"Desperdiçar a proximidade da América Latina pode custar muito caro à Europa" 

Brunch com a diretora da Organização de Estados Ibero-americanos em Portugal, Ana Paula Laborinho.

Estamos a 15/20 minutos de carro de Lisboa, mas rodeados de verde. É aqui em Belas, num apartamento, que Ana Paula Laborinho hoje vive e o nosso encontro foi marcado no café do Clube de Campo idealizado por André Jordan, o criador também da Quinta do Lago, que vem logo à conversa ao ponto de me fazer confessar à diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos que li fascinado há pouco tempo a autobiografia deste judeu polaco cuja família se refugiou do nazismo no Brasil e que acabou por fazer do nosso país a sua casa.

Mas a nossa conversa vai começar por Lisboa, pela Alameda, onde Ana Paula viveu com os pais e mais tarde chegou a ter casa. "Nasci em 1957 e estava a acabar o antigo 7.º ano, no Liceu Filipa de Lencastre, quando se deu o 25 de Abril. Na véspera dos meus 17 anos. Depois há um ano em que por causa do processo revolucionário ninguém entrou para a faculdade e eu fui fazer serviço cívico. Na altura já tinha uma grande ligação com o Graal, da Maria de Lourdes Pintasilgo, que era um movimento de grande envolvimento social."

É curioso que, apesar de o catolicismo progressista da futura primeira-ministra marcar o Graal, Ana Paula tenha aderido, embora agnóstica, já numa fase laica, muito marcada pelas simpatias socialistas do pai, um antigo preso político, mas sem que isso atrapalhasse, exemplo precoce do espírito prático que muitos lhe reconhecem. "Fui requisitada para o Graal para fazer umas campanhas que eram de dinamização cultural e cívica, em que, junto das populações marcadas pela religião, explicávamos um pouco o que era a democracia. Começávamos pelo Padre-Nosso, até costumo dizer que andei a ensinar o conceito de democracia a partir do Padre-Nosso. Era muito este espírito da fraternidade, do trabalho conjunto como princípios da democracia. Foi em Trás-os-Montes e também na região da serra da Gralheira, zonas muito isoladas, mas também é preciso dizer que aprendi muito", relembra, entre risos. E acrescenta: "Foi uma grande experiência, conheci pessoas que nunca tinham saído da aldeia, não conheciam nada além daquilo. Até os debates em torno dos baldios duravam noite fora, era sobre a recuperação do direito aos terrenos baldios, por exemplo, em Trás-os-Montes. Foi uma enorme aprendizagem e tenho um enorme apreço por aquilo que são os portugueses e a sua capacidade de discernir o que está certo e errado."

Sobre a engenheira Pintasilgo, a quem o general Ramalho Eanes confiou, em 1979, a chefia de um governo de iniciativa presidencial que quase fez dela a primeira primeira-ministra da Europa (a britânica Margaret Thatcher antecipou-se uns meses), Ana Paula diz "ter a melhor das memórias". Sublinha, aliás, ser "também um produto do privilégio que tive ao poder ter contacto com Maria de Lourdes Pintasilgo. Ela gostava de se rodear de jovens, de pessoas, e gostava de escutar e só depois fazer as suas reflexões. A minha experiência é que ela refletia sempre muito além do seu tempo. Gostaria muito que ela cá estivesse para, de alguma forma, nos interpretar este tempo".

A universidade entra finalmente, em 1975, na vida desta atual colunista do Diário de Notícias e os anos na Faculdade de Letras, ainda antes de ser convidada para assistente, são passados a dar aulas no secundário, tanta era então a falta de professores. É uma época marcada também pelo nascimento da filha, Filipa, de quem fala com um brilhozinho nos olhos: "Fui mãe muito cedo, com 21 anos, e, claro, isso marcou-me, sobretudo porque na altura vivia para a investigação. Quando a minha filha nasceu, percebi que havia alguma coisa muito mais importante do que os livros. Agora tenho a minha filha, tenho outros dois filhos do meu marido que são como se fossem meus, tenho seis netos, e, de facto, não foi fácil a conciliação da minha vida e das minhas opções. Tentei, e se calhar a minha filha sofreu com isso, nunca abandonar os meus percursos e sonhos pessoais por ser mãe, o que também me fez não estar tão presente em momentos em que devia ter estado. Acho que ela hoje entende melhor isso, até porque tem um percurso semelhante."

O café do Clube de Campo até oferece opções de brunch, mas Ana Paula pede só um croissant misto, um chá e um sumo de laranja, pedido que repito. Continuamos a conversar enquanto vamos pequeno-almoçando, mas, bebidos os chás, mudamos da mesa para uns confortáveis sofás num recanto, onde se pode gravar agora uma parte da conversa. E esta parte da conversa centra-se na presença de Ana Paula em Macau, período da sua vida que de certa forma ainda se destaca no currículo, pois afinal assistiu ao fim de quatro séculos e meio de pertença a Portugal da cidade chinesa na foz do rio das Pérolas.

