"Eu estive com o coração de 35 mil pessoas nas mãos"
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"Eu estive com o coração de 35 mil pessoas nas mãos"

Defensor acérrimo do SNS, Manuel de Jesus Antunes é considerado um dos mais notáveis cirurgiões nacionais. Em Uma Vida Com o Coração nas Mãos fica a conhecer-se as suas ideias e a sua paixão pela medicina.
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No prefácio de Uma vida Com o Coração nas Mãos, a antiga ministra da Saúde Maria de Belém Roseira diz que este é uma "janela sobre o professor". O que mostra essa janela sobre uma carreira de cerca de 50 anos?
Mostra aquilo que queremos que mostrem e não tudo. Se fosse para mostrar tudo, entrávamos pela porta, não é? Não pretendi ser absolutamente exaustivo [no livro]. Por exemplo, no que diz respeito à minha vida privada e familiar, apenas escrevi alguns aspetos que acho que foram determinantes na evolução da minha carreira. As minhas origens, por exemplo, que é o primeiro capítulo, falo sobre os meus pais, talvez para quebrar um pouco o tabu de que as pessoas que nascem num berço humilde não podem singrar na vida.

Refere as suas origens - nasceu em Memória, em julho de 1948. No livro há várias referências à localidade Memória, em Leiria.
Porque faço um jogo de palavras entre a Memória, onde eu nasci, e as memórias que deixo aqui no livro. Aliás, o professor Carlos Fiolhais [autor do Posfácio], fala no rapaz da Memória, um rapazito da Memória.

Fiquei com a ideia de que essas referências serviam para mostrar que uma pessoa pode vir de uma aldeia, pode ser humilde, e ter a sua carreira, a sua vida...
Quando se faz a referência à aldeia é para mostrar esta outra parte também. Mas não foi apenas uma coisa pessoal. A minha mãe tinha apenas a 2.ª classe, nasceu em 1923, portanto estamos a falar de um período logo a seguir à Primeira Guerra e, portanto, imagina o que era o interior do país, do nosso país. O meu pai já tinha a 4.ª classe, era motorista. Foi ele que me encorajou a não tirar apenas a 4.ª classe, como ele. Não, desde cedo manifestei o desejo de continuar, de ir mais além, e ele trabalhou muitas horas extra, quer para mim, quer para o meu irmão, para nos poder levar onde quiséssemos. Nós não tivemos nenhum impedimento, apesar da modéstia da família, para chegar onde chegámos.

Mas depois há a ida para Moçambique, África do Sul...
Aí já é uma coisa mais individual. No livro uso muitas vezes a palavra sorte, porque a sorte sempre me acompanhou, porque é preciso ter sorte na vida. Terminei o curso como o melhor aluno de Medicina [na Universidade de Lourenço Marques, em 1972, atual Maputo, capital de Moçambique]. Os melhores, três ou quatro, fomos convidados para ser assistentes, antes do doutoramento. E, portanto, a ideia aí era, a 10 mil quilómetros de distância do sítio onde estamos, criar uma faculdade que não fosse uma mera escola médica que formava médicos primários, que dava para as necessidades daquela população. Não tinha a equivalência, por exemplo, com os médicos formados nas universidades aqui, do continente. E, portanto, aquilo que fizeram rapidamente foi tentar, entre os seus próprios alunos, escolher membros futuros, futuros professores. Dois anos depois, já tinha direito a pedir uma bolsa de estudo para fazer o doutoramento e aproveitei. E, naturalmente, como tinha a África do Sul ali ao lado fui para Joanesburgo (África do Sul), ficava a 500 quilómetros de onde estava, fazia-se confortavelmente a viagem de quase um dia.

