O lobo ibérico é uma espécie protegida em Portugal desde 1989.
O lobo ibérico é uma espécie protegida em Portugal desde 1989.Foto: Carlos Manuel Martins/Global Imagens

Europa abre caça aos lobos. Medida é “política” e não considera “questões científicas”

Decisão de remover o estatuto de espécie “estritamente protegida” aos lobos foi aprovada pelo Parlamento Europeu. E, dizem dois especialistas ouvidos pelo DN, em Portugal há o risco de estes animais desaparecerem e de os ecossistemas saírem prejudicados.
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Está aberta a “caça ao lobo” na Europa. No início do mês, o Parlamento Europeu votou - e aprovou - uma proposta que altera o estatuto dos lobos como espécie “estritamente protegida” para, apenas, “protegida”. Isto significa que, a partir do momento em que a alteração for adotada pelos Estados-membros, passará a haver mais “flexibilidade na gestão das populações locais de lobos” em cada país. Ao abrigo da Diretiva Habitats da União Europeia (UE) e da Convenção de Berna sobre a Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa, os lobos não podiam ser capturados ou abatidos (exceto se representassem perigo para humanos ou para as explorações de gado) -- paradigma que pode, agora, vir a mudar.

Ainda que só agora tenha sido aprovada, a medida não é nova e já vem, pelo menos, desde 2022, quando o Parlamento Europeu se pronunciou sobre o assunto. No entanto, ganhou outra dimensão no ano passado, depois de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, ter visto o seu pónei de estimação morrer após um ataque de um lobo. Nessa altura, o jornal Politico escrevia (citando Von der Leyen) que, depois desse acontecimento, Bruxelas entrava numa “nova fase” para tentar travar “o regresso dos lobos” e pedia às “comunidades locais, aos cientistas e a todas as partes interessadas” dados sobre o impacto destes animais. Antes disso, recordava o mesmo jornal, “as associações de caçadores e agricultores” há muito que apelavam às instituições comunitárias para reverem este estatuto, abrindo portas a uma maior caça aos lobos. Isto tudo fruto da “enorme pressão” para proteger gado, que os agricultores argumentavam estar a sofrer.

Ouvido pelo DN, Francisco Álvares, investigador do BIOPOLIS-CIBIO (que estuda a biodiversidade e os recursos genéticos), da Universidade do Porto, fala numa “instrumentalização política” do lobo. “Isto é resultado de uma manipulação ideológica. É o pior que pode estar a acontecer em termos da conservação da espécie”, refere. A decisão não foi tomada, diz, “com base no conhecimento ou evidências científicas”, mas, isso sim, “um pouco motivada” pelo que aconteceu a Ursula von der Leyen. Há, portanto, “todas essas questões mais ideológicas” que não ajudam em nada os lobos. Opinião semelhante tem Gonçalo Brotas, da Associação de Conservação do Habitat do Lobo Ibérico, que fala numa “medida puramente política”. Na perspetiva do biólogo, esta decisão não tem em consideração “as melhores questões científicas”.

De acordo com o último levantamento feito à espécie, existem, no espaço da UE, cerca de 19 mil lobos e, alargando a contabilidade a todo o continente europeu, esse número sobe para 21.500. Comparando com os dados da década de 1990, há uma clara “expansão populacional”, explica Francisco Álvares. Nessa altura, “haveria entre 5 e 7 mil lobos em toda a Europa”. É, por isso, uma espécie que “tem tentado recuperar as populações”. Esta recuperação, considera o investigador, é sinal de uma “conservação bem feita”. Mas “é preciso saber viver com isso”. A medida agora aprovada “pode abrir a exceção em cada Estado-membro, em cada país, segundo a situação que queiram, de matar lobos legalmente”, explica, dizendo que “depois as pessoas ficam muito chocadas com a quantidade” destes animais que já morre hoje em dia.

Segundo explica Gonçalo Brotas, mexer desta maneira com uma espécie “pode correr mal”. É isso que acontece quando “o Homem mexe muito ou acha que o consegue fazer ao nível dos ecossistemas”. Tudo porque dentro de uma cadeia trófica (que estabelece a relação de alimentação num ecossistema), o lobo é “um predador de topo”, ou seja, “controla a cadeia dentro do habitat”, o que permite que exista um equilíbrio. E, se houver uma quebra, os ecossistemas acabam por ficar prejudicados. Depois, há, ainda, “as questões sanitárias”. “Fala-se muito no perigo da tuberculose em animais selvagens, por vezes, passar para animais domésticos”, exemplifica o biólogo, acrescentando: “Normalmente, os predadores atacam mais os animais doentes ou debilitados. Se deixamos de os ter ao nível do controlo populacional, deixa de haver também esse controlo sanitário”, o que pode, então, representar um risco para as espécies e habitats.

Portugal tem espécie protegida desde 1989

Por cá, esta medida vai, sobretudo, “esconder um pouco” as “dezenas” de lobos que morrem todos os anos no país, de modo furtivo, e que “são só a ponta do iceberg”. De acordo com Francisco Álvares, o foco devia ser a introdução de medidas preventivas dos ataques (como a colocação de cercas elétricas em explorações de gado) em vez de se tentar “abrir uma espécie de caça ao lobo”. Até porque, diz, “a ciência já mostrou que a melhor forma de diminuir prejuízos” é a “tentar conviver” com estes animais. 

Se se abrir uma caça ao lobo, isso fará com que haja uma “desestruturação das alcateias, mais animais solitários ou dispersantes e que, esses sim, podem ter maior pretensão a matar animais domésticos”. Ou seja: “Matar lobos numa área tem, muitas vezes, o resultado imediato de provocar um aumento dos prejuízos.”

Em Portugal, o lobo-ibérico é protegido desde 1989, altura em que foi considerado como estando em perigo de extinção. Perante isto, diz Francisco Álvares, “quem os quiser matar, se utilizar argumentos e puder fazer uma alteração à lei”, poderá consegui-lo. No entanto, há um risco: “Se não tivermos cuidado, pode acontecer o lobo quase se extinguir em Portugal. Somos o único país da Europa em que as populações estão a diminuir. Houve uma redução de quase 20% da área de distribuição em relação ao último censo. Cada vez há menos sucesso reprodutor. Atualmente, há 58 alcateias no país, que não se reproduzem de ano a ano como previsto, mas sim entre dois e cinco anos. Isto não é normal. Há tantas perturbações e tanta mortalidade que nem se conseguem reproduzir todos os anos. Temos uma situação muito desfavorável. Não vai ser fácil introduzir esta alteração à lei e passar a matar lobos no nosso país.”

O que é uma alcateia de lobos?

Segundo explica ao DN Francisco Álvares, uma alcateia “é quando um macho e uma fêmea, normalmente, com os filhos desse ano ou algum de anos anteriores ocupam um determinado território”. Para efeitos de controlo e acompanhamento das espécies, “são as unidades reprodutoras das populações de lobo”. Mas nem todas as fêmeas se reproduzem. “Só a fêmea dominante” de cada alcateia o faz. Isso faz com que, em Portugal, existam cerca de 58 fêmeas que se possam reproduzir num ano (uma por cada alcateia), mas nem todas se reproduzirão anualmente, o que é um problema.

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