Os insultos e tentativas de agressão de “negacionistas” , que atingiram o então coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, Gouveia e Melo, e o então presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, resultaram na acusação de 12 pessoas, segundo o despacho a que o DN teve acesso..A investigação da Unidade Nacional de Contraterrorismo da Polícia Judiciária, titulada pela 11ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, identificou apenas uma pequena parte dos suspeitos, mas conseguiu recolher provas e testemunhos para acusar sete destes “negacionistas” por um crime de ofensa à integridade física, na forma tentada contra o atual Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA)..No caso de Ferro Rodrigues foram acusados um total de 12 arguidos (sete dos quais coincidentes também com os do CEMA): quatro por ofensa à integridade física, na forma tentada; oito pelo crime de injúria agravada, dos quais quatro foram também acusados de dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, na forma consumada, contra dois Chefes do Corpo de Segurança Pessoal da PSP, que protegeram o também Conselheiro de Estado..O episódio que envolveu o, na altura, vice-almirante, sucedeu junto ao Centro de Vacinação, em Odivelas, a 14 de agosto de 2021, no arranque da face de vacinação dos jovens dos 16 e 17 anos. Tinha à sua espera cerca de 40 manifestantes vestidos de branco máscaras, com cartazes com dizeres da temática negacionistas..Entre outras, foram gritadas em direção do atual Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA) expressões como “assassino”, “genocida”, “genocida de crianças”, “filho da puta”, “és um cabrão”, “vais ser julgado num tribunal de Nuremberga”, “psicopata”..Na altura, apesar dos empurrões e dos insultos, o Almirante fez questão de passar pelo meio dos manifestantes, o que gerou alguma tensão, e entrar pela porta da frente do edifício onde era a apresentação. .“O negacionismo e obscurantismo é que são os verdadeiros assassinos”, reagiu então Gouveia e Melo, lamentando que o “obscurantismo ainda exista no século XXI”. Admitiu que as pessoas “têm direito às suas opiniões”, mas “não têm é o direito a impor a sua opinião aos outros”. Principalmente quando essa “opinião é imposta já de forma violenta” porque “deixa de ser democracia”..Não foi este, porém, o entendimento da procuradora do DIAP, Felismina Franco, que classificou mesmo esses insultos como “liberdade de expressão” e que “a retórica destes indivíduos é direcionada para os efeitos nocivos da vacinação, nomeadamente dos efeitos adversos que as vacinas trouxeram, causando mesmo em alguns casos, a morte dos inoculados”. .A magistrada considerou que “que as palavras de ordem dirigidas são ao ofendido são claramente criticas ao processo de vacinação em curso a jovens e posteriormente a crianças do que à pessoa em concreto do Almirante Gouveia e Melo” e que as mesmas “têm de ser entendidas como tendo sido proferidas no exercício da crítica objetiva, sendo que o chamado direito de crítica objetiva não se descaracteriza pela verificação de pequenos desvios ou transgressões que se enquadrem no exercício da liberdade de expressão”..O MP sublinha que “a liberdade de expressão apenas deve ser restringida nas situações em que os direitos de personalidade, máxime o direito ao bom nome e reputação (art.o 26” CRP) sejam verdadeiramente postos em causa e de forma significativa”, recordando que “as expressões proferidas no âmbito da referida manifestação, face à jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores portugueses, bem como do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não tem relevância jurídico penal”..No entanto, sete destas pessoas aqui envolvidas - Anabela Rodrigues (conhecida por “Ana Desiderat”, José Francisco, Sónia Costa, Raquel Paraíba, Maria Inês Raposo, Pedro Ribeiro e Daniel Lança - foram acusadas de tentativa de agressão por tentado empurrar Gouveia e Melo, impedido a passagem e tentando furar a barreira de segurança..Estes sete arguidos estiveram também envolvidos e foram identificados no incidente