David Freitas, coordenador da investigação criminal da Unidade Nacional Contra o Terrorismo da PJ
David Freitas, coordenador da investigação criminal da Unidade Nacional Contra o Terrorismo da PJLeonardo Negrão / Global Imagens

David Freitas: “Segundo as nossas estatísticas, 99% dos imigrantes vêm por bem”

O coordenador da investigação criminal da Unidade Nacional Contra Terrorismo, David Freitas, analisa as operações de combate ao trabalho análogo à escravidão no Baixo Alentejo. Diz que a situação dos imigrantes cria estigma e é aproveitada por partidos políticos.
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Quase três meses depois, que balanço faz da Operação Espelho, que teve como alvo suspeitos de associação criminosa relacionada com o tráfico de pessoas?

Tivemos 117 viaturas apreendidas, identificadas 73 vítimas e 13 pessoas presas, que continuam sob prisão preventiva. Foi uma grande operação que juntou diversas investigações que estavam a correr em Beja, Évora, Cuba, tudo ali na zona do Alentejo. São processos complexos, mas pensamos que até ao fim do ano tenhamos o despacho de acusação. Na nossa atuação tentamos dar os melhores elementos possíveis para o Ministério Público promover a sua acusação.

A PJ sente que de alguma forma está numa missão impossível, porque um ano antes aconteceu uma operação semelhante, mais ou menos com números parecidos e o mesmo tipo de alvo? Se em novembro deste ano acontecer de novo, vão encontrar uma situação igual?

Nunca se sabe, possivelmente. Aliás, esta unidade tem todos os anos, mais ou menos em novembro, feito uma operação idêntica. Esta já é a terceira. Vamos tentar fazer uma este ano, talvez. Mas sim, isso significa que, apesar das operações, o problema continua. 

A PJ, além dessas ações, digamos, anuais, realiza um monitoramento, uma fiscalização constante de como está a situação nessa região?

Tentamos. Os recursos são o problema das instituições hoje em dia. Os recursos não são fáceis. Temos um grande problema em termos de recursos. Como sabe, com o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), está-se a tentar reestruturar tudo novamente. Há o problema dos acesso às bases de dados. Aliás, o DN abordou essa situação muito bem [na edição de 5 de fevereiro]. São situações transitórias, o que é complicado, mas é perfeitamente normal e previsível. Temos os colegas do SEF, que estavam mais vocacionados para a fiscalização, não para a investigação, mas é troca de experiências e habilidades produtiva. Agora, o país neste momento é uma porta aberta devido ao artigo 88 da Lei dos Estrangeiros em que basta a manifestação de interesse, o que é inacreditável, e qualquer cidadão oriundo de outro país entra em Portugal. Aqui temos problemas em termos de ordenados com a população hindustânica que vêm para aqui trabalhar e são sujeitos a ordenados de 100, 140 euros. Chegam cá, deparam-se com uma dívida infinita, ou seja, têm de pagar a viagem, o que lhes é dito ou transmitido não corresponde minimamente à realidade, os grupos sabem perfeitamente manipulá-los. Pensam que vêm receber 800 euros, o salário mínimo, quando chegam têm de pagar a renda, que é um bocado ridícula, porque estamos a falar de espaços exíguos, em que vivem 20, 30, 40 pessoas, em condições completamente nauseabundas. Têm de pagar a água, têm de pagar a deslocação para o trabalho, é tudo a pagar, ou seja, a própria associação criminosa arranja-lhes ali um rolo compressor de que não conseguem sair e ficam com aquela dívida infinita.

Na sua opinião, como é que a situação pode ser resolvida?

São muitos problemas e podemos ver várias variáveis. A vítima é uma vítima envergonhada, tem vergonha ao aperceber-se de que caiu num enredo destes e medo, porque é ameaçada constantemente, aqui e no local de origem dos seus familiares. Além disso, é importante que as próprias vítimas tenham noção do nosso sistema policial. Têm medo de entrar, de denunciar, de dar o passo em frente e dizer à polícia o que é que se está a passar, porque têm medo da polícia. Veem a nossa polícia como a polícia original dos países deles, agressiva, direitos fundamentais às vezes pouco ou nada existentes. Têm de deixar de ter medo e de apresentar as respetivas queixas para denunciar as situações e as dos outros. 

E do ponto de vista da legislação?

