O grande apagão elétrico e de telecomunicações empurrou, depois da hora de almoço desta segunda-feira, milhares de pessoas para as ruas do centro de Lisboa.A calma e a resignação marcavam bem o ambiente: "vamos esperar", "temos de esperar", mas com sorrisos.Turistas, residentes, trabalhadores dos vários serviços que servem o fluxo diário inexorável desta Lisboa, desde o Intendente, pela Rua do Benformoso abaixo, entrando pela Baixa, desaguando no Terreiro do Paço: o ambiente convidava. Dando um salto a Alvalade e ao Oriente, também havia uma espécie de harmonia.Passado o frenesi do trânsito empacotado por não haver semáforos, dos elétricos suspensos na Rua da Conceição, dos muitos que fugiram para casa (dispensados do trabalho) enquanto era tempo, a atmosfera de concórdia convidava à passeata, em ziguezague.Muita gente, de facto, poucos telemóveis na mão (para não gastar a bateria), muitas caras e pescoços sob um sol forte, a pedir sombra. Estava muito calor, mas o vento húmido (diz que vai chover, outra vez) compensava o desgaste.O centro de Lisboa tem imensos turistas, sempre. Mas o trânsito, de repente, evaporou-se.. Sem internet, os carros TVDE e os planos de tanta gente para ir daqui para ali, cessaram no seu ritmo sempre infatigável.Mas não todos os planos, nem todas as vontades. Na alta Mouraria, em São Cristóvão, a família de quatro (franceses, o casal, a mais nova e o mais velho) comia com afinco os gelados no ponto. Foram os primeiros a dizer "très bon", "vamos esperar", enquanto bebiam do fundo dos copinhos de papel já húmidos e amachucados.Os vizinhos da Mouraria, sentados à sombra com imperiais bem frias na mesas, comentavam a tenacidade de um casal que sacou do jogo de dominó na esplanada mais finória do gastrobar, no outro lado da rua.Quem tinha fome de lanche e um ratinho no estômago, encontrou solução carnívora nas bifanas do Largo do Caldas. Não sem alguma luta. A famosa especialidade enfiada em pão continuou a ser expedida porque o "Afonso" pode: usa fogão a gás. Mas para lá chegar é preciso estar na fila, que ia em 20 metros, encostada ao prédio, resguardo estreito do sol ainda a pique e escaldante, que terminava na Rua de São Mamede.Mais abaixo, na Rua da Madalena, já no cruzamento do largo homónimo, um taxista entra em contramão. Queria descer para o Terreiro do Paço. Depois do aviso, veio a explicação: "estou cansado, desculpe, tenho o carro na reserva, não encontrei uma bomba".Na Rua da Conceição, seis elétricos suspensos desde as fatídicas 11h30, quando a luz se foi. Objetos amarelos, concorridos e apetecíveis, e isso nota-se pela quantidade de gente pendurada nos 28 vazios, ali postos em sossego, tantas selfies e alegrias de momento único foram cometidas em escassos segundos. Quando a internet voltar, é que vai ser.. Deslizando até ao Terreiro do Paço, parecia segunda-feira e era. Pessoas sem rumo, fixadas na luz grandiosa da praça, uma fila de trânsito imensa, parada, oportunidade para fotografar a maré cheia e o Cais das Colunas, e os barcos turísticos (a gasóleo) cheios, a lamberem o Tejo, como sempre.Os supermercados estavam todos fechados neste perímetro da Baixa. As lojas de souvenires e ímanes para o frigorífico, pelo contrário: a argúcia do comerciante puxou dezenas de garrafas de água de litro e meio para a porta, algumas tombadas no passeio à espera de novo dono. O preço era o normal para a época: dois euros por garrafa "pet", a temperatura ambiente.. Na Rua da Prata, novamente interrompida pelo colapso do caneiro subterrâneo (pós-terramoto), eis que um carro entra em contramão. Sem dramas, o polícia explicou (em portunhol) que não dá.E deram a volta e a miúda deles, pequenina, no banco de trás, comia um gelado intacto. Tinha ar condicionado, estava realmente feliz. Boa solução. Ela sabia.Depois da hora de almoço, é possível sair da Baixa e rumar a norte, sem dramas e sofrimentos de maior, usando os corredores ainda exíguos de sombra.Todos os comércios fechados, mas na Praça da Figueira perfila-se um novo mundo. Há fogões a gás, há gente a comer na rua. "Ainda temos sopa, como está calor...", diz o empregado da Casa das Bifanas (mais bifanas, Lisboa é boa nisto, parece). A sopa era boa, do dia.. No Martim Moniz, o vazio da fila imensa e inesgotável do elétrico 28 notava-se. Mas a praça estava cheia, na mesma. O supermercado estava encerrado, o enorme Centro Comercial da Mouraria (CCM), também.