A reportagem do DN passou um dia de muito calor na praia de Carcavelos.
A reportagem do DN passou um dia de muito calor na praia de Carcavelos.Leonardo Rodrigues / Global Imagens

Concorrência aumenta entre vendedores ambulantes na praia

Da artista plástica ao jogador de futebol, a venda nas praias atrai trabalhadores dos mais diferentes perfis num dos principais areais da Linha de Cascais. O DN passou uma tarde na praia de Carcavelos para entender o universo das bolas de Berlim - e muito mais.
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Ir à praia de Carcavelos numa tarde de verão e não ouvir o tradicional “olha a bolinha” é como ir ao estádio de futebol sem o barulho dos adeptos. O maior clássico dos vendedores ambulantes nas praias portuguesas continua a ser a bola de berlim, uma iguaria apreciada de geração em geração. Há todo um contexto por trás do produto, que também causa intrigas e disputas a beira-mar entre os vendedores e em reuniões na câmara municipal. 

A reportagem do DN passou um dia de muito calor na praia de Carcavelos para conhecer os personagens por trás das vendas ambulantes na areia e perceber o que mais é vendido além do tradicional doce de praia português. Ao DN, a Câmara Municipal de Cascais destaca que cada praia tem um limite máximo de vendedores ambulantes, sendo que em 2024, na praia de Carcavelos, foram concedidas licenças a dez comerciantes. A cada ano é necessário renovar a autorização para comercializar os produtos. No entanto, o número de profissionais com geleiras na mão é bem maior. 

A bola de Berlim continua a ser a principal atração e cativa clientes de todas as nacionalidades. Há também quem tenha entrado no negócio sem ser português. É o caso da brasileira Marilena Rubens, que chega a vender 200 unidades do doce “num dia bom”. A imigrante, artista plástica de profissão, viu na venda ambulante uma forma de trabalho há sete verões. “No começo tinha vergonha, mas fui tomando gosto e agora já lá vão sete anos”, conta Marilena, que já trabalhou como cuidadora de idosos e na restauração.

Mas a estratégia de vendas da brasileira é alvo de problemas com outros vendedores da praia. Marilena compra o produto em pastelarias variadas da Parede e Cascais e revende por 1,80 euros cada, mas a maior parte dos vendedores abordados pela reportagem negoceia por dois euros. “O preço da bola, por norma, costuma ser dois euros. Mas muita gente me falava que achava isso caro, então resolvi baixar um pouco e isso refletiu-se bastante nas minhas vendas. O pessoal foi fazer queixa de mim para a câmara municipal, mas lá eles me deram razão, afinal foi o que eu falei para eles: existe a lei da oferta e da procura. Se eu quiser, posso vender até por um”, diz.

Fiscalização menos rigorosa


António Olias vende bolas de Berlim há mais de 40 anos e é uma figura conhecida de quem frequenta as praias de Carcavelos e do Guincho. Ao DN conta que a fiscalização era mais rigorosa anteriormente, quando o processo era de responsabilidade das capitanias. O vendedor analisa que, quando as câmaras municipais passaram a ser responsáveis, em 2018, tornou-se cada vez mais comum a presença de vendedores sem licenças na região.

“Com as capitanias o processo era um pouco mais fácil e mais organizado. Hoje em dia, aqui na praia é quase tudo sem licenças, tudo à balda. Não que isso me afete, afinal não vendo essas bebidas, mas é ruim para os bares das praias. Nas bolas, há também quem venda mais barato, mas um produto pior. Vendo sempre pelo mesmo preço, dois euros, quando não havia muita concorrência cheguei a vender duas mil bolinhas num daqueles dias mesmo movimentados”, destaca.

O profissional já sente o aumento da disputa pelos clientes no negócio. “Agora já é mais complicado. Antigamente era eu e mais dois aqui na praia, agora tem um monte, principalmente brasileiros”, afirma António, que trabalha por conta própria.

A Câmara Municipal de Cascais não possui números exatos sobre o total de vendedores. Apenas afirma que a procura por licença “pouco mudou nos últimos anos”. Na hora de autorizar ou não, as autoridades municipais destacam que levam em conta alguns fatores que priorizam ou não um interessado em entrar no negócio das vendas ambulantes. Além da residência ou sede na região, a câmara dá prioridade aos que tenham exercido a atividade de venda ambulante em praias balneares do concelho nos dois últimos anos. 

