“Estou cansado da guerra”. Centro Fénix acolheu os primeiros feridos da Ucrânia
Maksym caminha descalço entre os passeios de cimento e os canteiros de relva que atravessam o Centro de Reabilitação da Help UAPT, a associação de apoio a refugiados ucranianos, em Ourém. São dias de paz, estes que vive por aqui, mesmo que um escaldão nos pés o impeça de calçar seja o que for. Na véspera, ele o grupo de militares ucranianos (o primeiro de muitos que virão) deleitaram-se com a praia do São Martinho do Porto. Espalhou protetor solar por todo o corpo mas esqueceu-se dos pés. Sorri muito enquanto fala, na frescura dos 22 anos acabados de fazer. “Foi o meu melhor dia de aniversário”, conta ao DN, relatando aquele 16 de junho, já em terras portuguesas.
Ninguém diria que é o mesmo rapaz que embarcou em Kiev, dias antes, e que durante toda a viagem “não disse uma palavra”, tal como recorda Ângelo Neto, da Help UAPT, que vinha sentado a seu lado. “Estes jovens passaram por muito. Chegaram aqui sem falar uma palavra, todos fechados, hoje já sorriem e brincam entre si”. Quem os visse, na véspera, qual grupo de crianças a jogar à bola na areia, dificilmente os conseguiria imaginar de arma em punho, na frente de batalha. A maioria destes homens não aparenta qualquer maleita física, à exceção de Artem, que se desloca em cadeira de rodas, ou de um ou outro camarada auxiliado por uma muleta. As feridas são internas, psicológicas.
“O que os psicólogos nos dizem é que esta semana equivaleu a dois meses de tratamento, se fosse na Ucrânia. Em termos clínicos, com as máquinas que temos cá, dizem-nos que equivale a um mês de tratamento”, afirma Ângelo Neto, na manhã em que recebe no centro Nuno Campos, especialista em medicina desportiva, antigo médico da Seleção Nacional de Futebol. “Foi ele quem estabeleceu o plano de recuperação, e isso deixa-nos muito seguros. É verdade que alguns precisariam de ficar mais tempo, mas este foi um grupo de teste”, explica aquele responsável.
“Os próprios responsáveis da Ucrânia não acreditavam que fosse possível, que um país de tão longe, e tão pequeno, conseguisse montar um projeto como esse. A verdade é que Portugal fez aquilo que nenhum outro país conseguiu fazer”, sublinha Ângelo, referindo-se ao primeiro centro do género em toda a Europa.
Próximos grupos por 60 dias
Depois de encaminhar Nuno Campos para uma reunião com os médicos (que viajaram da Ucrânia com o grupo), há-de receber também Anton Gulidin, conselheiro dos Direitos Humanos da Ucrânia. E nesse dia ficará a saber da chegada do segundo grupos de militares que virá para o Centro, em breve. E esse já virá “no mínimo por 60 dias”.
Ângelo Neto revela ainda ao DN que “este projeto repercutiu tanto na Ucrânia que temos já uma fila de espera de mil soldados para vir”. Mas isso é o que conseguimos atender num ano, com capacidade máxima, nos 53 quartos daquele antigo seminário.
A escolha dos militares é feita pelo Ministério da Defesa ucraniano, juntamente com o Ministério dos Direitos Humanos daquele país. Um dos 15 deste primeiro grupo foi feito prisioneiro durante um ano, pelas tropas russas. “Saiu da prisão e veio direto para cá”. Pouco se mistura com o resto do grupo, é focado nos treinos de ginásio, já disse que está ávido por voltar à linha de combate. E foi daí que veio Maksym. Estava escalado pela Artilharia para levar uns documentos aos comandantes, mas acabou por ser substituído por um amigo. Houve um ataque no caminho “e o amigo morreu”.
O jovem ainda recupera do choque. Conversa com o DN na biblioteca do Centro, no primeiro andar, onde estão localizados os quartos, individuais e partilhados. Conta, devagar, como sempre quis entrar para o exército, desde pequeno, à conta do exemplo do pai, que desde 2014 se envolveu no conflito. Aos 19 anos, a 25 de fevereiro de 2022, Maksym juntou-se ao grupo AZOV. No final desse ano, perdeu o amigo durante o ataque, no ano passado outro camarada ficou gravemente ferido.