Ao meu ver, a própria legislação tem de ser alterada, não se pode facilitar a vida de pessoas das quais não temos, se calhar, uma identificação plena. A questão, sobretudo, passa pela identificação humana, porque se você for identificada, se desaparecer, provavelmente vai haver uma investigação. Se caímos nas mãos de uma associação criminosa, não há ninguém para fazer queixa por nós, ou relatar o desaparecimento de alguém. Ou seja, a identificação humana é algo extraordinariamente importante.
Essas pessoas têm de ter um cartão de cidadão. Repare, o primeiro artigo da nossa Constituição é sobre a dignidade da pessoa humana. As pessoas são dignas, porque as pessoas vêm para aqui, costumamos dizer em termos policiais, 99% das pessoas que vêm para aqui é para trabalhar, é para melhorar, para tentar concretizar os seus sonhos, para serem dignos, e têm esse direito. Não é certo, nem normal que depois de virem para cá sejam aproveitadas para exploração laboral, para sexo, enfim, toda a panóplia da associação criminosa - isso não pode ser. Se calhar um primeiro passo é que as pessoas, quando chegam a um país como o nosso, possam aceder a uma identificação, não digo como se fossem os mesmos direitos de um nativo em Portugal, mas se as pessoas tivessem um cartão de cidadão, a possibilidade de ter uma identificação plena, já podiam recorrer a empregos com salário mínimo, com os seus direitos normais.

Teoricamente têm esses documentos, mas o serviço é burocrático e lento em Portugal.

É verdade, é verdade. Aí acaba   por se juntar mais um problema, portanto, estão criadas as condições para a tempestade perfeita, como se costuma dizer. A matemática é uma ciência fria, e nós, quando analisamos o globo, atualmente com oito mil milhões de seres humanos, percebemos que obviamente a maior parte das pessoas aceita ser escravizada, porque estão desesperadas. Depois, o problema é que a seguir há uma panóplia de associações criminosas que se aproveitam destas pessoas que estão em posições fragilizadas. Uma parte das vítimas vem para Portugal, não sabem português, não conhecem os nossos costumes, estão completamente desenraizadas e isso é bom para a associação criminosa, que se aproveita delas, transmite-lhes ou incute-lhes o medo, o medo em termos de que, se denunciarem, pode haver represálias sérias, inclusive de ofensa da integridade física ou mesmo à própria vida, e dos seus próprios familiares no país de origem. Além de as pressionarem a não apresentarem queixa, são completamente exploradas no aspeto físico. Enquanto aquele corpo puder produzir, para a associação criminosa é um recurso puro e duro. Aquele ser humano não é uma pessoa em si, é um objeto que é utilizado pela associação para recolher produtos. O que é inacreditável, porque estamos no século XXI.

Refere algumas coisas que as vítimas podem fazer, como denunciar, mas não acha que é ingénuo pensar que as associações criminosas que envolvem cidadãos portugueses, e também estrangeiros, vão acabar? Vão angariar a mão--de-obra de uma maneira legal para ter menos lucro?

A eterna questão da criminalidade haverá sempre. Eu costumo dizer, quando dou aulas, onde há um ser humano há um potencial delinquente. Nós todos, às vezes, estamos regulados pelas normas e pela nossa consciência e isso é que nos trava de cometer crimes. Obviamente, qualquer pessoa, em determinadas circunstâncias, é capaz de cometer crimes. Agora, associações criminosas haverá sempre. Associações criminosas visam, sempre e sempre, o lucro. Obter dinheiro. E, com isso, obter poder. É a eterna questão que costumo dizer: haverá sempre associações criminosas. E é difícil fugir a isso, ainda mais quando se precisa da mão-de-obra, como é o caso de Portugal. Quando as próprias multinacionais, as indústrias, as empresas, os patrões sabem disso e sabem que podem, em vez de estar a pagar um ordenado mínimo, pagar metade estão reunidas as condições para se aproveitarem destas pessoas, que estão completamente abandonadas à sua sorte.

Portanto, o ponto central aqui é o lucro. Acredita que, se os responsáveis tivessem de pagar uma multa pesada, isso poderia inibir um pouco essas escolhas?

