"Dunant não foi um herói, agiu em nome da humanidade e da solidariedade com o outro e com isso deixou um importante legado"
É preciso ver a guerra com os próprios olhos, como fez Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha, para percebermos o sofrimento humano por trás da geopolítica e das estratégia militar?
Eu diria que sim. A guerra pode ser sempre vista e explicada a partir de diferentes ângulos e perspetivas que definem a forma como nos posicionamos perante ela. Se nos limitarmos a uma perspetiva geopolítica, militar e de afirmação de poder, perdemos vista daquelas que são as consequências mais dramáticas da guerra. E isso distorce e limita aquela que deve ser a prioridade: pôr-lhe fim e salvar vidas.
Sei que esta figura, Dunant, lhe diz muito: quais eram os grandes traços de personalidade deste suíço?
Henri Dunant era um jovem suíço que, numa viagem de negócios a Itália em 1859, testemunha o horror da Batalha de Solferino, um dos episódios mais sangrentos da segunda guerra pela independência de Itália, que envolveu mais de 300 mil homens de três exércitos e culminou na morte de e ferimento de milhares de soldados em combate num só dia. O choque e a incredulidade perante o que viu foi decisivo para que decidisse que não poderia ficar indiferente ao sofrimento dos que tinham sido deixados a morrer no campo de batalha. Dunant poderia ter ignorado e seguido o seu caminho. Em vez disso, tomou a iniciativa de cuidar dos feridos, prestando cuidados médicos, mobilizando ajuda, escrevendo cartas de conforto aos familiares das vítimas. Este episódio marcou para sempre a sua vida, mas também toda uma forma de conceber o humanitarismo. Foi desta experiência que resultou o regime humanitário que hoje conhecemos, assente em normas de direito internacional humanitário, institucionalizado naquela que é a primeira e mais reconhecida organização humanitária a nível internacional, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, e pensado para trazer alguma humanidade à guerra. Este ano assinala-se o 160.º aniversário da publicação do seu livro Uma Memória de Solferino, considerado um dos mais importantes tratados sobre Humanitarismo. Dunant não foi um herói, agiu em nome da humanidade e da solidariedade com o outro e com isso deixou um importante legado: a certeza e a convicção de que não podemos ficar indiferentes ao sofrimento humano.
A Cruz Vermelha é o que resta de humanidade no meio de uma guerra?
O espírito humanitário subjacente a organizações desta natureza é o que permite dar alguma esperança às vítimas da guerra e das crises dela decorrentes. A CV é, historicamente, reconhecida pelo seu papel em resposta a crises humanitárias, em particular resultantes de conflitos armados violentos que foram evoluindo para contextos em que as populações civis se tornam alvos prioritários de guerra, submetidas a atos de violência hediondos e a enorme vulnerabilidade. Nesses contextos, em que a Humanidade é a primeira vítima da guerra, a CV atua com base em princípios de humanidade, de imparcialidade, sem distinguir entre vítimas, e de neutralidade, sem tomar parte nos conflitos. É verdade que a natureza complexa das guerras, sobretudo a partir da década de 90, colocou desafios importantes à Cruz Vermelha, em particular no que toca ao princípio da neutralidade. O argumento da CV é o de que tomar partido em conflitos geradores de crises humanitárias de larga escala significa comprometer o acesso às vítimas, algo inaceitável para uma organização que tem na imparcialidade e no imperativo humanitário o seu sentido de existência.
Combate-se hoje na Europa, que desmente assim depois da Jugoslávia e da mais recente guerra no Nagorno-Karabakh, ser um continente de paz depois da Segunda Guerra Mundial. Esta invasão da Ucrânia pela Rússia surpreendeu-a?
Sim. Apesar da instabilidade, da agudização do discurso por parte de Putin e do reforço militar na fronteira com a Ucrânia nos dias que antecederam a invasão, a verdade é que a possibilidade de a Rússia invadir um país soberano em total violação dos princípios fundamentais do direito internacional não me passava pela cabeça, pelas consequências que teria, como estamos a ver que está a ter, na ordem internacional e na arquitetura de paz e segurança europeia e mundial. Se há lição que devemos tirar é a de que há uma responsabilidade coletiva que tem de ser assumida e que terá de resultar numa reflexão profunda e muito séria sobre como poderemos reconstruir a ordem mundial no sentido de criar condições de estabilidade e segurança para todos.
Nesta e noutras guerras, há um caminho para a paz que não passe pela vitória de um lado e subjugação de alguma forma do outro?
A defesa de soluções pacíficas faz-me dizer que sim e que essa deve ser sempre a prioridade. A realidade, contudo, mostra o quão difícil é esse caminho, sobretudo em contextos de guerra como aquela que hoje vivemos, ilegal, sem qualquer justificação e em que as frágeis tentativas de negociação acabam reféns de uma enorme desconfiança entre as partes, com a parte agredida empurrada a ceder para que o agressor possa afirmar a sua força. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse recentemente que é já tempo de priorizar uma solução diplomática séria para esta guerra indefensável e que já não pode ser ganha. Eu partilho deste apelo, porque já todos perdemos.
Tem-se falado de crimes de guerra, também de tratamento abusivo de prisioneiros. Voltando ao legado de Dunant, sem as convenções de Genebra tudo seria bem pior, mesmo em 2022?
Sem dúvida. O debate em torno da insuficiência dos princípios e normas internacionais é recorrente. Mas um mundo sem estas regras, que são fruto da negociação dos e com os Estados, seria pior, não tenho dúvidas. É verdade que perante imagens como as que vimos em Bucha, em Mariupol, ou em tantos outros cenários onde parece não haver limites para a desumanidade na guerra, todas essas normas e regras nos parecem esvaziadas. Mas é exatamente nesses momentos que as devemos recuperar e reforçar para que os responsáveis por estes crimes possam ser responsabilizados e punidos. Isso implica compromisso e ação sérios da parte de todos os que consideram que, ainda que imperfeitas, as normas humanitárias internacionais são parte importante do que sustenta a Humanidade.
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