Dentro da fábrica que fornece metade das seringas de África
Brian Otieno/The New York Times

Dentro da fábrica que fornece metade das seringas de África

Os países da África Subsariana necessitam de 500 milhões de seringas todos os anos apenas para imunizações de rotina. No Quénia, a Revital Healthcare, e os seus cerca de 700 funcionários, tenta dar passos firmes no caminho da autossuficiência.
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Na deslumbrante costa queniana, a meio caminho entre ruínas do século XV e a vibrante cidade de Mombaça, uma pequena fábrica está a ajudar a alcançar um dos maiores objetivos de saúde de África: a autossuficiência.
Com menos de 700 funcionários, a Revital Healthcare fabrica 300 milhões de seringas por ano, o suficiente para satisfazer mais de metade das necessidades de vacinação de rotina de África.

No meio da pandemia de covid-19, quando os governos se deparavam com a vacinação de milhões de pessoas e atravessavam uma grave escassez, a Revital enviou seringas para o Sri Lanka, Suécia, Emirados Árabes Unidos e Uzbequistão, e até enviou 15 milhões de seringas para a Índia, disse Roneek Vora, diretor de vendas e marketing da empresa.

“Esta é a primeira vez na vida de África que uma indústria médica exporta seringas para a Índia, quando sabemos que a Índia é uma potência no fabrico de seringas”, disse Vora. “Isso foi muito importante para nós, quebrou muitas barreiras”, acrescentou.

A Revital é ricamente financiada através de doações e contratos de muitas organizações doadoras, incluindo a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, a Fundação Save the Children e vários ramos das Nações Unidas. E a empresa tem grandes ambições.

Muitas das tentativas de África no sentido da autossuficiência médica foram dificultadas por fundos limitados, pela falta de um sistema regulamentar robusto e pelos desafios no transporte de medicamentos e vacinas. Neste contexto, o sucesso da Revital permite a esperança de que uma empresa africana possa fabricar produtos essenciais, não apenas para o continente, mas também para exportar para outros países.

A empresa possui um portefólio de 58 produtos, incluindo kits de testes de diagnóstico rápido para diversas doenças infecciosas, tubos médicos, máscaras faciais e um dispositivo portátil sem eletricidade que fornece oxigénio aos recém-nascidos. Mais de 200 desses dispositivos foram entregues à Ucrânia em maio de 2022.
Mas as seringas, em particular, estão a ajudar a colmatar uma necessidade extrema em África. Os países da África Subsariana necessitam de 500 milhões de seringas todos os anos apenas para imunizações de rotina. E estas nações são frequentemente atingidas por surtos que exigem vacinações em massa num curto espaço de tempo.

As seringas costumam ser o fator limitativo. “O mundo investe milhares de milhões todos os anos no desenvolvimento e distribuição de vacinas, mas sem uma simples seringa, que custa alguns cêntimos, as vacinas e o investimento associado permanecerão no frasco”, disse Surabhi Rajaram, funcionária do programa da Fundação Melinda Gates.

Mais de 80% das seringas necessárias para a vacinação são produzidas na Ásia, disse Rajaram. Geralmente são entregues por via marítima, o que pode atrasar meses a sua chegada.

Durante a pandemia, a Índia e a China restringiram a exportação de seringas, criando lacunas e sobrecarregando os programas de imunização em muitos países, incluindo alguns em África. “Foi uma situação em que nunca mais queremos estar”, disse Rajaram.

Foto: Brian Otieno/The New York Times

A proximidade da Revital do porto marítimo e do aeroporto internacional de Mombaça, e de uma rede rodoviária que liga os países interiores em África, reduziu os tempos de transporte em 80% a 90%, disse ela.

Com cerca de 4 milhões de dólares em financiamento da Fundação Gates, a Revital fabrica as chamadas seringas de ativação e desativação automáticas, que não podem ser reutilizadas depois de o êmbolo ser inserido no cilindro. Outras seringas são desativadas somente depois de o êmbolo ser empurrado totalmente através do cilindro. Por vezes, isso incentiva o pessoal de saúde a parar antes de esvaziar uma seringa e a reabastecê-la, a fim de conservar a provisão. No entanto, isto pode contribuir para a propagação do VIH, da hepatite B e C e de outras doenças.

A Revital é a única empresa africana aprovada pela Organização Mundial de Saúde para fabricar seringas de ativação automática.

As suas subvenções concedidas por organizações globais de saúde determinam que as seringas de ativação automática sejam vendidas em África. Separadamente, os Centros Africanos de Controlo e Prevenção de Doenças estabeleceram uma meta de fabricar 60% das vacinas de que necessita até 2040.

