O crack, substância ilícita fabricada a partir da cocaína, é a droga pesada mais usada nas ruas das grandes cidades.
O crack, substância ilícita fabricada a partir da cocaína, é a droga pesada mais usada nas ruas das grandes cidades.Leonel Castro/Global Imagens

Comportamentos aditivos. Álcool e crack no topo das preocupações

Já está em funções o novo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), liderado pelo experiente médico João Goulão. O plano estratégico em curso assenta em três pilares fundamentais para dissuadir os dependentes de drogas: "empoderar", "cuidar" e "proteger".
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O percurso do médico João Goulão cruza-se com o combate às dependências, em Portugal. Com uma vasta experiência nesta área, tendo passado por várias instituições ligadas a esta temática, João Goulão é o presidente do novo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), que já está em funções e vem substituir o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). “Com esta mudança reconstitui-se um instituto público, com algumas semelhanças com o antigo Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) – anterior ao SICAD – que foi extinto em 2012, na altura da intervenção da troika”, começa por explicar Goulão. “Na prática, o que foi acontecendo foi uma perda progressiva da capacidade de resposta aos problemas do terreno, nomeadamente em termos de tratamento, mas também noutras áreas. Devo dizer que desde que essa decisão foi tomada, em 2012, que houve uma insistência grande, por parte de profissionais e de várias estruturas, no sentido de reconstituir um organismo único com as responsabilidades, nesta área, todas concentradas. É o que vai acontecer agora, com o ICAD”, congratula-se o médico, que tem sido visto como um dos principais mentores das políticas de intervenção na área das adições.

Neste momento, o consumo abusivo de álcool e a utilização de substâncias ilícitas, sobretudo o crack, são as maiores preocupações do ICAD. “Diria que a grande prioridade – há várias  e não podemos investir numa área em detrimento de outras – são os consumos de álcool. É onde parece haver, de facto, um aumento dos consumos problemáticos e das suas consequências”, avança João Goulão. O álcool, além de “todas as consequências para a saúde” acarreta ainda “outras situações gravosas, como a violência e a condução sob o efeito do álcool, com todos os perigos que isso acarreta”.


O ICAD está atento e João Goulão explica que há um novo perfil dos dependentes de bebidas alcoólicas. “Haverá um menor número de pessoas a consumirem álcool, na base problemática, mas aqueles que consomem fazem-no em maiores quantidades. Há consequências físicas do uso abusivo do álcool que são um problema sério”, avalia o médico e presidente do ICAD. Há ainda uma mudança no perfil dos consumidores abusivos de álcool. “Contrariamente ao que constatámos durante algum tempo, em que houve um retardar do início do consumo de álcool entre jovens, neste momento há um recrudescimento no consumo por pessoas abaixo da idade legal para o consumo de álcool. Por outro lado, há uma aproximação, no consumo, entre os dois sexos: tradicionalmente, havia uma predominância destes consumos nos homens. Hoje, há uma aproximação, no sexo feminino”. 


Crack substitui heroína

A par do álcool, o consumo de crack também tem vindo a disparar. “O crack, neste momento, ocupa um espaço que talvez, há duas décadas, ou mais, foi ocupado pela heroína”, revela João Goulão. Os consumidores são, sobretudo, “pessoas mais fragilizadas, do ponto de vista social, e mais expostas no espaço público”. Estes consumos prendem-se, sobretudo, com a facilidade de acesso a esta droga. “Tem a ver com a disponibilidade e com o facto de ser uma droga barata. Os preços não têm nada a ver com os da cocaína, a ‘branca’. A partir de uma quantidade modesta de cocaína é possível produzir uma quantidade significativa de crack”. Esta droga é consumida “sobretudo por via fumada, com menor impacto na possibilidade de ocorrência de overdose”. Certo é que se trata de uma substância altamente aditiva. “É uma substância extremamente gulosa, é assim que é descrito. Quando mais se consome mais apetece consumir. Há uma enorme compulsão no seu uso”.

O médico explica, ainda, o que leva a que esta substância provoque tanta dependência. “Tem a ver, também, com as substâncias adicionadas à cocaína e que, elas próprias, têm um efeito inebriante, de curta duração, que leva à repetição do uso”. O especialista alerta, também, para os perigos do consumo desta substância ilícita. “O crack, e outras drogas, fazem parte, em muitos casos, de cocktails – em alguns casos perfeitamente disparatados – dos quais fazem parte substâncias ilícitas mas também substâncias lícitas, como medicamentos fora do seu contexto terapêutico”.