"Vou para Macau em 1988, já tinha acabado o mestrado, foi na altura em que eram praticamente doutoramentos. Fui com a minha filha por razões familiares. Posso dizer que foi uma experiência transfiguradora, não só porque adorei e continuo a adorar Macau e a Ásia, mas também porque é uma cultura de subtileza. Como ocidentais, chegar a uma terra em que tudo o que está escrito para nós é estético, porque para nós é só isso, é muito impressivo. Também posso dizer que tive a sorte de me terem confiado uma tarefa que acabou por determinar toda a minha vida: gerir os leitorados de português na Ásia, e a partir daí comecei a interessar-me muito pela língua portuguesa. Contribuí também para a formação do departamento que na altura era o Instituto de Estudos Portugueses na Universidade de Macau", conta. Mas se de início sentiu o fascínio pelo local e também o atrativo do desafio profissional, cedo começou a perceber que algum do legado português não era o melhor: "Tudo isso me fez entrar no grande mundo das questões das línguas e até de algumas perplexidades que acabámos por pagar e continuamos a pagar. Por exemplo, só em 1988/1989 é que o chinês passou a ser a língua oficial de Macau. Como é que era possível, numa população em que 98% das pessoas tinham a língua chinesa como materna, o chinês não ser uma língua oficial? Até essa altura, o português era ensinado como língua materna, o que significa que só se dirigia a uma população muito pequena."

O período em Macau tem uma interrupção, conta a minha convidada, para lançar-se no doutoramento em Estudos Literários, depois do mestrado em Literatura Francesa e da licenciatura em Filologia Românica. Mas a partir de Lisboa a ligação à China continua, e dirige uma coleção de 36 obras de autores portugueses que são traduzidos para mandarim. "Costumo contar que já se tinham feito várias tentativas para se criar uma coleção, mas nunca se tinha conseguido. Precisamente quando estou a regressar a Portugal, um pouco antes vou a Pequim e vejo o Rabelais traduzido em chinês. A partir daí pensei que qualquer autor poderia ser traduzido para chinês e eu conhecia vários tradutores. O Instituto Cultural de Macau pediu-me para dirigir uma coleção a que chamei Biblioteca Básica de Autores Portugueses. Conhecia tradutores e muitos tinham obras traduzidas nas gavetas, portanto começámos desde logo com um tradutor, Fan Wiexin, que traduziu o Memorial do Convento publicado lá em 1997, antes de o Saramago ganhar o Nobel, e que recebeu o grande prémio de tradução da Associação Chinesa de Escritores. O lançamento foi feito em Pequim, com a presença do próprio Saramago, e foi um momento extraordinário. Lembro-me de ele ter ficado muito admirado por estar numa sala com tanta gente e com tanto silêncio, até chegou a pensar que não gostavam dele", conta, entre risos. "Depois, percebeu no final a enorme devoção que aqueles chineses tinham por ele, Saramago. Foi dos trabalhos que mais gostei de fazer, pôr essa coleção de pé, com poesia também. Quando regressei a Macau, continuei com a coleção."

Com a devolução de Hong Kong à China em 1997, após século e meio de domínio britânico, em Macau aumentou a expectativa sobre o momento em que, sabia-se já, também o território içaria a bandeira da República Popular da China. Ana Paula é colocada à frente do Instituto Português do Oriente e é nessa função que diz lembrar-se "perfeitamente" desse 20 de dezembro de 1999: "Esses anos finais em Macau foram também difíceis, havia que fazer uma transição e acelerar muitos processos. Assisti à transição em 1999. Na noite anterior, 19 de dezembro, um avião partiu com todas as entidades portuguesas. Praticamente, em termos oficiais, ficou o cônsul e eu. Antes da partida, ainda houve uma cerimónia portuguesa com a Dulce Pontes a cantar. Depois, estava tudo feito para que uns saíssem para um lado e alguns dos convidados fossem para uma festa chinesa. Eu e o cônsul fomos as únicas entidades oficiais portugueses que foram para a festa chinesa, todos os outros partiram. Todos sabíamos que seria assim, mas quando saímos da festa chinesa todos os símbolos portugueses da cidade tinham sido retirados, isto durante o espaço de tempo da festa, que foi da meia-noite às duas da manhã. A cidade estava toda ela chinesa; no espaço de uma ou duas horas todos os símbolos portugueses estavam cobertos ou retirados, os polícias tinham mudado as divisas, tudo mudado. Depois houve outro momento, a entrada dos militares chineses em Macau. Tinha sido uma negociação muito dura para que eles só entrassem no dia a seguir, assim foi, mas essa entrada foi uma coisa que me marcou muitíssimo." Comento que assisti à distância à cerimónia, que me recordo muito bem de ver o general Rocha Vieira a aceitar a bandeira portuguesa com uma dignidade impressionante e como lamento nunca ter convencido o último governador do império a dar-me uma entrevista. Até porque já conversei com Chris Patten, o último governador de Hong Kong, crítico da forma como a China tem gerido a fórmula de "Um país, dois sistemas".