No 25 de Abril de 1974 estava na África do Sul.
Estava para ir. Quando aconteceu ficámos, como muitos portugueses, à espera de ver o que ia dar. Naqueles tempos, se eu quisesse voltar a Moçambique teria de vir a Portugal, 10 mil quilómetros para cá, 10 mil para voltar a Moçambique. A solução foi ficar na África do Sul. Posso dizer também que era a minha vontade de progredir, a minha vontade de trabalhar, que é aquilo que tento fomentar com o livro. Sempre tentei transmitir aos mais novos que tive esta carreira, estes 35 anos, com muita gente a quem ensinei a especialidade, dizendo que o limite é o céu ou o infinito, não é? As pessoas só têm De ter vontade e capacidade.

Acabou por ficar na África do Sul...
Aí, deixei o doutoramento e deixei de ter como prioridade o terminar a minha especialidade, que era de Cirurgia Geral. Como estava perto dos cirurgiões cardíacos e era o início da transplantação cardíaca, acabei por seguir esse caminho.

Uma vez mais a sorte?
Não, foi apenas o acaso. Se calhar podia dizer que foi a minha sorte, ter acontecido o 25 de Abril e não poder voltar para Moçambique -- se tivesse regressado, hoje seria um cirurgião geral --, mas também foi pelo gosto [da Cirurgia Cardíaca].

E a família?
A minha família acompanhava com algum entusiasmo essa evolução, mas também era a minha vontade de progredir, de trabalhar.

Fala nos jovens e gostaria que fizesse uma comparação entre a sua geração de médicos e a atual, em que há outros interesses?
Isso tem que ver com a evolução da sociedade em geral, que é completamente diferente hoje do que era há duas ou três décadas. Naquele tempo, eu e os colegas que me acompanharam punhamos a nossa vida profissional em primeiro lugar. O que fez com que eu pouca vida tivesse. Trabalhava 36 horas no hospital, 12 a descansar em casa e volta às 36 horas no hospital, talvez o fim de semana fosse um pouco mais livre. Hoje não, hoje as pessoas só fazem aquilo que sentem que têm a obrigação de fazer. É uma escolha, e cada um tem direito à sua escolha. Simplesmente isso faz-me prever que a evolução seja menos brilhante. Sinto-me triste -- quase que pretendia renegar a classe, ou a minha posição na classe, quando vejo que o doente acaba por ser deixado para trás, para segundo plano, porque se procuram os interesses pessoais e de classe. Os médicos e as suas famílias também têm direito a um jantar -- como qualquer outra pessoa, têm direito a procurar o melhor possível para si e para a sua família --, mas não gosto desta preponderância que este segundo aspeto está a ter em relação ao exercício da sua profissão. Nós não somos sapateiros, sei que não posso viver sem os sapateiros, mão não temos uma profissão em que o que não se fizer hoje faz-se amanhã.

Essa nova forma de estar acaba por prejudicar os doentes...
Não estão feitas as contas para saber quantas pessoas, quantas cirurgias foram atrasadas com estas greves e com estas coisas, quantas consultas... Falou-se muito disso durante a pandemia, mas agora essas contas não fazem.

E de quem é a culpa?
O facto é que as nossas autoridades, os nossos Governos, não têm tomado conta destas situações. Temos esta filosofia, de um dos partidos políticos, de que a trabalho igual salário igual, sendo que trabalho igual não significa o mesmo número de horas. Não pode ser assim, porque não é exatamente igual [o trabalho]. Não estou a inferiorizar as pessoas que têm outras profissões. Mas, não têm a mesma responsabilidade.

Defende a exclusividade no Serviço Nacional de Saúde...
Defendia a exclusividade na medida em que, se o indivíduo só pensa naquele assunto, não está constantemente preocupado com outros temas. Em Coimbra não tinha tanto esse problema, pois é uma cidade pequena, chega-se de um lado ao outro em 5 ou 10 minutos. Mas conheço colegas aqui em Lisboa, que para virem de onde vivem -- em Sintra ou Cascais, por exemplo --, levam uma hora para chegar aos seus hospitais, e depois mais uma hora para chegar a outro sítio. Ora, uma, duas ou três horas por dia gastas nisto, são um tempo perdido no trabalho que seria importante. E depois há conflitos de interesses. Claro que a medicina também tem o seu lado comercial, e portanto também não é mau, desde que seja utilizado de acordo com as regras. E nesse lado comercial, às vezes, há conflitos de interesses.

