“Espero que um dia o espaço se abra a mais pessoas”
Como antiga astronauta e médica, que trabalhou para a NASA durante muitos anos, veio a Lisboa participar numa conferência sobre cooperação entre os Estados Unidos, Portugal e os países lusófonos na investigação sobre cancro. Em que áreas é que essa cooperação se está a desenvolver neste momento?
Esta é a minha primeira visita a Portugal na minha função oficial, mas o hospital onde trabalho, o MD Anderson Cancer Center, tem uma longa parceria com Moçambique, portanto fizemos muito treino e projetos de educação, muita investigação com o Ministério da Saúde e com um grande hospital-escola em Moçambique. E sei que há uma relação histórica entre Moçambique e Portugal. Por isso acho que esta é a forma de juntar vários parceiros. Parceiros que talvez até agora não tenham trabalhado tão de perto, mas que o possam fazer no futuro.
Uma das questões que se coloca na medicina, como em muitas outras áreas, é que impacto as novas tecnologias, e sobretudo a inteligência artificial (IA), podem ter no futuro. Já se sente esse impacto na investigação e nos tratamentos para o cancro?
A IA é apenas uma pequena parte dos nossos projetos de investigação. E eu não sou especialista nessa área, quase não consigo acompanhar tudo o que está a acontecer. Mas temos alguns projetos de investigação que olham para o uso da IA para ajudar no diagnóstico das patologias. Em Moçambique e em muitos países da África subsariana há uma grande falta de patologistas e é impossível tratar pacientes com cancro se não forem diagnosticados.
Em várias áreas existe um grande receio em relação à IA e aos seus limites, será que o mesmo se aplica à medicina?
Penso que existem muitas aplicações potencialmente boas da IA na medicina. Em outras áreas não sei, mas na medicina não temos especialistas suficientes no mundo. E, portanto, ao usarmos algumas destas tecnologias, conseguimos libertar os especialistas para poderem fazer outras coisas. Se pudermos usar a IA, por exemplo, para ler uma mamografia ou para fazer um diagnóstico, isso permite que os especialistas se possam concentrar no tratamento dos pacientes e ter um impacto maior.
Há alguns anos um diagnóstico de cancro era visto como uma sentença de morte. Hoje, com o desenvolvimento da medicina, já é muito mais visto como uma doença com a qual se consegue viver?
Depende de onde é que se vive. Nos Estados Unidos fizemos tremendos avanços na prevenção e tratamento do cancro e muitos pacientes são sobreviventes de longo prazo. Mas se viver, por exemplo, em Moçambique, a história é diferente, porque naquele país o cancro muitas vezes não é diagnosticado e, portanto, não é tratado.
Por isso é tão importante a cooperação e as parcerias entre países?
Sim, para podermos dar o apoio e a tecnologia para que as pessoas em todo o mundo possam beneficiar dos avanços no diagnóstico e no tratamento do cancro.
Falando um pouco da Ellen, quando é que decidiu ser médica? Sei que os seus pais trabalhavam ambos nesta área…
Não decidi verdadeiramente até estar a meio da universidade, pois não tinha bem a certeza. É verdade que é uma área em que a minha família já trabalhava, mas eu tinha interesses diversificados. No entanto, houve um momento em que percebi que a medicina era uma boa carreira para mim - havia várias opções, podia seguir diferentes caminhos. Há uma grande flexibilidade e há várias formas de seguirmos os nossos interesses e fazermos a diferença. Além disso, é uma área em que se tem muita interação com as pessoas, que é algo de que gosto. Ou, pelo menos, costumava ser. Hoje é um pouco diferente, porque acho que a medicina está muito mais orientada para o negócio, o que me parece lamentável. Perdemos algum desse toque humano porque hoje é tudo muito corporativo. Eu já não dou consultas, por isso esta realidade chega-me sobretudo através dos meus colegas. E como paciente também. Hoje os médicos já não demoram tanto tempo com cada paciente, têm muito mais constrangimentos de tempo do que tinham antes.
Trabalhou para a NASA durante várias décadas. Como é que essa oportunidade surgiu? E o que é que fazia exatamente como médica na NASA?
Bem, quando era criança não havia raparigas astronautas, certo? Por isso nunca me passou pela cabeça ser astronauta. Simplesmente não era uma opção. Mas quando terminei a Faculdade de Medicina, a NASA colocou uns anúncios: iam abrir um novo curso para astronautas, para irem ao espaço no Space Shuttle, e as mulheres eram incentivadas a concorrer. Na altura, em vez de me candidatar, achei que era melhor terminar o curso e a minha formação como médica, porque era o que queria fazer, e, se não se termina a formação, depois é difícil recuperar o atraso. Mas quando terminei os meus três anos de pós-graduação em Medicina candidatei-me à NASA para trabalhar como médica. E foi o que fiz durante quase três anos. Passado esse tempo, eles abriram outro concurso para astronautas e eu concorri, e tive a sorte de ser selecionada.
Hoje em dia, parte da investigação relacionada com o cancro também se faz no espaço. Em que ponto é que estamos nessa área em termos de investigação e de tratamentos?