Já este ano foi-lhe diagnosticado síndroma de Raynaud ( afeta especialmente os capilares dos dedos das mãos e dos pés, manifesta-se por vasospasmo, em resposta a situações de frio ou de stress).
Na Ucrânia tem a namorada à espera. “Estou cansado da guerra. Ainda não sei o que quero fazer da minha vida mas sei que quero conhecer o mundo, e por isso [procuro] algum trabalho remoto”, afirma ao DN, com ajuda da tradutora Olga Onufran, radicada em Portugal há 13 anos. O marido trabalha numa das empresas de Roman Kurtysh, mentor e presidente da Ukrainian Refugees – UAPT.
A alegria de ser escolhido
Igor, 30 anos, caminha com a ajuda de uma muleta. Tem estilhaços por todo o corpo, mas é a perna esquerda que inspira mais cuidados, devido a uma tromboflebite. Soube que era um dos escolhidos para integrar o primeiro grupo de reabilitação a 18 de maio passado. Nunca tinha estado em Portugal, nem sonhara visitar o país. “Já estou a sentir resultados dos tratamentos. Há momentos em que já consigo caminhar um pouco sem a ajuda da muleta”, explica ao DN o antigo segurança, que casou já em plena guerra. “Só quero ficar bom, voltar para a linha da frente, e ajudar a acabar com esta guerra”, sublinha. Quando olha para trás, elege dois momentos como os mais marcantes destes dois anos: “O primeiro foi quando pela primeira vez dei um tiro, para matar. O outro quando vi os meus companheiros morrerem”.
O caso que mais impressionou Ângelo, bem como a maioria dos membros da associação, foi o de Artem, o rapaz da cadeira de rodas. “A viagem para cá foi muito dura. Eles fizeram quase quatro horas de comboio, desde a frente de guerra até Kiev, depois mais 10 horas até à fronteira polaca, onde ficámos parados quase oito horas. Se não fosse um associação portuguesa eles não tinham passado”. E depois ainda mais quatro horas até Varsóvia. “Eles nunca deram um sinal de cansaço. Queriam mesmo vir”.
Médicos de cá e de lá
O corpo clínico que recebe o diagnóstico e elabora um plano de tratamentos é português. O grupo veio acompanhado de uma equipa de quadro médicos (também militares), juntando-se no Centro Fénix o especialista em reabilitação física Andriy Neck. Veio de Lviv, juntamente com a mulher (também médica), num dos primeiros voos humanitários suportados pela associação. Sabendo que ainda não podem exercer a atividade em Portugal, o casal tem-se dedicado ao apoio técnico na realibitação. “Se os militares estão a defender o nosso país, o mínimo que eu posso fazer é ajudá-los, com o que souber”, afirma Andriy.
Fala ao DN num enorme ginásio localizado ao fundo da propriedade. Em breve, haverá ali também uma piscina. Para além disso, o Centro conta com vários gabinetes dedicados à recuperação e fisioterapia, com “máquinas novas, uma delas é a terceira que existe em Portugal, para trabalhar os membros inferiores”. Quase todo esse equipamento foi doado por empresas portuguesas, num total de dois milhões de euros. “Ainda começámos a escavar a piscina, mas acabou-se o dinheiro. Falta também instalar os bungalows solidários, na área de floresta da propriedade”, adianta Ângelo Neto. “Nessa altura teremos muito mais capacidade. E poderemos acolher não só feridos de guerra (desta ou de outra) como também população vulnerável portuguesa, ou refugiados que cá estejam”. Para já, a associação está registada como IPSS. E não descarta a possibilidade de vir a candidatar-se a fundos públicos, no futuro.
Na parede que delimita a propriedade, está pintada uma fénix gigante. Sob as asas, começam a escrever-se os nomes dos feridos que por ali passarem, de um lado, e do outro os nomes dos mecenas que suportaram a recuperação do edifício e a instalação de equipamentos. Um dos primeiros será o da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias, uma organização americana presente em Portugal desde os anos 70, com sede na Alemanha. Foi daí que chegou o dinheiro para comprar a maioria dos equipamentos. Juntam-se a Sonae (que apoiou o abastecimento aos cinco centros de refugiados geridos pela associação no último ano) e o grupo ADEO (Le Roy Merlin), que financiou a obra de reabilitação.