Conhece exemplos?
Há casos de doentes que circulam de um lado para o outro [do privado para o público e vice-versa]. Vão ao privado, mas quando as coisas se complicam vão para os hospitais públicos. Eu próprio estou agora em exclusividade no privado, mas em part-time, pois é uma maneira de me manter alerta e manter a mente a trabalhar, e muitos doentes ainda me procuram.

Também defende que o limite de 70 anos para exercer no SNS está desajustado.
Certamente que sim. Este limite de 70 anos foi definido em 1929 -- nessa altura a sobrevida média andava pelos 60 e poucos anos para os homens, hoje a média é de 80 e tal para os homens e 83 para as mulheres e, portanto, há um desaproveitamento caro das faculdades que se têm. Sei que pessoas com 70 anos já não têm o vigor físico que tinham aos 50, mas continuam a ter o vigor mental, porque o conhecimento vem do que se aprende e do que se lê, mas vem também da experiência própria, e essa é muito difícil de transmitir. E estamos a desaproveitá-la na área da medicina, como noutras áreas. Claro que vem o argumento de que é para dar lugar aos mais novos, mas isto não tem de impedir os mais novos de terem lugar. Os anglo-saxónicos usam o termo de "professor emérito". Eu ofereci-me [para continuar], ao professor Alberto Campos Fernandes [na altura o ministro da Saúde], porque sabia que havia um projeto de decreto-lei que ia alterar essas coisas. E ele disse-me que iria avançar. Mas dez dias antes de me jubilar, o que aconteceu a 20 de julho de 2018, recebo um telefonema do chefe de gabinete do ministro dizendo: "Afinal não vai ser possível". E eu nem sequer tinha arrumado um papel da minha secretária, estava convencidíssimo de que ficava. Aliás, quando convidei o Presidente da República para assistir à minha última lição, ele também me disse que ficaria. À minha frente, ligou ao professor Alberto Campos Fernandes e disse: "Olhe se não for o plano B, que seja o C."

Mas houve um ajustamento na lei...
Em casos excecionais e bem justificados pode-se continuar até aos 75 anos, mas com contratos renováveis de 6 em 6 meses. Não faz sentido ser assim uma coisa tão limitada, parece a inspeção dos carros. É claro que não é preciso passar por uma junta médica, toda a gente vê as condições em que estamos, mentalmente é que é mais difícil. Como costumo dizer, um tolo nunca diz "Sou tolo" e um bêbado nunca diz que já está bêbado.

No entanto, continuou ligado à universidade.
Porque a universidade, através do conceito de professor-convidado, não tem de respeitar essa idade. E eu sou professor catedrático-convidado da Universidade de Coimbra desde essa altura. Vou participando nas atividades que me são atribuídas de uma forma gratuita, porque a alternativa que a lei dá é que ou recebia o vencimento ou a reforma. Como trabalhei muitas horas preferi receber a minha reforma. Se ficasse com o vencimento ficava a ganhar menos, a pagar para trabalhar depois da reforma.

Escreve no livro que "o bom médico trata a doença, o grande médico trata o doente". Na sua opinião de que tipo de médico precisa o Serviço Nacional de Saúde?
Tratar a doença é uma coisa muito impessoal. Tratar o doente é outra situação. Dou-lhe um exemplo, não quero puxar os "galões", mas as minhas consultas são de uma hora. E dizem-me que há médicos que consultam em cinco ou sete minutos. Esse tempo não dá para conhecer o doente. Claro que a gente tem d tratar a doença, mas também tem de tratar o doente, que tem de estar em sintonia connosco. Hoje em dia há muitos médicos que vivem apenas para a máquina. Disparam um botão, nem olham para o doente. Isso deixa de ser medicina. É óbvio que os médicos necessitam desses instrumentos para fazer exames complementares, mas devem ser isso e não apenas substitutos.