O casal de brasileiros Márcia Monteiro e Vanderlei Monteiro estão no negócio desde 2019. A bola de Berlim continua a ser o principal produto de venda. “Eu admiro muito a relação que os portugueses têm com a bola de Berlim. É uma coisa geracional, os avós comiam, os pais, agora as crianças, que já chegam todas felizes quando me veem, me sinto mesmo a mãe Natal quando venho aqui vender a bolinha”, destaca. 
Além do tradicional produto, trazem nas geleiras salgadinhos tradicionais do Brasil, como a coxinha. O produto é popular entre brasileiros, logicamente, mas também entre os portugueses.

Eles apresentam-se como os “pioneiros” no negócio de coxinha de frango nas praias. “A introdução da coxinha também acabou por ser uma ótima ideia, porque dá também mais variedade para quem queira algo salgado. E a nossa é mesmo uma refeição, é uma coxinha XL, com bastante recheio de frango e queijo Catupiry. Vendemos por €2,5 euros e é quase um almoço”, diz Márcia, em Portugal há oito anos.

Formada em Jornalismo no Brasil, Márcia foi uma das muitas imigrantes que, ao chegar a Portugal, encontraram uma dificuldade de inserção no mercado de trabalho que a levou para outras áreas. A mineira abriu a Delei na Praia há cinco anos e, fora da temporada alta, quando o trabalho é sempre na praia, o empreendimento funciona com encomendas de salgados, como coxinhas, bolinhas de queijo e quibes - muito tradicionais em festas infantis no Brasil. 

A imigrante garante que a habilidade de comunicação que possui é uma mais-valia para o trabalho. “A vida de imigrante te leva para outros caminhos e eu não me arrependo. Trabalhar na praia também é uma forma de se comunicar”, ressalta.

Polémicas

“Cerveja, refrigerante, água.” Os dizeres por parte de alguns vendedores são os que geram a principal polémica e maus olhares dos vendedores de bolas de Berlim com as licenças em dia. Os que trabalham sem a autorização justificam que a burocracia é muito grande. O principal entrave apontado por alguns dos vendedores é a exigência da câmara em residir no concelho.

De acordo com vários profissionais que conversaram com o DN, os que trabalham sem licença vendem apenas bebidas. Porém, Marilena recorda que já aconteceram confusões na praia por causa disso. “Já deu confusão. No ano passado, um rapaz estava a vender cerveja numa caixa e as bolinhas noutra. E, inclusive, veio me ameaçar e ameaçar outros comerciantes antigos. Tive que chamar a polícia quase todos os dias para ficar de olho. Aliás, olha outro sem licença aí”, aponta Marilena a outro homem que passava pela praia e não quis falar com a reportagem.

Há quem tenha a venda ambulante como profissão estabelecida, enquanto outros apenas utilizam o trabalho como uma forma de arranjar dinheiro. É o caso do brasileiro Luis, jogador de futebol com passagens por clubes como o Lusitânia, dos Açores, e os sub-23 do Estrela da Amadora. O profissional teve recentemente uma lesão no joelho que o fez ficar afastado dos relvados e a solução foi sair do cenário desportivo para o areal de Carcavelos, tanto para juntar dinheiro, quanto para fortalecer os músculos.

“Há três meses que comecei a trabalhar aqui na praia. Precisava de algo que me ajudasse também no processo de recuperação, então aqui aproveito para fazer um dinheirinho e também fortalecer o joelho na areia. Quando termino o expediente, treino por aqui mesmo”, conta o jogador, que no Brasil passou por clubes como o Juventude, que faz parte da elite do futebol nacional.

“Isto é para desenrascar, o mais rapidamente possível quero voltar a jogar bola. Mas, até lá, acho que faz sentido trabalhar por aqui, não só pela minha recuperação mas também pela demanda. Tem muita gente na praia e acredito que quanto mais gente estiver vendendo melhor para o público. Até porque nós, eu e os meus colegas, não entramos no negócio das comidas, o nosso trabalho é só vender cerveja, refrigerante e água fresca a um preço justo para o pessoal que quer curtir a praia”, finaliza o jovem, de 25 anos. 

Quem se arrisca a vender sem licença está sujeito a penalizações. De acordo com a câmara, as coimas para os trabalhadores que não têm a devida documentação pode ser aplicada pela própria autoridade municipal. Para pessoas individuais, a coima pode chegar aos 3740 euros, enquanto para pessoas coletivas os valores podem chegar aos 44.890 euros.

nuno.tibirica@dn.pt

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