David J. Amado mora em Portugal há oito anos.
David J. Amado mora em Portugal há oito anos.Paulo Alexandrino

David, imigrante, denuncia discriminação na Lei do Cinema

"Um finlandês que nunca tenha pisado em Portugal, que não paga impostos aqui, pode concorrer, mas eu, que moro aqui, tenho aqui a minha produtora, não posso”.
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O realizador David J. Amado participou, empolgado, no concurso promovido pelo Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA), em parceria com a Netflix. O imigrante, jamaico-americano, residente em Portugal há oito anos, enviou uma história chamada Taste, definida pelo profissional como um filme “firmemente português”, que destaca a vida de portugueses e de imigrantes de várias partes do mundo. A obra, no entanto, foi desclassificada por David não ter nascido em Portugal. 

A decisão do ICA está totalmente sustentada pela Lei do Cinema, criada em 2012. A legislação estabelece que apenas cidadãos de nacionalidade portuguesa, da União Europeia (UE) ou do Espaço Económico Europeu podem ser beneficiários nos concursos e apoios para produção de cinema. A mesma legislação estabelece esta regra juntamente com o facto de que 50% dos autores, nomeadamente o realizador, o autor do argumento e o autor dos diálogos, sejam europeus. No caso de David, que  é o único realizador da obra Taste, ficou automaticamente desclassificado.

A este jornal, o imigrante explica que considera a lei discriminatória com quem não nasceu em solo europeu. “Por exemplo, um finlandês que nunca tenha pisado em Portugal, que não paga impostos aqui, pode concorrer, mas eu, que moro aqui, tenho aqui a minha produtora, não posso”, explica ao DN. 

De acordo com o realizador, a questão não é somente pessoal, porque em 2025 poderá ter a cidadania portuguesa. “Essa questão para mim não é só pessoal. É sobre a comunidade. É sobre as várias pessoas que são barradas desses meios de subsistência, porque trabalhar com cultura também é um trabalho. No meu caso, é só o que tenho para me sustentar aqui”, analisa.

A investigadora Ana Cristina Pereira, da Universidade do Minho, concorda que a lei é discriminatória. “Alguns desses concursos são discriminatórios, porque impedem a candidatura de pessoas que não sejam europeias ou dos PALOP”, explica a professora que investiga o racismo. Segundo ela, este facto representa a forma como o racismo se manifesta de diferentes maneiras no país. “Os realizadores, os fotógrafos e outros profissionais do cinema negros veem o seu acesso ‘à família cinematográfica’ muito dificultado. Isto começa desde a formação inicial. É um problema estrutural, na realidade”, argumenta a académica.

No Parlamento

Se para David J. Amado e Kitty Furtado a questão é discriminatória, para a bancada do Livre a situação vai mais longe. “O que pode estar em causa é a própria Constituição, porque proíbe a discriminação em função do território de origem, e, portanto, não nos pareceu que fizesse algum sentido manter o texto da lei”, explica ao DN o deputado Paulo Muacho, um dos autores do projeto de lei que visa mudar as atuais regras. A proposta do partido é que possam aceder aos apoios e concursos também os cidadãos que “sejam titulares de autorização de residência em Portugal ou beneficiários de proteção internacional”. Ou seja, que efetivamente vivam em Portugal.

David buscou o partido para conseguir apoio, na esperança de que a lei seja revista. “É uma lei que não representa o que é Portugal hoje, porque exclui vozes migrantes que poderiam enriquecer o panorama cultural do país com novas perspetivas”, sublinha o imigrante. “Importa, pois, agora alargar o universo das pessoas a quem a Lei do Cinema se aplica, sobretudo no que diz respeito a primeiras obras ou a artistas emergentes, a pessoas titulares de autorização de residência e ou beneficiárias de proteção internacional em Portugal”, lê-se no projeto de lei. “No fundo, para nós o que é importante é que uma obra nacional seja algo produzido em Portugal, com quem está em Portugal”, refere o deputado. 

Na Europa, o entendimento varia conforme o país. Enquanto na vizinha Espanha é necessário ser cidadão espanhol, nos Países Baixos, na Eslováquia ou na Eslovénia a cidadania dos envolvidos não é um fator de exclusão. O projeto de lei está na Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto.

Paulo Muacho afirma ao DN que está confiante na aprovação. “Esperamos que haja esse apoio, até porque nos parece que se trata aqui de uma questão que até pode ter passado despercebida quando a lei foi aprovada e porque, efetivamente, pode estar em causa uma situação de uma discriminação ilegítima, que para nós não faz sentido. Portanto, naturalmente que gostaríamos de ter e estamos convictos de que conseguiremos ter o apoio das restantes bancadas, de quase todas, na verdade”, diz em referência a possíveis votos contrários do Chega, que não costuma acompanhar iniciativas de apoio à comunidade imigrante.

Para David J. Amado, caso a mudança seja aprovada, será a concretização de um sonho e de uma mudança no paradigma do cinema português. “Eu gostaria de abrir um diálogo sobre o direito de autor e sobre o setor, não só do cinema, mas da cultura, aqui em Portugal, porque temos tanta diversidade, tantas vivências, e não as vejo refletidas no ecrã ou no palco. Este pode ser um primeiro passo.”

amanda.lima@dn.pt

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