“Quando falamos de vacinas, falamos de seringas e não tínhamos capacidade para fabricar seringas”, disse Jean Kaseya, diretor-geral da agência. “Agora, com a Revital Healthcare, podemos cobrir pelo menos 50% das nossas necessidades.”

As ambições da empresa vão muito além das seringas. Em Março de 2020, quando a covid chegou ao Quénia, “não tínhamos máscaras cirúrgicas, não tínhamos vacinas, não tínhamos seringas”, lembrou Vora. A empresa aumentou rapidamente a produção de máscaras faciais de 30 mil por dia para 300 mil, tornando-se o maior fabricante de máscaras na África Subsaariana. Em seis meses, aumentou a sua produção de seringas de 3 milhões por mês para 30 milhões.

Com 2,2 milhões de dólares da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, a Revital pretende agora tornar-se o maior fabricante de kits de testes de diagnóstico rápido de África, produzindo cerca de 20 milhões por mês, e a empresa está a contratar 200 funcionários para satisfazer essa procura. Cerca de metade dos kits de teste seriam para o VIH e a outra metade para a malária, hepatite, dengue e outras doenças. A fábrica foi inaugurada em maio. 

A Revital é também o eixo de um esforço maior iniciado pelo presidente do Quénia, William Ruto, para produzir kits de cuidados de saúde para surtos. Num surto de malária, por exemplo, outras empresas podem fabricar testes de diagnóstico rápido, redes mosquiteiras e medicamentos e vacinas antimaláricas. A Revital montaria os kits e enviá-los-ia para as zonas do surto.

Fundada em 2008 com apenas 60 funcionários, continua a ser uma empresa familiar. Vora é um queniano de terceira geração de ascendência indiana. O seu tio é o presidente da empresa. Os seus primos gerem finanças e operações. Krupali Shah, que lidera a investigação e desenvolvimento, é uma amiga próximo da família. As mulheres representam cerca de 80% da força de trabalho, ultrapassando a meta de 50% estabelecida pela Fundação Gates.

A poucos minutos das espetaculares praias de Kilifi, a fábrica funciona o dia todo, todos os dias, com trabalhadores em turnos de 12 horas. Grande parte do trabalho é automatizado, mas muitos trabalhadores passam horas em salas quentes e pouco arejadas, porque as unidades de ar condicionado ou as ventoínhas podem comprometer a esterilidade, disse Shah. Algumas máquinas emitem ruídos agudos a cada poucos segundos. Os trabalhadores receberam auscultadores e recusaram, segundo um supervisor. A bisavó de Vora era deficiente auditiva e muda, e ele disse que a empresa planeava contratar mais de 200 dessas mulheres para montar as seringas. A empresa contratou até agora cerca de 40. Num dia quente de dezembro, eram menos de 20.

Aos 60 anos, Truphosa Atieno, que tem deficiência auditiva, é décadas mais velha do que a maioria dos outros funcionários. Viúva e mãe solteira, Atieno era professora do ensino básico, mas quando a pandemia fechou a escola, “vivia na pobreza” vendendo mel, vegetais e cana-de-açúcar na beira da estrada, segundo contou.

Em novembro de 2022, foi atropelada por um minibus e ficou inconsciente durante três dias. Fraturou o crânio e o cotovelo e sofreu hematomas nas costelas e nos dedos. Mesmo assim, com quatro filhas com idades entre 16 e 29 anos, ela estava ansiosa por trabalhar novamente.

Quando conseguiu o emprego na Revital, Atieno morava em Jomvu, a cerca de 80 km de Kilifi, e tinha de sair de casa às 04.00 para chegar ao trabalho às 07.00. Ela agora divide um quarto em Kilifi com outras 13 mulheres durante a semana e regressa a Jomvu aos fins de semana. O que ela ganha “não é suficiente”,então complementa o seu rendimento dando aulas particulares a crianças nos dias de folga.

Algumas mulheres com deficiência auditiva abandonaram a fábrica porque o salário diário é de cerca de 600 xelins quenianos por turno (menos de 4,5 euros) e a sua viagem desde Mombaça custa cerca de metade desse valor.
Outras não conseguiram cumprir as quotas diárias de produtividade ou não gostaram da proibição de comer carne e ovos no local (os Voras são vegetarianos estritos).

“Uma das dificuldades é a adaptação à cultura daqui”, disse Amina Mahmud, responsável pelo projeto numa organização sem fins lucrativos sediada em Mombaça que colocou as mulheres, acrescentando que as “expectativas da empresa são altas”.

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