Estafetas ameaçam com “maior paralisação de sempre”
Depois do protesto de 23 de fevereiro — que consistiu na primeira suspensão generalizada da atividade em várias cidades, entre as 18h00 e as 22h00, com revindicações de melhores condições de trabalho e aumento dos pagamentos — estafetas das plataformas digitais Uber Eats, Bolt e Glovo Food preparam nova paralisação, desta vez para 22 de março, uma sexta-feira, segundo Hans Melo, estafeta brasileiro a trabalhar em Coimbra desde 2022 e que nos últimos meses se tem destacado na mobilização destes profissionais.
“Acredito que o protesto será enorme, provavelmente teremos a maior paralisação de sempre dos estafetas que trabalham em Portugal”, disse Hans Melo ao DN. O novo protesto terá duração de seis horas, entre as seis da tarde e a meia-noite. Mais duas horas do que em fevereiro.
“A intenção não é criar confusões nem dar prejuízo a ninguém, queremos apenas conseguir ter voz. Vamos parar para as plataformas entenderem que têm de dialogar”, acrescentou. “Fiquei surpreendido com a paralisação de 22 de fevereiro. Aqui em Coimbra, por exemplo, onde há mais ou menos 300 estafetas, a adesão foi de quase 100% e até houve gerentes de vários restaurantes que nos mostraram apoio”.
Segundo Hans Melo, a maioria dos estafetas em Portugal é de nacionalidade brasileira e são brasileiros os membros mais ativos deste movimento reivindicativo. Com eles estão representadas as tendências políticas polarizadas existentes no país de origem. Parece haver consenso sobre a necessidade de alteração das regras e pagamentos, mas nem todos querem organizar-se formalmente em associações ou estruturas representativas.
Hans Melo, de 38 anos, natural de Maceió, estado de Alagoas, dinamiza um grupo de conversação no WhatsApp denominado “Estafetas Unidos”. Contavam-se 1.005 membros esta semana. Há vários grupos idênticos de estafetas de diversas cidades portuguesas. No “Estafetas Unidos” foi publicada há dias uma lista de reivindicações onde se lê que “enquanto o cliente desfruta do conforto do seu lar, lazer ou trabalho, o estafeta enfrenta os perigos do trânsito, sol chuva, e até a neve”. Segue-se uma lista detalhada com 10 exigências.
Querem um pagamento mínimo garantido de três euros por “qualquer entrega”, mais um adicional de 50 cêntimos por cada quilómetro percorrido em distâncias de 2 a 4,9 Km de distância, e um euro extra por quilómetro a partir dos cinco quilómetros de distância. Atualmente cada entrega rende entre 80 cêntimos e 1,20 euros, segundo Hans Melo. A Glovo remunera quinzenalmente, a Bolt e a Uber pagam à semana.
Exigem que “pedidos duplos sejam pagos individualmente” e que as plataformas deixem de permitir os “pedidos triplos”, que é o que acontece quando um mesmo estafeta, por opção sugerida ao cliente através da plataforma, tem de ir a três lojas ou restaurantes diferentes levantar pedidos, antes de seguir para a mesma morada final.
Querem que a deslocação até ao ponto de recolha (até ao restaurante) seja remunerada. Pedem ainda “autonomia para recusar ou aceitar” os pedidos e exigem “escritórios nas principais cidades”, já que Uber, Bolt e Glovo apenas comunicam com os estafetas (e com os clientes) através das respetivas plataformas, sem interlocutores olhos nos olhos.
O mesmo caderno reivindicativo, que os autores designam por “pauta de reivindicações”, refere que os estafetas se sentem “obrigados a ir além das 12, 14 e até 16 horas diárias de trabalho” para obterem rendimentos aceitáveis, sendo que as plataformas “não fornecem mochilas, sapatos, roupas adequadas para o frio, nem mesmo capas para a chuva”. Logo, “tudo sai do bolso do trabalhador”.
