos departamentos responsáveis pela aplicação da lei envolvidos. Por exemplo, tal discurso ser proibido e/ou uma condição de emprego.
Não estando familiarizados com o sistema jurídico português, não sabemos se os comentários sobem ao nível de uma acusação criminal.
Se assim for, isso seria quase certamente uma base sólida para despedir quaisquer agentes envolvidos. Se os comentários não constituírem uma violação criminal, poderá ser difícil acusar disciplinarmente ou afastar os funcionários que estiveram envolvidos numa conversa privada.
No entanto, se foram reveladas informações e identidades, a consequente falta de confiança do público nas capacidades de polícias para fazer cumprir a lei de forma justa poderia ser uma causa de afastamento, punição, ou serem sujeito a um programa de formação obrigatório.

Andrew Srulevitch é o diretor da ADL para a Europa e Carole Nuriel diretora em Israel
© D.R.
Como podem ser prevenidas e reprimidas estas situações?
A melhor forma de combater estas situações é identificar o comportamento e proporcionar formação e educação aos membros das forças policiais para que compreendam o impacto e a impressão que o seu discurso de ódio tem sobre as comunidades que servem.
Esta educação também serve para alertar os agentes policiais em relação à intenção real de grupos extremistas e indivíduos que muitas vezes procuram recrutar e subverter as forças da ordem.
Que país tem as melhores práticas neste campo e que exemplos pode dar?
O Conselho Europeu instou cada Estado membro a desenvolver uma estratégia nacional para combater o antissemitismo até ao final de 2022.
A ADL participará numa reunião em Dezembro para rever estas estratégias e esperamos que as melhores práticas surjam e sejam amplamente adotadas pelos estados membros. Contribuiremos certamente com a nossa experiência para essas discussões.
Qual o motivo da vossa visita a Portugal?
O trabalho da ADL na Europa está em coordenação com os representantes das comunidades judaicas. Viemos a Lisboa para nos encontrarmos com o recentemente eleito presidente da comunidade judaica de Lisboa, David Botelho, para conhecer as suas prioridades e as suas preocupações e para discutir como podemos cooperar para apoiar a comunidade judaica.