Esta foi a segunda tentativa do DN para a reportagem no Centro Fénix. A primeira aconteceu poucos dias depois dos soldados chegarem a Ourém, mas os responsáveis ficaram retidos numa reunião de emergência, depois de uma alegada ameaça de “um grupo que mandou mensagens a dizer que vinha cá destruir tudo”, explicou mais tarde Ângelo Neto.
O grupo de militares regressa à Ucrânia nesta terça-feira, dia 2 de julho. O centro já está à espera dos próximos.
Um antigo seminário que renasceu das cinzas
Logo que rebentou a guerra, a 24 de fevereiro, a comunidade ucraniana em Portugal começou a mobilizar-se para ajudar quem começava a ficar desalojado. A UAPT nasceu quatro dias depois. Roman Kurtysh , de 38 anos vive em Portugal há quase duas décadas. Chegou a 19 de setembro de 2003 para um intercâmbio universitário. “A ideia era ficar para ver o Euro 2004. E afinal fiquei muito mais tempo...”, contou ao DN o ucraniano que desde há um ano preside à associação.
A seu lado, o luso-brasileiro Ângelo Neto explica a rapidez com que se desenhou este projeto: a 26 de fevereiro fizeram a primeira reunião nas instalações de uma das empresas de Roman. “Apareceram umas 20 pessoas. Falámos e começámos a trabalhar. Dois dias depois estava formalizada.” Esta é a história da associação mas também do seu plano de ação. A ideia de criar um centro para refugiados de guerra em Ourém aconteceu pouco antes do Natal, quando a atual proprietária do edifício o disponibilizou, de viva voz. Juntaram-se no apoio outros parceiros.
A história foi contada ao DN quando visitámos o Centro pela primeira vez, em fevereiro de 2023. Por detrás deste projeto, há ainda a história do edifício. O antigo seminário dominicano ganhou expressão num documentário do realizador Filipe Araújo: O Casarão. O pai, Horácio Araújo, fora um dos seminaristas que ali viveu. No momento em que se dispôs a fazer uma biografia dele, deparou-se com um conjunto de memórias que decidiu imortalizar no cinema. “Isso aconteceu a partir do momento em que travei conhecimento com o caseiro, que ainda lá mora, nascido na casa em frente”, contou Filipe Araújo numa entrevista à Agência Ecclesia, há cerca de dois anos. E foi ele, António Oliveira, o “guardião” daquele espaço durante anos abandonado na Aldeia Nova. É memória viva daquela que foi a casa de figuras conhecidas como João de Melo (autor de Gente Feliz com Lágrimas) ou Frei Bento Domingues.
António nunca foi seminarista, mas era “da casa”. E por isso assistia às aulas e participava de toda a vida do seminário, fundado em 1940. “Nos anos 60 isto tinha uma vida impressionante, não apenas pelo seminário em si, mas porque os sete hectares de terreno eram cultivados, tornando-o autossuficiente. Foi assim até 1973. Em 1975 passou a ser Casa da Criança” – o equivalente ao que são hoje os centros de acolhimento. “Esteve assim uns 12 anos, a cargo da Segurança Social”, recorda António, que agora se alegra com a nova vida que o espaço terá.
Para lá do portão, a quinta que alberga o antigo seminário continua, bem como os projetos. A UAPT tenciona construir ali 15 bungalows, uma piscina e, à volta, uma horta comunitária. “A ideia é que fique um centro autossustentável”, sublinha Ângelo Neto. “O nosso objetivo é que os feridos de guerra se dediquem à natureza como forma de recuperação, com uma horta biológica, pomar, animais”.
“Quando a guerra acabar e tratarmos todos os que conseguirmos, ficará para uso da comunidade local”, revela o presidente da direção. E nesse rol incluem-se “vítimas de violência doméstica, crianças em estado vulnerável, entre outras”.