Droga: Tráfico e consumo a céu aberto aumentam no Vale de Alcântara
Centenas de consumidores adquirem e consomem droga a céu aberto na Quinta Loureiro, junto à avenida de Ceuta, em Lisboa.

Droga: Tráfico e consumo a céu aberto aumentam no Vale de Alcântara

Autarcas e organizações que intervêm no terreno alertam várias entidades, através de uma Carta Aberta, para os riscos desta realidade. O município de Lisboa atira a responsabilidade para o Governo. Há quem defenda a legalização de todas as drogas para controlar estes problemas.
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“Tenho três filhos, de 11, 14 e 20 anos. Deixei-os entregues à minha mãe e saí de casa, para eles não estarem a ver a mãe neste estado”. Este é o frio e consciente autorretrato de Alexandra, que aos 43 anos sofre uma degradação física profunda e que, por isso, preferiu entregar os filhos aos cuidados da avó e viver na rua, evitando que estes acompanhassem as consequência do consumo de crack [cocaína cozida em amoníaco e fumada] de que é dependente. “Sou funcionária pública, trabalho como assistente operacional num hospital mas meti uma licença sem vencimento. Já ultrapassei o tempo de baixa médica e não quero perder o meu vínculo à função pública nem a ADSE para mim e para os meus filhos”, prossegue a toxicodependente. 


Alexandra teve uma entrada tardia no mundo da droga. “Experimentei por curiosidade, com o meu irmão. Fui vítima de violência doméstica, o meu marido esteve preso e, entretanto, sei que ele emigrou e nunca mais quis saber dos filhos. Mas não vou pôr a culpa dos meus disparates noutras pessoas”.

Tal como Alexandra, dezenas de consumidores estão acocorados, debaixo da ponte pedonal que liga o passeio da avenida de Ceuta ao bairro da Quinta do Loureiro, onde adquirem a droga. O tráfico, tal como o consumo, é feito a céu aberto. Uma realidade que preocupa várias entidades que atuam no terreno e ainda os autarcas Davide Amado, presidente da junta de freguesia de Alcântara, e Pedro Costa, presidente da junta de freguesia de Campo de Ourique, à qual pertence aquele bairro, localizado onde outrora se erguia o Casal Ventoso.

Foram estes os autores de uma Carta Aberta dirigida a Carlos Moedas, José Luís Carneiro, João Goulão (presidente do ICAD), Ana Vasques (presidente do Instituto de Segurança Social), e Luís Goes Pinheiros, presidente da AIMA. “Sou autarca em Campo de Ourique desde 2017 e o problema da droga nunca esteve tão mal”, começa por dizer Pedro Costa, filho do primeiro-ministro demissionário, António Costa. “Há uma sensação de insegurança e existe um aumento da criminalidade, porque não há um aumento do consumo sem um aumento do tráfico de droga”, acrescenta o autarca.

De facto, na Carta Aberta, pode ler-se que existe “(...) um aumento do número de pessoas a realizarem consumo de substâncias psicoativas a céu aberto e em fracas condições de salubridade e assepsia”. Uma realidade que, para Pedro Costa, tem uma geografia bem definida. “Está concentrada na Quinta do Loureiro, onde há tráfico e consumo”. Porém, para o presidente da junta de Campo de Ourique a questão tem várias nuances. “Há um problema policial, há investigação criminal e um reforço da presença policial. Depois, há a matéria de saúde. Trata-se de um problema de saúde pública, e também um problema de saúde dos consumidores”, avança Costa.

Algo que vai, mais uma vez, ao encontro do conteúdo da Carta Aberta: “No espaço público acumulam-se seringas e outros materiais descartáveis associados ao consumo de substâncias psicoativas, colocando em risco a saúde pública, seja dos próprios consumidores, como de todas as pessoas que desenvolvem o seu quotidiano nestes espaços (moradores, estudantes, trabalhadores, transeuntes).”

Por fim, o presidente da junta de Campo de Ourique aponta “o problema social. Se não reforçarmos o investimento na comunidade daqueles bairros [Loureiro, Quinta do Cabrinha e Ceuta Sul, onde foram realojados os moradores do Casal Ventoso], e em particular nos mais jovens, vamos condenar mais uma geração, e outra, e outra, à mesma realidade, do consumo e tráfico de droga”.

Ainda de acordo com a Carta Aberta, há mais pessoas a sofrer com o agravar do tráfico e consumo de droga naquela zona da cidade. “Ao demais, assiste-se, sobretudo, ao aumento de pessoas em grande sofrimento humano e vulnerabilidade. Paralelamente, verifica-se um aumento do número de pessoas em situação de sem abrigo, a pernoitarem em toda a freguesia de Alcântara e Campo de Ourique”.


