Emergência a bordo. Como os tripulantes aéreos se preparam para situações críticas
A viagem está mesmo no final. O Airbus A320 da TAP vem rumo ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Algo corre mal e acaba por fazer com que o avião não pare e saia desordenado da pista. A tripulação - que está sentada - dá as ordens: “Heads down, stay down!” (“Cabeças para baixo, fiquem em baixo”). Os gritos, dados na frente do avião, entoam nos quase 40 metros de comprimento. Ouve-se um sinal em toda a cabina, também em inglês, que dá ordem para “evacuar, evacuar”. Replicam-se as instruções da tripulação, desta feita para retirar os cintos de segurança. Inicia-se então a abertura da porta dianteira do avião, com o escorrega insuflável a servir para tirar quem está dentro do A320. Com toda a gente cá fora, a retirada dos passageiros é um sucesso e não há registo de vítimas.
O cenário parece verídico, mas, na verdade, faz parte de um treino. O treino que todos os tripulantes de cabina fazem, mas que esperam nunca vir a ter de utilizar.
O local escolhido para esta formação é um dos pavilhões da TAP, no aeroporto de Lisboa. Bem ao lado da pista onde, hipoteticamente, o Airbus A320 foi evacuado.
Quem por ali passa (apesar de ser uma zona de acesso restrito) talvez nem se aperceba, porque não há qualquer identificação, mas é ali, junto aos hangares, que tripulantes e pilotos treinam para garantir a segurança de todos quantos forem a bordo. Lá fora, o barulho dos aviões que levantam voo vai servindo de banda sonora. Cá dentro, são os gritos das simulações que se ouvem.
Estamos no centro nevrálgico de toda a formação de tripulantes da TAP, que na semana passada foi considerada a sexta companhia aérea mais segura do mundo. No pavilhão em frente há aquilo a que chamam mockups, ou seja, modelos em tamanho real das cabinas dos vários modelos da frota (há até uma de um 737, da Boeing, marca que a companhia deixou de operar em 2001, depois de 36 anos ao seu serviço).
Além das cabinas (que têm todas o respetivo escorrega insuflável aberto), há ainda outros objetos importantes, como nos explica, quando chegamos, um dos tripulantes que dali a alguns minutos estará a simular uma evacuação.
“Este armário aqui”, aponta, “tem os objetos do nosso kit de sobrevivência”. Por trás da vitrina veem-se coisas como rações de comida, purificadores de água, um colete salva-vidas ou ainda sinalizadores, “para o caso de acontecer algo e se estar numa zona remota”, explica. E, tal como com as normas de segurança, “é algo que se espera nunca vir a ser preciso usar”.
Ao lado, uma cadeira vaga e solitária, com um módulo agregado. É um exemplar de um dos assentos da classe executiva dos aviões. Está ali para que os aprendizes saibam, quando iniciam os cursos de formação, como operar o assento.
Do lado oposto há outro elemento importante: um cockpit simulado, com uma cadeira apenas e uma porta atrás. Tem um duplo propósito, como explicam os tripulantes que já por ali aparecem após o almoço e que vão continuar a formação de tarde: “Isto está aqui para que possamos aprender como operar a porta de entrada no cockpit, algo que mudou muito no pós-11 de Setembro. E depois também serve para quem chega de novo aprender a operar a cadeira, em movimentos como levantar, deitar ou mover, para o caso de existir alguma emergência com um dos pilotos.”
Atualizações de ano a ano
Além de tripulantes que vão chegando, há nas instalações onde estamos pilotos da companhia aérea nacional. Também eles chegam ao pavilhão para fazerem aquilo a que chamam, transversalmente, um “refrescamento”. No fundo, pequenas formações que servem para atualizar e relembrar conceitos, salvaguardando a segurança nos voos.
E ainda que, a vários milhares de pés de altitude, as duas áreas cooperem, tripulantes e pilotos fazem os refrescamentos separados. Enquanto entramos no simulador da cabina que dali a pouco tempo será evacuada, os pilotos, numa sala à parte, vestem fatos de proteção contra fumos químicos, olhando para uma apresentação.
“Cada refrescamento é feito de ano a ano”, conta-nos João Cunha-Rêgo, formador e também ele tripulante de cabina. Sentados na terceira fila do simulador do A320, conversamos um pouco sobre a formação das tripulações, que se inicia “com um curso básico intensivo”, que começa “com os aspetos mais comerciais” dos voos, a “parte mais visível”. Ainda assim, explica, “a maior parte” dos processos que aprendem não é visível, ou seja: “Evacuações, procedimentos de pressurização, turbulência severa, artigos proibidos, passageiros desordeiros e emergências médicas.” Terminada esta fase mais intensiva, os tripulantes entram então ao serviço e acabam por voltar a estes treinos anualmente, algo que é “obrigatório por lei”, feito “em várias temáticas”, mantendo assim a proficiência das tripulações. Tudo isto sempre com base nas normas internacionais.
