"Está tudo doido! Imagine a sua casa ocupada por estranhos em quarentena de Covid!"
"O que lhe posso dizer é que vêm a caminho muitas famílias que têm aqui casas e que tudo faremos para impedir que sejam ocupadas. Sabemos que o problema dos imigrantes tem de ser resolvido, mas não é à nossa custa. E as empresas que não lhes dão condições? E a câmara municipal não tem alternativas? Está tudo doido! Imaginem a sua casa ocupada por estranhos em quarentena de Covid-19!"
O desabafo, feito ao final da manhã deste sábado, é de Alexandra Beato, uma das proprietárias do empreendimento ZMar, a partir do próprio local, e reflete o estado de ansiedade que domina, depois de ter sido divulgado o despacho do Governo, de sexta-feira, a determinar "a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes" que compõem o ZMar Eco Experience e que "pode envolver casas de habitação própria e até de primeira habitação".
Esta requisição do ZMar destina-se a alojar imigrantes trabalhadores das empresas agrícolas da região, muitos a viver em condições desumanas, como já testemunhou o DN em reportagem, em situação de "confinamento obrigatório" "isolamento profilático" determinado pela autoridade de Saúde -ao que o DN apurou serão apenas casos que tenham testado negativo, mas que por terem estado em contacto com infetados têm de cumprir a quarentena.
Durante a tarde, entretanto, fonte do governo que está a acompanhar o processo, admitia ao DN que poderia ser feita uma "clarificação", no sentido de excluir as casas de habitação de privados. "Terá de haver bom senso e proporcionalidade", sublinhou. O processo no governo foi encabeçado pelos ministérios da Economia e da Administração Interna.
Alexandra Beato explica que o ZMar tem um total de cerca de 260 casas e que dessas "160 são de particulares" que as utilizam regularmente, quer como primeira habitação, quer como segunda habitação para férias e fins de semana. "Eu e, pelo menos, outras 20 famílias, temos estado aqui praticamente todo o confinamento em teletrabalho e os miúdos em aulas. Temos as casas com computadores, todas equipadas", sublinha.
José Alberto Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira eleito pelo Partido Socialista, a quem o despacho do governo atribui a competência da "operação do empreendimento objeto de requisição (...) com o apoio da autoridade de saúde e do responsável da segurança social territorialmente competentes" não quis prestar declarações sobre como vai fazer a gestão do processo.
"O Sr. presidente foi apanhado de surpresa com esta requisição civil, tal como em relação à cerca sanitária, não tendo sido consultado previamente. Estamos neste momento a ver como se vai fazer", afiançou ao DN a porta-voz do município.
A complicar ainda mais a situação está o facto de o empreendimento se encontrar em situação de insolvência e dar-se a coincidência de, há cerca de uma semana (a 27 de abril), ter sido aprovada em tribunal um plano de reestruturação, como o acordo dos principais credores, para reabrir o ZMar ao turismo a partir do próximo dia 28, plano esse que contava com a receita que agora, caso as casas sejam utilizadas para as quarentenas, não irá acontecer.
É isso que nos conta o representante da "massa insolvente" (bens e direitos que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência), Pedro Pidwell. "Caso se concretize esta requisição civil, tal como está definida na RCM, abrangendo totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes que compõem o empreendimento, isso significará simplesmente a liquidação do ZMar".
Pedro Pidwell lembra ainda que estão em causa "cerca de 100 trabalhadores, a que se juntariam mais cerca de meia centena de sazonais para darem apoio durante o verão".
Segundo ainda este interlocutor, não foi feito qualquer contacto, nem pelo governo, nem por parte da autarquia. "Até agora só falei com o Coronel Cruz, da GNR, que esteve no empreendimento a fazer um levantamento sobre o estado e tipo de ocupação das casas, mas nem sei a que conclusões chegou e o que transmitiu", assevera.
Questionado sobre quantas habitações o empreendimento poderia, ainda assim disponibilizar, Pedro Pidwell retorque. "O que posso dizer é que a massa solvente não vai prescindir de defender todos os seus direitos", afirma, reforçando que "nesta fase, com um plano de reestruturação aprovado, a requisição civil significa a liquidação do empreendimento. Já há muitas reservas feitas para o verão, mas quem vai querer vir passar férias a casas que estiveram ocupadas por pessoas em quarentena?".
Contactada a GNR para aferir do mencionado "levantamento" no terreno por parte do referido coronel, o gabinete de imprensa do comando-geral nada revela. "Relativamente à questão concreta da requisição civil, a mesma não se enquadra nas competências desta Guarda, conforme disposto no n.º 6 do Despacho acima mencionado, pelo que não existe qualquer informação a prestar", responde. O artigo nº 6 é o que atribui as competências à autarquia.
Do ponto de vista jurídico a requisição civil, no que diz respeito às casas de privados, levanta dúvidas à Ordem dos Advogados (OA). O bastonário Menezes Leitão entende que podem estar em causa direitos humanos e decidiu solicitar a intervenção da Comissão de Direitos Humanos" da própria OA.
"Não estando em estado de emergência, os direitos fundamentais não podem ser suspensos, tendo em conta a proibição do excesso em Estado de Direito. Ora é completamente desproporcional privar pessoas da sua própria habitação para terceiros utilizarem os seus bens e virem perturbar a intimidade da vida familiar", sublinha.
Segundo Menezes Leitão, a Comissão de Direitos Humanos da OA, presidida por José Trincão Marques, "analisará a situação e proporá as medidas mais adequadas para defender os direitos das pessoas".
O ex-bastonário Guilherme Figueiredo é também assertivo. No seu entendimento, "as residências particulares, quer de 1ª, quer de 2ª habitação, não podem num caso destes ser submetidas a requisição civil porque se entra no âmbito dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Houve certamente um desconhecimento do governo sobre a existência de casas que são domicílios".
De acordo com o decreto-lei que define as condições da requisição civil (um diploma de 1974) quem não cumprir incorre em crime de desobediência, mas o criminalista Magalhães e Silva não vê neste caso que haja lugar a "direito de resistência, que tem limites e é apenas aplicável aos casos em que há uma flagrante violação da lei".
Para este advogado, que integra o Conselho Superior dos Magistrados do Ministério Público, esse não é o caso da requisição civil do ZMar. "Com a proporcionalidade exigível, está previsto na lei da proteção civil em estado de calamidade", assinala.
No seu entender, a via adequada para os proprietários defenderem os seus direitos, não será a desobediência, mas através da "instauração de um processo de intimação junto ao tribunal administrativo".
A acompanhar como "muita preocupação" todo a situação, principalmente pelo impacto e até alguma hostilidade que possa agravar-se contra os imigrantes, está Alberto Matos, da Associação Solidariedade Imigrante.
"Eles são apenas vítimas. Muitas vezes vítimas de trabalho escravo, de condições desumanas. A quem se deve pedir contas são às empresas que disseram há um ano que não podiam parar e não adaptaram as necessárias medidas de segurança sanitária. Era só uma questão de tempo", sublinha este ativista de defesa dos migrantes.
Alberto Matos diz que "o governo deve responsabilizar e exigir condições dos proprietários das empresas, incluindo proporcionar aos trabalhadores habitações condignas. E isso não é fazer aldeias de contentores, mas sim casas integradas nas localidades, impedindo que estas residências sejam usadas para obtenção de lucro".
E conclui: "o trabalho escravo não é só grilhões, é a falta de autonomia e a dependência pela precariedade, que impede uma vida condigna".