À beira do CCM, trabalhadores da logística delineavam um plano de fuga sem rede, sem bateria no telemóvel, em como voltar para casa. Onde mora? "Prior Velho, mas o 8 está a andar".O oito é o autocarro da carris 708, destino Sacavém, a solução suburbana diretamente do centro. À pinha, mas andava e era preciso esperar mais de meia-hora, seguramente.O dia da rádio e do gásNum dia como este, quem tinha um rádio a pilhas e um fogão a gás esteve mais informado e planeado. Na rádio (Antena 1), houve relatos assim: “esgotaram os fogões [a gás], só não levaram este que custa 2000 euros”.O DN encontrou uma casa que vende fogões pequeninos a gás e, disse o responsável, "foram todos". E ainda pessoas dentro dos carros a ouvir rádio. E uma subtil, mas visível corrida ao papel higiénico, outra vez, como na pandemia, vá-se lá saber porquê.Os rádios transistores esgotaram rapidamente em várias lojas de Lisboa, mais as lanternas e as pilhas. “Na Estefânia, numa loja chinesa pediram 28 euros por um rádio a pilhas quando antes custava 12 euros”, constatou o DN. Neste caso, houve solução, mas com inflação superior a 100%.Ao final da tarde desta segunda-feira, o DN também noticiou que a Proteção Civil registou várias ocorrências, neste caso, pessoas que ficaram presas em elevadores ou inundações em caves porque as bombas elétricas pararam com a falta de energia.Sem telecomunicações, vários hotéis de Lisboa (munidos de geradores a gasóleo) conservaram as redes de wi-fi a funcionar. Na entrada do Hotel Lutécia, ao lado do Teatro Maria Matos, à Avenida de Roma, a solução foi de valor e vários aproveitaram o passa palavra-passe.De Roma até ao Intendente ou ao Martim Moniz, é sempre a descer, como se sabe, cinco minutos ou menos de metro, não fosse estar encerrado.. Descendo a pé, chega-se com facilidade à Rua da Palma, tão dinâmica e fervilhante quando há eletricidade, mas esta segunda continuou a defender o seu estatuto de passeio público maior, mas com menos carros.Na subida suave a partir do Martim Moniz, a farmácia da Palma, que está sempre aberta, estava fechada. Todos os super e médios mercados de portas fechadas. Não foi o melhor dia para as mercearias de legumes e frutas vindos diretamente da China.Muitos agentes da polícia no pátio da esquadra da Palma esperavam, e nisto, alguém passa a correr porque não há comboio na ponte (25 de abril), mas vislumbra-se um final potencialmente feliz: "os barcos estão a sair e não se paga! (risos)".. Rua da Palma acima, já com apetite, nem as atarefadas churrasqueiras do frango a carvão estão a servir. Estores metálicos fechados. Os kebabs feitos nos tornos elétricos (rotis) não estão lá, a placa vertical está fria e escura em vez de laranja incandescente.Mas, depois, o vértice. No Intendente, virando novamente a sul, eis a Rua do Benformoso, e aí, a cidade como que renasce. Comedores onde se come, já com velas nas mesas para se ver melhor, o vai e vem dos rapazes que empurram carrinhos de mão carregados com sacas de 30 e 40 quilos de arroz basmati, o famoso e pioneiro Bangla Café, onde a fila para os doces se afirma e hirta.Uns rapazes encostados a um muro estão bastante contentes porque alguém ali perto tem um gerador e conseguiram carregar os telemóveis. As raparigas com véus gozam com eles enquanto comem gelados de várias cores e sabores. Eles estão meio alheados com a promessa de uns minutos de bateria. Mas elas é que sabem.Na rua pode beber-se chá quente que pode queimar a língua aos incautos. A infusão vem em termos profissionais enormes, autonomia térmica de 10 horas ou mais. Escalda, mas a tarde agora acalma, a temperatura baixa, a luz ainda não voltou.A rua estava tão cheia que parecia um final da tarde como os outros. E, se calhar, foi.