O medo e a insegurança tomam conta deste pedaço da cidade. “Muitas vezes o pessoal das bancas [locais de venda de droga] atira-nos pedras. Há uns dias deram uma tareia a um rapaz, porque falou com uns jornalistas”, relata outro dos consumidores de crack, na Avenida de Ceuta. A Carta Aberta também não deixa este assunto de parte: “A conjunção supra explanada tem potenciado reação social adversa, sendo vários os relatos de residentes sobre o nível de medo e perceção de insegurança sentida na rua e dentro dos prédios e elevadores.” Costa observa: “Tenho relatos de moradores que se queixam de ser obrigados a dormir de porta aberta, para que quem se dedica ao tráfico possa fugir para suas casas.” 


Pedro Costa garante que já enviou “dezenas de cartas e ofícios à câmara municipal e a única resposta que obtivemos foi o silêncio”. A Câmara Municipal de Lisboa (CML), na figura do seu presidente Carlos Moedas, foi um dos destinatários da Carta Aberta. A resposta, ao DN, surge pela voz da vereadora dos Direitos Humanos e Sociais, Sofia Athayde. “As críticas oportunistas agora apontadas à atuação da CML não têm qualquer razão de ser. A coligação ‘Novos Tempos’ [PSD/CDS] desde o início do seu mandato, tem reforçado significativamente os meios e os recursos destinados à estratégia para a toxicodependência de modo a minorar os seus impactos sociais”.

Ao mesmo tempo, a edilidade passa as culpas para o Governo. “Durante este último ano, a CML esteve sozinha no apoio às diversas instituições no terreno, enquanto o Governo esteve parado, sublinhamos, durante um ano, enquanto extinguia o SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) e criava o ICAD [Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências]”. Sofia Athayde relata, ainda, que “a CML continua, até hoje, a aguardar resposta do Governo para o protocolo que, em dezembro do ano passado, assinou com o ICAD que prevê um forte reforço na prevenção da toxicodependência, a duplicação da oferta na sala de consumo assistido da Quinta do Loureiro, e a disponibilização de uma nova sala, também para consumo assistido, na zona oriental da cidade. Os atrasos nas tomadas de decisão são totalmente imputáveis ao Governo”.


Perante isto, o DN contactou o Ministério da Administração Interna, tentando obter uma posição do ministro, José Luís Carneiro, outro dos destinatários da Carta Aberta. “Não temos tempo para dar uma resposta”, informou Manuel Freire, um dos assessores, apesar de o DN ter dado um prazo de três dias para este fim.


Quem não se escuda no silêncio é o médico João Goulão, presidente do ICAD. “Partilho as preocupações que são expressas na carta. Eu próprio venho dizendo, há mais de um ano, que a situação se está a deteriorar naquela zona da cidade”. Ainda assim, conhecedor profundo, há várias décadas, dos problemas da droga em Portugal, João Goulão afiança: “Estamos muito longe do que era a realidade do Casal Ventoso, nos anos 90. Naquela altura, o Casal Ventoso era o maior supermercado de droga da Europa e movimentavam-se, por ali, cerca de cinco mil pessoas por dia.” Ainda assim, o médico e presidente do ICAD observa: “Há ali, novamente, uma concentração importante ao nível do tráfico de droga. Os consumidores estão a céu aberto. É preciso que voltemos a ter possibilidade de oferecer a todos aqueles que se querem tratar, a possibilidade de o fazerem.”


Um dos locais de captação de toxicodependentes para uma mudança de estilo de vida é, precisamente, a sala de consumo assistido [’sala de chuto’]. Um projeto cofinanciado pelo ICADe pela CML. “Aquele espaço, além do impacto que tem nos consumos, constitui também um foco de captação e de ganhar confiança dos profissionais de saúde, para conseguirem mobilizar e motivar as pessoas para uma mudança de estilo de vida. É isso que se pretende; não o eternizar dos consumos. O espaço de consumo vigiado não é um fim em si próprio, é um utensílio que pretende atingir estes fins”, destaca Goulão.


No terreno, há diversas associações a tentar minorar o impacto deste flagelo social. A Crescer é uma delas.  “A maior parte dos consumidores são homens, na casa dos 40 anos, com prevalência de consumo de crack. Muitos estão em situação de sem abrigo, desempregadas e temos muita população migrante, o que não se via antes”, explica Américo Nave, diretor executivo da Crescer, que defende “a legalização de todas as drogas”. E explica: “Todo o dinheiro que se investe na repressão ao tráfico serviria para ajudar milhares de pessoas que vivem nos bairros onde, muitas vezes, uma forma de sobreviver é dedicarem-se ao tráfico, até porque foi o que viram durante o seu crescimento. Com a legalização acabaria grande parte do tráfico. E seria, também, uma porta de acesso para tratamentos. Os consumidores poderiam construir relações de confiança com profissionais de saúde e sociais, levando-os ao tratamento.”

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