Pelas ruas de Lisboa, sobretudo em zonas como a Mouraria, Gare do Oriente ou a Avenida de Ceuta, é possível ver muitos dependentes de crack, alguns em situação de sem-abrigo. “Empiricamente, temos a sensação de que o consumo de droga está a subir. Talvez o que esteja a acontecer seja, nos últimos tempos, uma maior visibilidade de uma população mais vulnerável, desorganizada e visível no espaço público”, adverte o presidente do ICAD. “Estes consumos acontecem muito em populações mais expostas e visíveis, como a população sem-abrigo, mas também em população migrante muito desorganizada e vulnerável”. Ainda assim, João Goulão garante que “não temos evidência, nos grandes números, que o consumo de drogas pela população geral tenha aumentado na proporção dessa visibilidade”

‘Salas de chuto’ são meio para chegar aos toxicodependentes

Em muitos locais, o consumo de drogas é feito à vista de qualquer pessoa que passa. No Vale de Alcântara, sensivelmente na zona onde se localizava o Casal Ventoso, existe um espaço de consumo vigiado, locais vulgarmente designados como ‘salas de chuto’. Aqui, os toxicodependentes podem consumir droga de forma acompanhada, por pessoal médico, mas também receber uma pequena refeição, usar a lavandaria ou tomar um banho. João Goulão explica que estes locais – também existe um espaço idêntico no Porto – são sobretudo um meio para chegar a um fim: a mudança de vida. “O espaço de consumo vigiado tem essa grande virtualidade de oferecer respostas às necessidades básicas das pessoas e, por essa via, captar as pessoas, ganhar a sua confiança e motivá-las para uma mudança de estilo de vida”.

Apesar de tudo, naquela zona de Lisboa, muitos dos moradores queixam-se de que os consumidores preferem consumir a céu aberto e estar em grupos. “Este tipo de propostas pressupõe uma adesão voluntária. Não vamos obrigar ninguém a frequentar a sala de consumo”. E, ao contrário do olhar da população, João Goulão garante que há uma grande adesão ao espaço de consumo vigiado. “O espaço não é suficiente para toda a população que quer utilizá-lo. Estamos a trabalhar, em conjunto com a câmara municipal de Lisboa, no sentido de encontrar novas localizações para mais espaços deste tipo. Queremos colocar essa oferta na malha urbana da cidade de Lisboa”.

A Norte, no Porto, “temos um espaço físico, que esteve em funcionamento, em período experimental, suportado pela câmara municipal do Porto, mas que desde outubro passou a ser suportado pelo SICAD e, agora, pelo ICAD”. O presidente do ICAD avança, ainda, que há outros apoios para quem quiser fazer os seus consumos de forma controlada e minimizando riscos. “Em Lisboa, há carrinhas onde é possível fazer esses consumos. No Porto, está em preparação um espaço de consumo vigiado móvel – uma carrinha – para que possa circular na cidade e parar em determinados locais, a certas horas, em que existem mais utilizadores”. Seja como for, João Goulão insiste: “As salas de consumo vigiado não são um objetivo em si próprias. São um meio para captar as pessoas e cativá-las a mudar de vida”.

Plano estratégico em curso

Com o seu início, o ICAD tem já em marcha um novo plano de combate aos problemas das dependências. “Temos um plano estratégico que está em vigor e assenta em três pilares fundamentais”, adianta João Goulão. “O primeiro pilar tem a ver com empoderar, ou seja, tem a ver com um trabalho preventivo, com a capacidade de proporcionar às pessoas escolhas informada”. O segundo pilar deste plano “tem a ver com cuidar. Ou seja, oferecer a todos aqueles que disso necessitam a possibilidade de se tratarem ou, pelo menos, de acederem a substâncias de menos risco para a sua saúde e para a saúde envolvente”. Quanto ao terceiro pilar, trata-se de, segundo o presidente do ICAD, “proteger”. “Tem a ver com uma proteção ambiental e também, aí com uma intervenção das forças de segurança, no sentido de proteger os próprios utilizadores, tendo em conta o que é a envolvente e as consequências dos seus atos”.

João Goulão está seguro de que “com o ICAD temos condições para a criação de políticas mais eficazes e mais efetivas. Políticas com maior massa crítica de profissionais, mais intensa discussão interna, para nos permitir ir adequando e enquadrando respostas para os diversos problemas com que a nossa sociedade se depara. Todo este investimento vai ser feito em várias frentes”.

As forças policiais, ao mesmo tempo, para João Goulão, podem também ter um papel a desempenhar na dissuasão dos comportamentos aditivos. “Temos um quadro legal que discriminalizou o uso de todas as substâncias e a posse, para uso pessoal, até determinadas quantidades. Foi um avanço civilizacional que aconteceu há mais de 20 anos. Contudo, concordo que é importante que as forças policiais estejam presentes, tenham um papel dissuasor. Que acionem o próprio mecanismo da persuasão, encaminhando as pessoas para comissões para a dissuasão da toxicodependência, para que possam ser triadas e encaminhadas para as respostas  mais adequadas à sua condição, aos problemas que apresentam”. 

Pandemia agrava dependências

O diploma que regulamenta o funcionamento do ICAD prevê, para além da monitorização dos problemas relacionados com a dependência de álcool e drogas, também as adições ao jogo, ecrãs e Internet. Dependências que, segundo o presidente do ICAD, João Goulão, se agravaram devido ao período pandémico. “Depois da pandemia, altura em que as pessoas passavam muito tempo fechadas em casa, notou-se um aumento bastante significativo desse tipo de dependências”, diz, referindo-se aos ecrãs e Internet. “Há pessoas que passam seis ou mais horas por dia seja no jogo – no caso online –, na Internet, nas redes sociais. E isto também é um comportamento aditivo”. O médico adianta como o ICAD se prepara para lidar com estas dependências. “Teremos de nos apetrechar para atuar, também nessas áreas. É preciso um relançamento na capacidade de intervenção dessas matérias, que já eram tratadas pelo SICAD”. 


isabel.laranjo@dn.pt

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