Um porta-voz da Associação Portuguesa das Aplicações Digitais, constituída em setembro de 2022 pelos três gigantes do setor, disse ao DN que a APAD "estará sempre disponível para conversar com representantes do setor”, mas não quis precisar se estão ou não a decorrer negociações com estafetas ou se as plataformas estão a par do caderno reivindicativo, o qual já foi entregue a representantes da Glovo e da Bolt, garantiu Hans Melo.
O mesmo profissional disse que a Bolt Food tomou a iniciativa de ajustar os pagamentos dos estafetas na sequência da paralisação de 23 de fevereiro. “Estamos a atualizar a estrutura de ganhos para garantir ganhos mais justos para entregas de longa distância”, lê-se numa mensagem da Bolt enviada aos colaboradores a 1 de março. “Esta nova estrutura vai entrar em vigor a partir de 11 de março”, a próxima segunda-feira, mas não é bem vista pelos estafetas, segundo Hans Melo.
O que não aparece referido no caderno reivindicativo é o reconhecimento dos estafetas como trabalhadores por conta das plataformas, o que implica que tenham de contratos de trabalho. Regra geral, estes profissionais preferem continuar em regime independente, sem vínculo, porque receiam rendimentos mais baixos com contratos de trabalho. Isso mesmo é referido no grupo de WhatsApp "Estafetas Unidos”. “A negociação é entre quem trabalha e quem presta serviço”, escreveu há dias um estafeta, segundo o qual é indesejável a intervenção do Governo e também de sindicatos.
As plataformas não aceitam que os seus estafetas sejam considerados trabalhadores dependentes com contrato e por isso contestam a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que obrigou a Uber Eats a dar contrato de trabalho a um estafeta. A sentença tem data de 1 de fevereiro e resultou de uma ação intentada pelo Ministério Público na sequência de uma inspeção da Autoridade Para as Condições do Trabalho (ACT). Desde as alterações de maio último ao Código do Trabalho, a ACT instaurou quase mil processos para que as plataformas reconheçam estafetas como trabalhadores com vínculo sem termo.
Aquela sentença tem sido considerada histórica, por ser a primeira do género e por presumivelmente ir ao encontro dos interesses dos estafetas. A Uber veio alegar não ter sido ouvida pela Justiça, porque a citação do tribunal, que lhe era dirigida, foi parar à morada da sede da Glovo, em Lisboa. Continuam válidas as hipóteses de a Uber recorrer da sentença ou até de alegar nulidade dos atos processuais. Na sexta-feira, fonte oficial da Uber não quis fazer comentários, mas sugeriu que está a ser equacionado um recurso: "A Uber não tem nenhuma sentença transitada em julgado, pelo que o processo neste momento continua em curso".
Como o DN noticiou a 9 de fevereiro, as três principais plataformas digitais de entregas a operar em Portugal defendem “modelos operacionais que permitam flexibilidade”, o que na prática significa que Uber, Glovo e Bolt querem um novo regime legal intermédio que vá além dos dois modelos hoje existentes: trabalhadores independentes e trabalhadores por conta de outrem.
Um vínculo laboral intermédio, em que o prestador de serviços não está totalmente independente dos empregadores e também não é funcionário contratado, “poderia efetivamente constituir uma solução que conjugasse quer a proteção do trabalhador quer as especificidades do trabalho em plataformas, com benefícios para ambas as partes”, declarou ao DN o advogado especialista em Direito do Trabalho e da Segurança Social Tiago Cochofel de Azevedo, do escritório lisboeta Antas da Cunha ECIJA.
“As características clássicas de uma relação laboral não se verificam nestes casos”, argumentou o jurista. “Temos de pelo menos perguntar se fará verdadeiramente sentido aplicar um regime legal que foi construído, ao longo de décadas, à luz de um paradigma clássico que não se verifica nestes novos modelos de trabalho”.