Claro que sim, e deveriam. A lei, acho que deveria ser muito mais restritiva e cautelar com coimas elevadas. Porque, repare, se não houver toxicodependentes, não há tráfico. O tráfico de seres humanos é a mesma coisa. Se eu contratar para a minha herdade 100 ou 200 pessoas para trabalhar, respeitando os direitos económicos, os direitos dos trabalhadores, tudo o que é um imposto, daí resulta que as pessoas vão ver a sua dignidade respeitada e vão receber um salário normal, um salário mínimo, pelo menos, porque é imposto por lei. Se houver multas, eu como patrão vou preferir evitar uma multa pesada e respeitar a lei. 

Não há grandes condenações, por exemplo, de empresários punidos com 25 anos de prisão devido a esse tipo de exploração, como prevê a lei. Há quem diga que é uma forma de proteger, porque são pessoas, do ponto de vista económico, poderosas, que são donas de multinacionais, que são grandes empresários. Acredita que isso faz sentido?

Não, não faz sentido. É difícil! Como é que conseguimos, como é que o Estado de Direito poderá eventualmente aplicar a pena máxima a um empresário que está a recrutar pessoas para trabalhar. Muitas vezes são as próprias pessoas que vêm cá, o problema é que a própria vítima, por vezes, que fica contente por receber 150 ou 200 euros, porque eles já vivem em condições sub-humanas. E se isto é uma pescadinha de rabo na boca, é complicado dar a volta ao contexto. Haverá sempre, as Nike, as Adidas - estou a dizer aqui marcas, isso não interessa -, mas as grandes empresas globais deslocalizam as suas indústrias, como sabemos, para o sudeste asiático, porque é mais barato. Visam o lucro, o lucro é que faz movimentar as pessoas criminosas e tudo o que tem a ver com empresas.

Referiu anteriormente que, acredita que “99% dessas pessoas vêm aqui para trabalhar, para construir a sua vida”, mas há, neste momento um discurso muito grande, que atinge até mesmo os partidos políticos, de que grande parte das pessoas que, de facto, vêm para Portugal para cometer crimes. A Polícia Judiciária tem algum indício disso?

Não, a maior parte das pessoas querem melhorar a sua dignidade, querem concretizar os seus sonhos, como é normal numa pessoa de bem. Segundo as nossas estatísticas, 99% dos imigrantes vêm por bem. Agora, normalmente, no meio disto temos aquele 1% que são pessoas que se dão com a criminalidade. É sabido que o Primeiro Comando da Capital [organização criminosa com origem em São Paulo, Brasil, mas que já foi detetadas em várias países da América do Sul] está a ser instalado em Portugal, ou já está instalado, e várias organizações criminosas da comunidade indiana e paquistanesa também já se encontram em Portugal. Até agora temos tido sorte, não tem havido eventos criminológicos. Ainda bem e esperamos que continue assim, mas nunca se sabe. Para já, os dados não corroboram esse aumento da criminalidade e, aliás, Portugal, será supostamente o quarto país mais seguro a nível mundial.

Pensa que essa situação desumana que as vítimas acabam por enfrentar, como viver em casas sobrelotadas e a pobreza extrema, contribua para a estigmatização e o preconceito que os migrantes sofrem hoje em Portugal?

Claro. Por exemplo, quando vamos a localidades como Beja, Évora ou Cuba, em que há pouco emprego, o que é que se vê? Os portugueses, os nativos que estão lá não são recrutados, porque há uma concorrência completamente desleal. Enquanto os empresários portugueses pagam 400 euros ou 300 euros a um imigrante ilegal, o trabalhador português deve receber no mínimo o salário mínimo [820 euros]. Ou seja, a mão-da-obra, o trabalho, escasseia de forma comercial e as próprias pessoas, os naturais olham para os imigrantes e aproveitam o facto de eles, coitados, serem pessoas que vivem em condições extremamente precárias, o que também não abona nada para a sua dignificação. E claro, surge automaticamente uma estigmatização dessa própria pessoa, também do facto de não falarem português e não estarem perfeitamente integrados. Ou seja, são vistos como alguém de fora, alheio àquela comunidade e que, ainda por mais, vem pôr em causa o emprego daquela comunidade. E a segurança também, de certa maneira, muito por conta de serem homens. Fala-se em violações, mas não temos tido relatos disso, não tem havido nada de anormal, o perigo não aumentou, mas há uma deturpação dos factos e a realidade não corrobora minimamente isso.

amanda.lima@globalmediagroup.pt

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