com o antigo secretário-geral do PS, além de outros cinco também acusados (Luís Filipe, Maria Janeiro, Jorge Torres, Ricardo Santos e Pedro Abreu)..Os limites da liberdade de expressão.Cerca de um mês depois (11 de setembro) do caso do Almirante, Ferro Rodrigues almoçava com a mulher num restaurante em frente ao Parlamento, num dia em que estavam a decorrer junto à “Casa da Democracia” três manifestações, “Defender Portugal”, com “Ana Desiderat” como uma das promotoras; “Defender Portugal”, na qual Luís Filipe era também promotor; e “Defesa das nossas crianças”. .O país vivia, na altura, tal como muitos países do mundo, um crescendo dos chamados “movimentos negacionistas e antissistema”, uma tendência registada no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) relativo a esse ano. “A sociedade portuguesa é, também, confrontada com fenómenos de polarização ideológica..Neste contexto pandémico, também se aproximaram de movimentos sociais inorgânicos, nomeadamente dos grupos negacionistas da pandemia”, assinalou o Sistema de Informações de Segurança (SIS) na sua análise publicada no RASI..Recorde-se que em novembro de 2021 Portugal era o país da União Europeia com a maior cobertura vacinal contra o coronavírus, com 86,5% da população com o esquema de imunizações completo..Quando reconheceram Ferro Rodrigues no restaurante, vários manifestantes começaram a juntar-se junto à janela e a gritar. “Pedófilo”, “assassino”, “canalha, ordinário’, ‘filho da puta”, “badalhoco”, “porco”, “bandido” - são alguns exemplos das expressões usadas. .Segundo o MP uma das principais protagonistas das injúrias foi Desiderat que, empunhando um megafone, ameaçava: “está marcado esse restaurante, está marcado pelo povo português, nunca mais vais ter paz, nem este restaurante vai ter paz, porque acolhe um cliente que é pedófilo e que é assassino (...), “(...) Para ter um canalha pago por nós, ordinário”..Apercebendo-se do número elevado de pessoas no exterior, Ferro Rodrigues contactou os elementos do Corpo de Segurança Pessoal (CSP) para que o viessem buscar, de carro, “de forma a evitar ofensas à sua honra e integridade física”, em concreto dois chefes da PSP que se deslocaram ao interior do Restaurante para tentarem resgatar o segunda figura do Estado em segurança. .De acordo com a descrição feita pelo MP na acusação, quando estavam a chegar ao automóvel, quatro dos agora acusados “tentaram alcançar” Ferro Rodrigues “com vista a atingi-lo na sua integridade física da forma que conseguissem, fosse com empurrões, puxões, socos ou com os objetos que traziam nas mãos” ..Ao protegê-lo, os dois chefes acabaram por ser atingidos “com empurrões e chapadas e pontapés”. O MP não teve dúvidas de que, caso estes “guarda-costas” não interviessem “teriam atingido na sua integridade física o ofendido Eduardo Ferro Rodrigues, tal era o estado de animosidade em que se encontravam os arguidos”..Os polícias também ainda ouviram dos arguidos expressões como “vêm aí os capangas, não temos medo de vocês, palhaços...”, “palhaços, filhos da puta...”, “não vos dão subsídios e ainda os defendem”..Quanto às ofensas contra Ferro Rodrigues, ao contrário do que concluiu em relação a Gouveia e Melo (“em que se criticou na área dos seus comportamentos estritamente profissionais/funcionais e não atinge o núcleo da dignidade pessoal”), neste caso “palavras existem que ultrapassam a liberdade de expressão que acima aludimos e que são suscetíveis de atingir o direito ao bom nome e reputação do ofendido em causa e de forma significativa”..Nesse sentido, Felismina Franco, entendeu que “as expressões “pedófilo”, “nojento”, “badalhoco”, “porco” e “bandido” se dirigem expressamente ao próprio Eduardo Ferro Rodrigues, que visam atingi-lo na sua honra, reputação e bom nome, e não se enquadram em nenhum dos núcleos, nem de liberdade de expressão por ser uma critica ao comportamento profissional do visado que desempenha determinadas funções naquele momento em concreto, nem tão pouco aquelas que são ditas no calor de uma manifestação e que enquadrámos no vernáculo e na falta de educação”.