O regresso a Lisboa e à Faculdade de Letras, nomeadamente ao Centro de Estudos Comparatistas, dá-se em 2002. Depois de várias participações em projetos ligados à língua portuguesa, é desafiada, em 2010, para liderar o Instituto Camões, onde se apercebe como a China passara a ver Macau como uma plataforma para atingir o mundo lusófono: "Mesmo no início de chegar ao Camões, há uma reunião em Pequim e o vice-ministro diz-me que querem apostar na língua portuguesa. De facto, começaram essa aposta, apostaram em dois polos em Macau, a universidade e o politécnico, onde é criado o Centro de Língua Portuguesa. A partir desse polo começam a crescer como cogumelos os cursos de português na China, não sei precisar neste momento, mas são mais de 50, alguns já a nível de doutoramento. De facto, houve um crescimento exponencial do ensino do português, claro que têm um grande interesse em África, daí também surgir esta importância do português."

Na passagem pelo Instituto Camões percebeu como eram muitos os focos de interesse pela língua portuguesa e por motivos bem diversos. "Muitas vezes tinha a ver com alguns antecedentes e com interesses criados em diferentes momentos. Por exemplo, todos os países próximos da antiga União Soviética tinham grandes ligações com os movimentos de libertação de África. Havia uma tradição de os militantes dos movimentos irem estudar para esses países, sobretudo da Europa Central e Oriental. O início do interesse pela língua portuguesa nesses países dá-se nos anos 60 e depois manteve-se. Totalmente diferente é o caso do Senegal, que tem uma história incrível de presença do português, até por Casamansa ter sido portuguesa. No tempo em que estive no Camões, houve naturalmente crescimento em outras regiões, por exemplo o Norte de África teve desenvolvimento considerável, os países africanos de língua oficial portuguesa também, assim como a América Latina passou a ter mais importância. E isto não apenas a nível dos leitorados, pois, para o bem e para o mal, começámos por receber o ensino básico e secundário que não estava no Camões, até aí tinha sido só ensino superior. O nosso trabalho foi muito de consolidação do ensino às comunidades e do ensino não-universitário, que não tinha de ser obrigatoriamente para as comunidades."

A referência anterior à América Latina serve de mote para abordarmos a atual missão de Ana Paula Laborinho, a chefia da representação em Portugal da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura. Aliás, esta conversa nasceu de um convite que fiz depois de assistir a mais um dos eventos da OEI em Lisboa, uma palestra de um diplomata dominicano sobre o impacto da guerra da Ucrânia na América Latina. Pergunto como é gerido um colosso com 23 Estados-membros de dois continentes, no qual a língua espanhola é oficial em 21 e o português em dois. "Tem sido um grande desafio, que faz agora cinco anos. Para já, tem corrido bem, porque este secretário-geral tem feito um trabalho e traçado uma linha muito clara de presença do português. E também depositou em mim a confiança para ser diretora-geral de bilinguismo da organização e de essa direção-geral estar aqui em Lisboa. Penso que temos feito muito caminho, neste momento pode dizer-se que é uma organização bilingue de referência na região. É preciso dizer que o português é, de facto, um terço do espanhol em termos de falantes na organização, mas a sua importância pela relação com África e Ásia faz com que haja cada vez mais interesse. Claro que posso dizer que esse interesse é muito mais na América do Sul, mas tem vindo a crescer a pouco e pouco, até porque o Brasil tem feito muito trabalho. Penso que não podemos deixar de ter este trabalho articulado com o Brasil. O Brasil tem fronteiras com sete países da América Latina, só isso já é muito significativo. Por outro lado, a organização é também observadora e trabalha com a CPLP, que tem muito interesse em relacionar-se com a América Latina. Temos muitas razões que vão além da educação e da importância da ciência, não é só a língua pela língua, mas sim como fator de desenvolvimento. É fundamental pensarmos que quanto mais apostamos na internacionalização do português mais os seus povos têm capacidade de exprimir as suas vontades. Por outro lado, digo também que contribui para uma política de língua haver menos analfabetismo, mais riqueza, mais educação, mais cultura, tudo isso contribui para as políticas de língua", responde, quase de um só fôlego, Ana Paula.

Deixou de chover e de repente o sol dá um ar da sua graça. O verde em redor ganha um tom mais alegre e percebe-se a tentação de trocar o bulício da capital por esta tranquilidade. "Durante os confinamentos por causa da pandemia, dei muito valor a esta minha opção pelo campo a 15/20 minutos da cidade", realça a diretora em Portugal da OEI. Este brunch está a terminar, mas fica um alerta final sobre a relação entre a Europa e a América Latina: "Claro, acho fundamental essa aproximação, até porque há raízes culturais. Claro que Portugal e Espanha são os países que sentem mais essa necessidade, mas julgo que desperdiçar a proximidade da América Latina pode custar muito caro à Europa. Portugal tem feito por essa aproximação, mesmo durante a presidência portuguesa houve uma grande aposta nessa linha, e agora que Espanha vai também assumir a presidência da União Europeia, no segundo semestre de 2023, estou certa de que vai ser igualmente uma linha defendida."

leonidio.ferreira@dn.pt

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