Li que fez 35 mil operações e que operaria até que as mãos lhe tremessem. Nunca aconteceu?
Sou um cirurgião, é com as mãos que trabalho. Quanto ao que vou explicar: o meu cálculo é que nestes 30 anos que estive à frente do serviço, fizeram-se cerca de 45 mil cirurgias. Dessas, estive em 35 mil. Ou em 25 mil que eu próprio operei, ou em 10 mil em que ajudei ativamente. Portanto, eu estive com o coração de 35 mil pessoas nas mãos.

Como é ter um coração nas mãos?
É emoção. Também leu a frase que andou pelos jornais, que eu já tratei muitos corações e nunca lá vi o amor. O coração é uma bomba, aliás, são duas em paralelo. E podem ser hoje já substituídas integralmente. Mas apesar de tudo, nós não nos podemos desligar daquilo que na nossa vida vivemos, que são os sentimentos que estão ligados ao coração. Apesar de tudo, quando se quer expressar o amor, a gente lá põe o coração. E portanto, nós interiorizamos isso. Por outro lado, sabemos que o indivíduo até pode estar sem fígado, sem rins, que continua a viver, mas sem coração não pode estar, ou pelo menos sem nada que o substitua, e até hoje não há uma substituição completa. Portanto, não deixo de fazer essa ligação emocional, ia dizer até espiritual.

E recordações?
Lembro-me do primeiro doente que transplantámos, um doente que já não tinha o coração no sítio, já o tínhamos tirado para uma travessa, e não tínhamos posto lá outro. Aí senti-me tremido, pequeno, pensei: "Como é possível fazer estas coisas?"

O doutor é uma pessoa crente, mas também muito ligado à ciência. Não há aí um conflito?
Pode estar a referir-se, por exemplo, a episódios bíblicos que provavelmente não têm uma ligação muito grande à realidade, mas foram simbólicos durante muito tempo e servem para que acreditemos num conjunto de coisas que uns acreditam mais, outros acreditam menos. Apesar de tudo, sou crente, na medida em que reconheço que há algum ser superior a nós, que nos usa para os seus desígnios. E portanto, também faço uma oração de vez em quando à entrada da sala de operações.

Organizou o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica em Coimbra. Como foi esse trabalho?
Foi fácil, porque as condições eram tão más que apenas tive de ter um bocadinho de sorte. Em 9 anos tinham-se feito 183 cirurgias de coração aberto [em Coimbra], 20 por ano, com uma mortalidade elevada. Havia doentes que fugiam na véspera da operação. Num primeiro período estive cá três meses - fizemos a primeira cirurgia a 28 de março e até 20 de junho, salvo erro, operámos mais doentes do que se tinham operado nos aqueles 9 anos anteriores.

Como gostava de serrecordado?
Acho que tive reconhecimento suficiente. Já recebi três condecorações nacionais ao mais alto nível. Primeiro a de Comendador, depois a Grã-Cruz, que é o máximo grau em cada um dos tipos, e a Grã-Cruz da Ordem de Cristo. Recebi a Medalha da Saúde, a Medalha da Ordem dos Médicos, o reconhecimento de tantas coisas. Portanto, acho que tive reconhecimento suficiente.

Quando deixou o SNS disse que tinha prometido à sua mulher que, quando deixasse de trabalhar, a levava num cruzeiro. Já cumpriu?
Não. Sabe que fui convidado pelo bispo de Coimbra para presidir à Cáritas. E eu não fazia a mínima ideia da dimensão da Cáritas de Coimbra. Tem mil funcionários, um orçamento de quase 25 milhões de euros. É um trabalho completamente pro bono em que pensava que ia fazer duas horas por dia e talvez nem fosse preciso ir lá todos os dias, mas agora passo lá sete, oito, nove horas por dia, todos os dias. Lá se foi o cruzeiro, mas tem de acontecer.

Uma vida com o coração nas mãos

Manuel J. Antunes

Gradiva

242 páginas

cferro@dn.pt

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