Bem, desde o início do programa espacial que sempre se foram recolhendo dados fornecidos pelos astronautas para perceber como é que a experiência de estar no espaço os afetava fisiologicamente - como é que o corpo deles se adaptava a entrar no espaço, viver lá e depois como é que isso afetava o seu regresso à Terra. A maior parte da investigação que fizemos foi para entender melhor a fisiologia humana. No caso das missões nos vaivéns, eram relativamente curtas, não mais de duas semanas, por isso a quantidade de investigação que conseguimos fazer era limitada, pois ninguém imagina que uma investigação aqui na Terra se possa desenvolver apenas em duas semanas. Mas hoje é muito diferente com a Estação Espacial Internacional. Não tenho acompanhado de muito perto as últimas investigações, mas os astronautas hoje em dia passam muito tempo na estação espacial. Nos últimos 20 anos, ela tem estado continuamente ocupada por astronautas e portanto as experiências podem ir decorrendo sem estarem limitadas pela duração de um voo. E acho que expandimos bastante a quantidade de investigação que tem sido feita. Afinal, não são os astronautas que fazem a investigação, certo? São cientistas em Terra que apresentam projetos. Depois há um processo de seleção e os projetos que forem escolhidos são levados para o espaço. Não consigo dizer exatamente o que está a ser feito neste momento na investigação ligada ao cancro ou à genética, mas há muito mais diversidade de projetos ligados às ciências da vida do que havia antes. Porque temos o luxo de ter tempo e espaço. A Estação Espacial Internacional tem uma grande dimensão, o que nos dá mais ferramentas para realizar as nossas investigações.
A Ellen fez três voos espaciais, que somam 686 horas no espaço. Sentiu o impacto no seu corpo? Como foi a experiência?
O mais surpreendente para mim foi ter sido uma transição fácil. Os humanos evoluíram na Terra, é aqui que nascemos, que crescemos, e quando vamos ao espaço, onde a gravidade é mínima e quase não se sente, seria de esperar que fosse difícil adaptarmo-nos, mas não. Foi tudo muito natural e foi muito fácil adaptar-me. Para mim, a verdadeira adaptação foi no regresso à Terra. Mesmo depois de cinco ou seis dias, ainda sentia dificuldades no equilíbrio. Mas claro que não teve nada a ver com o que sentiram as pessoas que passaram seis meses na Estação Espacial - a reabilitação deles demora muito mais tempo. Perdem massa muscular, apesar de os mantermos a fazer exercício lá em cima, e demoram muito mais a voltar a adaptar-se quando regressam à Terra.
Por outro lado, por ter passado períodos relativamente curtos de tempo no espaço, a Ellen sentiu dificuldade em lidar com alguma atividade? Sabemos que mesmo tarefas básicas, como comer ou beber, são diferentes…
É um pouco diferente, mas, como disse, até foi fácil. Ao ir ao espaço, algumas pessoas sentem uma espécie de enjoo nos primeiros dias, mas depois passa e tudo se torna mais fácil e natural. Eu própria fiquei surpreendida com a facilidade com que me adaptei e como me senti confortável lá em cima.
Os Estados Unidos estão a tentar voltar à Lua, desta vez levando a primeira mulher. Há alguma diferença entre homens e mulheres na habituação ao espaço e na reação após o regresso à Terra?
Os corpos reagem de forma diferente. Há diferenças mínimas, mas, honestamente, nenhuma que se possa considerar clínica ou funcionalmente importante. Homens e mulheres podem fazer as mesmas tarefas, sejam passeios espaciais ou operar os braços mecânicos. Já tivemos mulheres a fazer todos esses trabalhos, a ser comandantes de missão, a pilotar o Space Shuttle, tudo isso. Não gosto de me focar nas diferenças porque, funcionalmente, não importam. Claro que há diferenciações entre indivíduos, cada pessoa responde de forma diferente. E há pequenas discrepâncias entre homens e mulheres, mas não têm quaisquer consequências, pelo menos que tenhamos conseguido identificar. As qualificações e as certificações exigidas para se ser astronauta são iguais para homens e mulheres.
Como é que vê esta nova corrida espacial a que estamos a assistir, com novos países a tentar conquistar um lugar no espaço, mas também com os chamados ‘turistas espaciais’?
Haver um interesse renovado no espaço é bom. Voar no espaço é um verdadeiro desafio técnico, o que as pessoas muitas vezes se esquecem. Tivemos os acidentes com o Columbia e o Challenger, que nos recordaram como os voos espaciais podem ser perigosos. O Columbia foi há 20 anos, mas ir ao espaço continua a ser perigoso e desafiante tecnicamente. Por isso é positivo ter pessoas inteligentes a juntar-se para encontrarem novas, diferentes e melhores formas de ir ao espaço e voltar. Eu adorava que ir ao espaço fosse acessível a todos, mas acho que ainda não chegámos lá. Já temos o que chamamos ‘turistas espaciais’, que voam na Space X ou na Blue Origin, que são uma espécie diferente de astronautas, se quisermos, porque não são profissionais. Mas é ótimo e espero que um dia o espaço se abra a mais pessoas. Neste momento é muito dispendioso, têm de se gastar dezenas de milhões de dólares se se quiser ser um turista espacial. Não é de facto para toda a gente.
E acha que algum dia vai ser para todos?
Consigo imaginar que sim, mesmo que hoje seja muito, muito caro, e os lugares sejam muito, muito limitados. Mas evoluímos muito nos últimos 40 anos. Mesmo desde os vaivéns - hoje temos uma variedade de aparelhos que nos podem levar ao espaço. E há muito mais participação internacional - temos a Agência Espacial Europeia, os canadianos, os japoneses, tivemos um astronauta brasileiro, temos pessoas de muitos países a participarem nos voos espaciais.