"É preciso criar uma mediadora de afetos na escola"
Se as especialidades da psicologia tivessem denominações na área dos sentimentos, Cláudia e Silva Vieira seria uma psicóloga dos afetos, dos afetos das famílias e da escola. Desde que começou a trabalhar que aprendeu "a trabalhar de uma forma próxima e com o coração". O país onde deu os primeiros passos na carreira também não será alheio à forma de atuar - mal terminou a licenciatura em Psicologia Educacional foi convidada para fazer um estágio em Guanhães, Minas Gerais, no Brasil.
"Aprendi a explorar a criatividade, construindo espaços educativos promotores de desenvolvimento com poucos recursos e equipamentos numa creche que acolhia crianças com grave carência económica", diz a psicóloga e terapeuta familiar. Mais tarde, trabalhou num Lar de Infância e Juventude com crianças e jovens vítimas de maus-tratos e negligência, em Setúbal, cidade onde nasceu e onde mora. "Esta experiência fez-me perceber o impacto da ausência do afeto no desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças. Construir com as famílias o regresso destas jovens a casa foi o grande desafio."
A experiência profissional alargou-se com famílias beneficiárias do rendimento social de inserção, altura em que percebeu que precisava de novas ferramentas para trabalhar com as chamadas "famílias desafiantes". "Comecei então a formação como terapeuta familiar e hoje, olhando para trás, sei que muito mudou depois disso. Mudou enquanto mãe de dois filhos, irmã, filha, neta e mulher e, no trabalho, trouxe-me novos olhares sobre o outro. Mudei a lente, passei a olhar para o outro de forma cinematográfica e abandonei o olhar fotográfico do aqui e agora. E a grande aprendizagem foi a mudança de abordagem, mais colaborativa e próxima, acreditando nas competências das famílias, retirando o foco das fragilidades e olhando para a crise como uma oportunidade."
É com essa energia que inicia o percurso no Agrupamento de Escolas Lima de Freitas, também em Setúbal. A direção do agrupamento propunha o trabalho com as famílias pouco participativas, com baixa literacia e com pouco interesse pelo percurso escolar dos filhos. Muitas dessas famílias pertencem à comunidade piscatória e vivem no bairro onde vão dar as escadas em que a psicóloga foi fotografada. "O desafio era criar laços com as famílias. Fiquei radiante, criar um gabinete com vista a desenvolver uma conexão positiva com as pessoas! Hoje sinto-me como peixe na água, pois a minha história pessoal encontrou-se com a profissional, no meu bairro e na minha escola, a fazer aquilo que amo... O gabinete permite criar laços entre a família e a escola, entre a rede social (EMAT, CPCJ, técnicos de RSI), entre os alunos e os professores, entre os técnicos de saúde e a escola... Com esta proximidade, tem conseguido criar pontes e derrubar barreiras. O exemplo disso é que hoje algumas famílias, com filhos mais velhos e que desistiram da escola, participam ativamente no percurso escolar dos mais novos.
"Percebi que temos sobretudo de ajudar a mudar a perceção que estes pais têm da escola, pois também eles viveram uma história difícil no contexto escolar. Também a escola tem expectativas baixas em relação a estas famílias... O grande segredo desta relação é a proximidade, o olhar sem julgamento e o espaço para o afeto."
"Por tudo isto, a minha ideia para o país é criar uma escola de afetos. Tudo parece indicar que chegou o momento: temos um Presidente da República conhecido como o "Presidente dos afetos", algumas cidades que se nomeiam cidades dos afetos, já houve até o I Encontro da Cidade dos Afetos (2017-Barreiro). Em contexto escolar já existe o dia dos afetos ou a semana dos afetos... Contudo, temos de ser mais ambiciosos, o afeto e a proximidade são ingredientes imprescindíveis no percurso educativo com sucesso. Assim, deverão estar sempre presentes em contexto de sala de aula, intervalo, reuniões de pais, conselhos de turma, direções, entre outros momentos." E vai mais longe: "É preciso criar em cada escola um gabinete com uma "mediadora de afetos" que possa ser responsável por projetos de promoção de competências sociais e emocionais nos alunos, formação em mediação de conflitos (professores, auxiliares de ação educativa), projetos de promoção de competências parentais positivas. Este espaço permitirá criar laços próximos entre os diversos intervenientes no processo de aprendizagem do aluno e construir um caminho em que todos os intervenientes são corresponsáveis pelo sucesso e desenvolvimento dos quatro pilares da educação, segundo a Unesco (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser)."
Cláudia Vieira não tem dúvidas de que estes pilares estão mais fortes 31 anos após a adesão de Portugal à União Europeia, constatando-se melhorias significativas nas diversas áreas. Em que faz questão de salientar o aumento da rede de apoio social e da escolaridade. "Os conceitos-base da integração estão cada vez mais consolidados através da participação ativa, corresponsabilização e espírito crítico. Contudo, ainda se denota fragilidade na identidade europeia, que ainda está em construção. Irá tornar-se mais forte através da construção de um verdadeiro sentido de pertença à UE. Onde cada um de nós irá percecionar os ganhos e as perdas como desafios de um caminho para o crescimento global."
Um crescimento que, em seu entender, também se faz de solidariedade - e de outro tipo de afetos -, como a aceitação dos refugiados. "Sabemos que a resposta não pode ser simples, mas urge uma ação concertada e solidária entre os diversos Estados que vise o acolhimento imediato e o respeito pelos direitos humanos."
Um acolhimento que, defende, tem de ter presente que os refugiados carregam a dor das experiências traumáticas fruto de um contexto de guerra. "Cabe-nos a todos ajudá-los a reconstruir um novo caminho neste novo destino que desconhecem."