O simulador onde estamos sentados replica em (quase) todos os aspetos os vários cenários a bordo. Desde evacuações em terra (como aquela a que assistimos) ou, até, fumo na cabina. Ainda assim, o treino para fogos é feito noutra divisão, à qual iremos depois. Isto significa que situações como aquela que se viveu no Japão no passado dia 3 de janeiro (em que um Airbus A350 se incendiou após colidir com outro avião na pista do aeroporto internacional de Tóquio) são também treinadas e acauteladas. “Havia labaredas e pouco fumo, como depois se viu. Numa situação como essa, aquilo que fazemos é manter a calma e temos um tempo em que temos de aguardar ordens de evacuação. É nesse tempo de espera que temos de observar o interior e o exterior e perceber as condições, estando sempre prontos para o início da evacuação”, diz. E o fator humano é também treinado nestes simuladores? “Sim. Treinamos situações com passageiros incapacitados, com limitações físicas, pais com crianças abaixo dos dois anos. Isso tudo está acautelado, tal como aqueles casos de passageiros mais disruptivos.”
No mesmo sítio, Luís, tripulante desde 1996 e chefe de cabina desde 2012, fala com o DN. “É um processo exigente, sempre a dar tudo para podermos ter os padrões de segurança altos como queremos ter”, resume. Luís é também formador desde 2017. Apesar de a TAP admitir tripulantes já certificados, por vezes a companhia abre cursos para formar novas tripulações. “Normalmente, um curso básico varia entre um mês e meio e dois meses intensivos.”
Em 27 anos de experiência, o operacional nunca teve qualquer aterragem de emergência ou evacuações. “Costumo dizer que treino, aqui, e dou formação para coisas que espero que nunca me venham a acontecer”, brinca. Tem, no entanto, algumas emergências médicas a bordo já no currículo. “Os tripulantes têm curso básico de socorrista, sabem fazer massagens cardíacas se for caso disso ou até usar desfibrilhadores, que há nos aviões.” Mas o primeiro recurso nestes casos é também o mais conhecido, e passa por questionar: “Há algum médico a bordo?”
Graças às novas tecnologias, as tripulações têm já possibilidade de contactar a emergência médica através de uma empresa própria, que “dá acompanhamento a partir do chão”, e com base nisso e nos sintomas descritos “decide-se então se se aterra ou se se pode continuar”.
“O passageiro normalmente não tem noção deste treino”
Dando formação há quase sete anos, Luís confessa que muitos dos instruendos, quando chegam, “não fazem ideia do que isto é. Pensam que é servir cafés, que é aquela parte do dia a dia que se observa dentro do avião”. Mas “quem estiver atento” facilmente perceberá que há muito mais para além dos cafés e dos bons-dias à entrada para cada voo. Exemplo disso é o caso da evacuação, a cuja simulação assistimos minutos antes.
“Nós antecipamos situações que possam correr menos bem. Num caso como o que simulámos há pouco, se as bagagens não estiverem bem arrumadas, essa bagagem pode ser um obstáculo para a saída dos passageiros. Quem estiver atento e for mais compreensivo percebe facilmente isso. O passageiro comum não tem noção deste treino, normalmente”, que inclui ainda episódios de despressurização da cabina (quando caem as máscaras de oxigénio do compartimento por cima de cada banco), ou os casos de passageiros desordeiros, para os quais as tripulações também estão preparadas. No fundo: “O tripulante está lá para garantir a segurança dos passageiros do ponto A até ao ponto B.”
Ainda assim, Luís deixa um alerta: a segurança a bordo passa também pelo comportamento dos passageiros e pelo cumprimento das regras de segurança, cujo briefing acontece sempre antes da descolagem. “Por exemplo, se o colete salva-vidas for insuflado cá dentro e a água calhar a entrar, os passageiros podem ficar a flutuar e isso representar um problema e um obstáculo para a evacuação do avião”, explica.
A formação inclui também episódios de fogo a bordo. Para ele, um incêndio é “o pior que pode acontecer”. “O fogo rapidamente se alastra e pode consumir o avião. O tripulante tem de ser muito rápido a identificar, a reagir e a atuar nesta situação.” Por isso todos os funcionários da TAP passam por um treino específico de fogos a bordo. Não tendo capacidade nos simuladores de cabina para replicar fumo no ambiente com recurso a chama, o treino é feito fora do pavilhão onde nos encontramos. Então saímos.
Passando pelo modelo de cabina do único widebody da TAP (o A330, mais largo e maior, usado em viagens mais longas), saímos do pavilhão dos simuladores e passamos para a rua. Cá fora, viramos à direita e entramos num contentor branco, cuja marca distintiva é o nome da empresa alemã Flame Aviation.
Dentro do contentor há uma secção envidraçada com uma representação em metal de algumas partes do avião: bagageiras superiores, cadeiras, tabuleiros para computador e fornos. É aqui que é feito o treino de combate a incêndios a bordo, podendo ser concebido em situações diversas. Há ainda capacidade para encher extintores que permitam apagar o fogo, simulando contextos específicos. Afinal, a aviação é a indústria “mais regulada do mundo”.